Acusada de dois crimes de responsabilidade cujas condutas são diretamente relacionadas ao Direito Financeiro, seu afastamento do cargo não deixa mais dúvidas de que o orçamento é a lei mais importante do país depois da Constituição[1], e de que a Lei de Responsabilidade Fiscal não admite violações.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 4 de maio de 2000, foi, ao longo desses 16 anos, se consolidando como norma fundamental para a administração pública, e a evolução em matéria de gestão fiscal foi pavimentando o caminho para que o país pudesse alcançar patamares mais elevados de respeitabilidade internacional e se colocasse no rumo para cumprir os objetivos fundamentais previstos na Constituição.
Essa trajetória foi ameaçada nos últimos anos com atos que a desrespeitavam, freando o avanço que vinha sendo experimentado, e importaram em inaceitável retrocesso que desviava desse curso.
Pude registrar ao longo dos últimos anos o desrespeito ao ordenamento jurídico em matéria de finanças públicas nas colunas publicadas na seção “Contas à Vista”, agora reunidas em um livro (Levando o Direito Financeiro a sério. São Paulo: Blucher-ConJur, 2016), que pode ser comprado aqui ou acessado eletronicamente aqui.
Práticas consagradas de uso de instrumentos orçamentários, como emendas parlamentares e transferências voluntárias, para viabilizar o “governo de coalizão”, permaneceram tal e qual, mostrando que nada parecia evoluir na gestão das finanças públicas[2]. Chegaram ao cúmulo de ser regulamentadas[3].
As “maquiagens contábeis”, registradas na coluna publicada em 12 de fevereiro de 2013[4], foram o mais claro indício de que não se pretendia levar o Direito Financeiro a sério.
Atrasos na publicação da lei orçamentária anual, fazendo com que o ano se iniciasse com autorizações precárias para os gastos públicos, e terminasse postergando despesas para o ano seguinte, com aumentos cada vez mais significativos dos restos a pagar, voltavam a fazer crer que a lei orçamentária não passava de mera peça de ficção[5].
O povo pode desconhecer as questões técnicas que levam ao descontrole do governo, mas é o primeiro a sentir suas consequências, a insatisfação fica evidente e os protestos começam a aparecer[6].
Ao planejamento, fundamental para qualquer governo que se pretenda eficiente e responsável, pouca atenção se dava. O Plano Nacional de Educação, cuja vigência expirou em 2010, só veio a ser renovado quatro anos depois. Um atraso que seria inaceitável em qualquer circunstância e se torna mais grave quando se sabe ser essa a “prioridade número um” para um País que tem como objetivos fundamentais reduzir as desigualdades sociais, erradicar a pobreza e se inserir no rol dos países desenvolvidos, além dos demais que a Constituição prevê em seu art. 3º e para os quais a educação é o ponto de partida.
Com uma presidente que se candidata à reeleição apresentando um pífio plano de governo[7], assume com o lema da “Pátria Educadora” e troca os ministros da pasta da Educação ao sabor das conveniências políticas do momento, fica a certeza de que o país se equipara a um transatlântico à deriva no oceano, sem saber o rumo a seguir, quando era necessário enfrentar tempestades, e não apenas “marolinhas”[8]. O planejamento é deixado de lado, assume a “administração-bombeiro”, e vive-se para apagar incêndios.
Aparecem as “pedaladas fiscais”[9], com o uso dos bancos públicos para pagar contas do Tesouro sem lastro, associadas à falta de transparência nas operações envolvendo o BNDES[10], e as maquiagens contábeis passam a ser uma prática recorrente, tornando a “contabilidade criativa” uma política de governo.
O dia 15 de abril transformou-se já há muitos anos numa data importante para o país, por ser a data de apresentação pelo presidente da República da proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)[11], sempre objeto de atenção da mídia. Mas as sucessivas alterações ocorridas nesta lei conseguiram fazer do dia 15 de abril o novo dia da mentira. O dia da mentira fiscal.
