Em crimes multitudinários, cometidos de modo coletivo, todos devem responder pelo resultado comum, ainda que não seja possível apurar as condutas de modo individualizado. Com base nesse entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal condenou nesta quinta-feira (14/9) Aécio Lúcio Costa Pereira a 17 anos por participação nos atos de 8 de janeiro.
Trata-se do primeiro julgamento contra um réu por participação no ato golpista, em que manifestantes bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das eleições de 2022 invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes pedindo intervenção militar no país.
O réu tem 51 anos, integra o grupo "patriotas" e se deslocou até Brasília para participar dos acampamentos em frente ao Quartel General do Exército e dos atos do 8 de janeiro. Ele invadiu o Plenário do Senado e gravou vídeos incentivando outros manifestantes e defendendo uma intervenção militar.
Foi condenado pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Venceu o voto do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso. Ele fixou pena de 15 anos e seis meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, e de um ano e seis meses de detenção, a ser cumprida posteriormente e em regime inicial aberto. O réu também foi condenado ao pagamento de multa de aproximadamente R$ 44 mil e ao pagamento solidário de R$ 30 milhões por dano moral coletivo.
Segundo Alexandre, houve o cometimento dos chamados "crimes multitudinários", que são consumados de modo coletivo, a exemplo de linchamentos e brigas envolvendo torcidas de futebol. Em casos assim, afirmou ele, não é necessário descrever condutas individualizadas, uma vez que todos os participantes respondem pelo resultado do crime.
"Razão assiste ao MP ao afirmar que esses crimes são multitudinários e que em crimes dessa natureza a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis pela própria caracterização da conduta. Não resta dúvidas de que todos os crimes multitudinários contribuíram com o resultado, já que se tratava de uma ação conjunta perpetrada por inúmeros agentes e destinada a um devido fim", afirmou o ministro.
Alexandre rejeitou o argumento defensivo de que o réu, embora tenha entrado no Senado, não participou de atos de violência e de depredação. Isso porque, segundo o ministro, a própria invasão da Esplanada dos Ministérios, depois da Praça dos Três Poderes e, por fim, do Congresso, do Supremo e do Palácio do Planalto já constitui crime. Ele também ironizou o argumento de que havia manifestantes pacíficos dentro das sedes do Legislativo, do Judiciário e do Executivo.
"As pessoas vieram, pegaram um tíquete como fazem no Hopi Hari, em São Paulo, ou na Disney, (e disseram) 'agora vamos invadir o Supremo e vamos quebrar uma coisinha aqui, agora vamos invadir o Senado, vamos invadir o Palácio do Planalto, agora vamos orar da cadeira do presidente do Senado'. O terraplanismo e o negacionismo obscuro de algumas pessoas faz parecer que no dia 8 de janeiro tivemos um domingo no parque", disse o magistrado.
"Não houve nada de pacífico nesse dia, até porque a tentativa de morte da democracia não é pacífica e foi um ato violentíssimo o que ocorreu no dia 8 de janeiro. Foi um ato violento contra o Estado democrático de Direito", prosseguiu.
Segundo o ministro, há uma série de indícios de que havia divisão de tarefas entre os participantes, que alguns estavam armados e que pretendiam, por meio da invasão e depredação dos prédios, instigar as Forças Armadas, em especial o Exército, a aderir a um golpe de Estado.
"Não existe aqui liberdade de manifestação para atentar contra a democracia, pedir a volta da tortura, para pedir a morte dos inimigos políticos, os comunistas, e para pedir intervenção militar. Isso é crime. Houve a entrada criminosa e golpista em um prédio onde havia bloqueios, em dinâmica de vandalismo e violência, com ações organizadas que se estenderam muito além do ingresso no edifício e não houve recuo, porque o objetivo era claro: obter uma intervenção militar, conseguir o golpe de Estado e derrubar o governo democraticamente eleito", disse Alexandre.
Todos os ministros votaram pela condenação, mas com penas diferentes. Seguiram Alexandre quanto à condenação por 17 anos os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.
A denúncia analisada pelo Supremo foi apresentada pela Procuradoria-Geral da República. A defesa do réu foi feita com base no argumento de que a acusação não fez a individualização das condutas.
O caso foi colocado na pauta do tribunal junto com outras três denúncias contra acusados de invadir e depredar as sedes dos Três Poderes. As demais ações penais estão na pauta da sessão desta quinta-feira e serão analisadas na parte da tarde.
Divergência e demais votos
O julgamento começou na quarta-feira (13/9) com os votos do relator e do ministro Nunes Marques. Foi retomado nesta quinta-feira com os demais votos.
Nunes Marques propôs pena de dois anos e seis meses pelo cometimento dos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio. Ele divergiu, no entanto, quanto aos crimes de associação criminosa, golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito.
Segundo Nunes Marques, para a ocorrência do crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito, seria necessário que a conduta do réu pudesse levar, de modo concreto, a uma ruptura.
"Torna-se necessário para o cometimento do crime em análise que a conduta tenha ao menos o potencial de produzir no plano concreto o resultado pretendido, ainda que não venha a ocorrer, uma vez que o verbo núcleo do tipo é 'tentar' abolir o Estado democrático de Direito."
Na sessão desta quinta votaram Cristiano Zanin, André Mendonça, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.
Zanin, assim como Alexandre, votou para condenar o réu por cinco crimes, mas propôs pena de 15 anos. Ele concordou com o relator quanto à ocorrência de um crime praticado por multidão.
“Estamos a falar de crime praticado por multidão em tumulto para deposição de governo legitimamente eleito e para aniquilar o Estado Democrático de Direito, além de outras práticas criminosas. Em crimes multitudinários, todos devem responder pelo resultado comum”, afirmou.
Mendonça votou pela condenação por quatro crimes: divergindo parcialmente de Alexandre, absolveu o réu do crime de golpe de Estado por entender que a abolição violenta do Estado Democrático de Direito já pressupõe a tentativa de golpe. Assim, um crime absorveria o outro.
“Toda tentativa de golpe pressupõe a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Dentro dessa perspectiva, entendo que se aplica o princípio da consunção ou absorção”, afirmou.
Ele propôs pena de 8 anos. Barroso entendeu da mesma forma, mas propôs pena maior, de 10 anos de reclusão e um ano e seis meses de detenção.
Ao encerrar a sessão, a ministra Rosa Weber, presidente do Tribunal, afirmou, que o 8 de janeiro não teve nada de um "domingo no parque".
"Foi um domingo de devastação e um dia da infâmia. Um domingo de devastação do patrimônio físico e cultural do povo brasileiro e perpetrada por uma turba que, com total desprezo pela coisa pública, invadiu esses prédios históricos da Praça dos Três Poderes, coração da capital do nosso país", disse.
Segundo a ministra, não se pode desconhecer nem minimizar "o incalculável poder antissocial e desagregador emergente de multidões inflamadas pelo ódio e pela cólera".
Por fim, a ministra afirmou, em referência ao filósofo austríaco Karl Popper, que uma sociedade tolerante não deve tolerar a intolerância.
"Os crimes multitudinários envolvem, por definição, esses crimes cometidos em massa. As dificuldades observadas para detalhar a conduta de cada um dessa multidão não pode conduzir à letargia dos órgãos responsáveis pela persecução penal sob pena de eventos criminosos extremamente graves e potencialmente disruptivos tornarem-se, na prática, imunes à jurisdição criminal do Estado", prosseguiu.
AP 1.060