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Catta Preta: Compartilhamento de provas obtidas por pedido genérico

5 de outubro de 2021, 18h06

Por Ava Garcia Catta Preta

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O Supremo Tribunal Federal  irá julgar o Recurso Extraordinário n° 1.301.250/RJ, já com repercussão geral reconhecida (Tema 1148), no qual o Google se insurge contra decisão judicial criminal que determinou que fornecesse, de forma genérica, dados de todas as pessoas que teriam realizado buscas na internet com determinados parâmetros.

O caso concreto que ensejou a interposição do recurso extraordinário trata do homicídio da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, cuja investigação já perdura por mais de três anos.

A situação hipotética que se propõe é: imagine se, na qualidade de advogado privado, você é procurado pela família de Marielle Franco ou de Anderson Gomes visando ao ajuizamento de ação cível de indenização e, para tanto, ajuíza ação cautelar de exibição de documentos, obviamente em observância dos preceitos legais cíveis, e não criminais, para obter justamente os dados que estão sendo discutidos no mencionado recurso extraordinário.

Em obtendo êxito, pode o advogado compartilhar as provas obtidas com a investigação criminal?

A discussão é interessante e atual, uma vez que em 30 de março do presente ano foi editada a Medida Provisória n° 1.040/2021, posteriormente convertida na Lei 14.195/2021, que alterou o artigo 397 do Código de Processo Civil (CPC), que trata da exibição de documentos na esfera cível, uma aproximação à figura do discovery to do processo civil americano.

Antes da alteração legislativa, o dispositivo legal previa que o pedido de exibição de documentos deveria conter: 1) a individuação, tão completa quanto possível, do documento; 2) a finalidade da prova, indicando os fatos que se relacionam com o documento; e 3) as circunstâncias em que se funda o requerente para afirmar que o documento existe e se acha em poder da parte contrária.

Após a alteração promovida pela MP 1.040/2021, os requisitos para a formulação do pedido de exibição de documentos passaram a ser mais flexíveis, exigindo-se, agora: 1) a descrição, tão completa quanto possível, do documento, ou das categorias de documentos; 2) a finalidade da prova, com indicação dos fatos que se relacionam com o documento, ou com suas categorias; 3) as circunstâncias em que se funda o requerente para afirmar que o documento existe, ainda que a referência seja a categoria de documentos, e se acha em poder da parte contrária.

A alteração legislativa, na prática, significa que o pedido de exibição de documentos na esfera cível não prescinde mais de uma individualização minuciosa do que se pretende obter, podendo se voltar a categorias de documentos, ao invés de um específico. A exibição pode se dar, ainda, de forma incidental ou em ação de produção antecipada, que, desde o CPC de 2015, deixou de ter o requisito de urgência/perecimento da prova para ser processada.

A aplicação de tal previsão legal no âmbito penal, no entanto, se mostra controversa, uma vez que encontraria óbice nos princípios constitucionais que orientam as garantias individuais a serem rigorosamente observadas no processo penal. Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 prevê, em seu artigo 5º, inciso X, os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada e, em seu inciso XII, a inviolabilidade das comunicações, salvo por ordem judicial destinada a investigação ou instrução criminal, a qual deve seguir a forma estabelecida em lei.

Nessa toada, a Lei 9.296/1996 regulamentou o inciso XII do artigo 5º da CF/1988, determinando, em seu artigo 2º, inciso I e parágrafo único, a necessidade de se indicar indícios razoáveis da autoria, bem como de identificação e qualificação do alvo quando do pedido de interceptação telefônica (que também se aplica às interceptações telemáticas). Ressalte-se que há previsão de exceção de indicação do autor do fato criminoso, mas jamais do alvo da medida.

Ademais, deve-se observar a convergência das regras estabelecidas no Marco Civil da Internet (Lei n° 12.695/2014), que, diferentemente das demais normas apontadas, foi editado já em momento contemporâneo ao desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, a referida legislação prevê, em seu artigo 3º, incisos II e III, e artigo 7º, incisos I, II e III, a proteção da privacidade e dos dados pessoais, bem como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e o sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet e das comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial expedida na forma da lei.