Um dos atos mais representativos do desrespeito ao ordenamento jurídico em matéria financeira, a desconsideração da LDO consegue ao mesmo tempo ferir vários princípios e valores caros ao governante: credibilidade, segurança jurídica e responsabilidade fiscal. Além de terem sido frequentemente aprovadas completamente fora do prazo legal, as leis de diretrizes orçamentárias, que têm a função de estabelecer as previsões de metas de resultado fiscal, responsáveis por conduzir a gestão orçamentária e financeira, viraram letra morta nos últimos anos, com as sucessivas alterações, chegando a despropósitos como o que ocorreu no ano passado, em que a meta foi substancialmente modificada poucos dias antes do término do exercício financeiro.
Atitudes como essa destroem a credibilidade do governante, fazendo com que esse dispositivo de lei deixe de merecer qualquer confiança. Torna-se inútil para conferir segurança jurídica, como se lei não fosse, e desconsidera sua função como parâmetro de responsabilidade fiscal. Um desastre para as finanças públicas e para quem a comanda.
Soma-se a isso o pouco caso que se fez da lei orçamentária, que parecem esquecer tratar-se da mais importante para o País depois da Constituição. Em 2015, é apresentado o projeto de lei orçamentária, sendo decidido no dia anterior, um domingo, que seria deficitário, como se o projeto da LDO, que havia fixado os parâmetros, não existisse. Ante a repercussão negativa, e rebaixamento do País pelas agências de risco, promove-se alteração às pressas, jogando por terra qualquer credibilidade que os números apresentados pela lei orçamentária ainda pudessem vir a ter[12].
Um conjunto de desmandos que não poderia resultar em outra coisa que não a decisão, pelo Tribunal de Contas da União, pela primeira vez após a Lei de Responsabilidade Fiscal, de dar parecer pela rejeição das contas de governo relativas ao exercício de 2014, quando muitas das ilegalidades apontadas já tinham sido praticadas[13].
E, agora, com o recebimento da denúncia e afastamento da presidente, a nação passa a saber que infringir a lei orçamentária abrindo créditos sem autorização e “pedalar” não são meras irregularidades contábeis, mas crimes de responsabilidade que podem levar um presidente a perder seu cargo.[14]
Causam prejuízos cujos montantes podem ultrapassar em muito os valores que se veem em matéria de desvio de recursos públicos. Prejuízos que não são somente financeiros, mas também e principalmente à imagem do país, que perde sua credibilidade perante o mundo todo, afastando investidores e desmotivando a sociedade, mostrando que a segurança jurídica é precária e não se tem qualquer apreço pela responsabilidade fiscal.
Razões mais do que justas e suficientes para que o governante perca as condições de comandar a nação.
O novo governo que se inicia hoje tem uma tarefa muito difícil. Recuperar a credibilidade, segurança jurídica e responsabilidade fiscal perdidas exigirá muito esforço, em curto espaço de tempo. Reverter, porém, as expectativas negativas que foram construídas em relação ao governo federal é missão árdua, mas não impossível.
O importante é que a principal lição deve ser aprendida: é preciso levar o Direito Financeiro a sério.
[1] “A lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”, Min. Carlos Britto, p. 92 dos autos, STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048 (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2008).
[2] Colunas Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de poderes, publicada em 3.7.2012, e Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, publicada em 28.8.2012.
[3] Decreto 8.389/2015, mencionado na coluna Direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, publicada em 10.2.2015.
[5] Colunas E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal, publicada em 15.1.2013 e O final do ano, as dívidas e os “restos a pagar”, publicada em 17.12.2013.
[6] No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias, publicada em 2.7.2013.
[7] Planos de governo são essenciais para a escolha do próximo presidente, publicada em 21.10.2014.
[8] Descaso com o planejamento deixa o país sem rumo, publicada em 22.9.2015.
[9] Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!, publicada em 23.9.2014.
[10] BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos, publicada em 17.11.2015.
[11] Ato das Disposições Transitórias da Constituição, art. 35, § 2º, II.
[12] Descaso com o planejamento deixa o País sem rumo, publicada em 22.9.2015.
[13] Julgamento do TCU que reprovou as contas do governo entrou para a história do Direito Financeiro, publicada em 20.10.15.
[14] Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment, publicada 5.4.2016.