O artigo 10, §1º e §2º, e o artigo 22 do Marco Civil da Internet (Lei n° 12.695/2014) regulam a disponibilização de dados pelos provedores, novamente exigindo a observância das garantias individuais e a forma procedimental exigida em lei.

Observa-se, finalmente e principalmente, o Decreto nº 8.771/16, que regulamenta o Marco Civil da Internet, e que, em seu artigo 11, §3º, prevê expressamente que: "Os pedidos de que trata o caput devem especificar os indivíduos cujos dados estão sendo requeridos e as informações desejadas, sendo vedados pedidos coletivos que sejam genéricos ou inespecíficos".

A aplicação de tal medida investigativa de forma genérica e indeterminada no âmbito criminal configuraria o amplamente rechaçado fishing expedition [1].

Por fim, observa-se as recentes e diversas decisões que impedem as medidas cautelares criminais com alvo indeterminado. Destaca-se que diversas determinações judiciais de buscas e apreensões genéricas, comumente realizadas nas favelas, foram decretadas como ilegais [2].

Na esfera cível, a Medida Provisória n° 1.040/2021 se justifica, conforme consta da sua exposição de motivos [3], para melhorar o ambiente de negócios no Brasil, de modo que as alterações legislativas serviriam para desburocratizar procedimentos.

Com isso em mente, volta-se à situação hipotética proposta: os dados obtidos na esfera cível, por meio de pedido formulado com alvo indeterminado, podem ser compartilhados com a investigação criminal?

Pode-se argumentar que tal compartilhamento deveria ser legal, uma vez que as famílias das vítimas já vêm suportando as dores da investigação do homicídio de seus entes queridos por mais de três anos e que esse seria o único modo de se alcançar a verdade real no caso concreto.

No entanto, o processo penal não pode ser eminentemente finalístico e pragmático, sob pena de se atropelarem garantias constitucionais que servem à proteção de todos os cidadãos em nome da resolução de um crime. Não se pode admitir o uso de prova ilícita para se alcançar o fim da investigação, tanto é assim que a malfadada proposta legislativa autoproclamada de "Dez Medidas Contra a Corrupção" não teve êxito em legalizar o uso da prova ilícita no processo penal.

Há quem defenda que os dispositivos legais e constitucionais que regulamentam a interceptação das comunicações não se aplicam à ordem de quebra do sigilo informacional, porém solicitar dados relativos à identificação de pessoas que realizaram pesquisas com determinados parâmetros no provedor Google não se trata de mera informação de dados cadastrais, mas efetivamente contém informações íntimas do usuário (que tipo de buscas realizou, geolocalização etc.), passíveis, portanto, de proteção equivalente àquela destinada ao sigilo das comunicações.

O compartilhamento de prova hipotético poderia ser autorizado, ainda, pela previsão legal contida no artigo 372 do CPC, desde que respeitado o contraditório, aplicando-se ao caso a técnica de interpretação hermenêutica concretizadora.

Porém, no âmbito penal não se admite o uso da analogia in malam partem, de modo que seria mais adequada a adoção da hermenêutica teleológica, de forma a se buscar compreender qual foi a intenção do legislador constituinte e infraconstitucional ao impedir o pedido de quebra de sigilo com alvo genérico e se o compartilhamento na forma apresentada se aproximaria ou se afastaria de tal intuito legislativo.

A favor do compartilhamento, pode-se arguir a atipicidade conglobante da conduta hipotética colocada [4]. Ora, se o Estado incentiva o cidadão a reportar às autoridades públicas de investigação eventual obtenção de provas de autoria ou materialidade de crimes, tal conduta não poderia incorrer em nulidade.

No entanto, não se trataria de uma forma de burlar as garantias individuais dos cidadãos em face de investigação detentora de todo o aparato estatal?

O presente artigo, portanto, não pretende responder peremptoriamente a ponderação apresentada, mas, sim, incentivar o debate sobre a necessidade de regulamentação unificada sobre como as novas tecnologias devem ser abordadas nas investigações criminais.


[4] Sobre a atipicidade conglobante, veja-se o acórdão de relatoria do Min. Reynaldo da Fonseca, proferido no julgamento dos EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp nº 1421747/SC (DJe 19/05/2020).