Consultor Jurídico

Olhar mais atento sobre como são produzidas as leis

6 de setembro de 2022, 8h00

Por Fabiana de Menezes Soares, João Trindade Cavalcanti Filho, Müller Dantas de Medeiros, Natasha Schmitt Caccia Salinas, Renê Braga, Roberta Simões Nascimento, Samuel Gomes, Victor Marcel Pinheiro

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Tem crescido, nas últimas décadas, o interesse acadêmico e profissional pelas técnicas empregadas na elaboração de leis e atos normativos infralegais. Os fundamentos jurídicos da atividade legislativa vêm desafiando não só juristas, mas cientistas políticos, linguistas, cientistas da informação e claro, legisladores. A complexidade das demandas sociais, a pluralidade de atores, a imensa diversidade de contextos de aplicação das leis exige abordagens sintonizadas com nosso tempo. Isso significa que a diminuição do abismo entre os códigos e o direito no cotidiano passa por perspectivas de análise que contribuem para o desenvolvimento de leis & regulações.

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A primeira diz respeito à mudança na própria atividade legiferante do Estado. Parte significativa das leis e regulamentos produzidos desde pelo menos a segunda metade do século 20 visam, em essência, a reger políticas públicas. Esse tipo de legislação não tem por objetivo principal conferir direitos e atribuir deveres a "sujeitos de direito", tal como o fazia o direito privado clássico, mas sim a estabelecer diretivas para os "implementadores de políticas públicas. Leis e regulamentos assumem, portanto, o papel de instrumentos de "engenharia social" no qual objetivos legislativos, normas de competência, procedimentos de tomada de decisão, regras, princípios e outros tipos de comandos são inseridos no texto legal visando a um único propósito: realizar os objetivos da política pública legislada. Se o objetivo é produzir atos normativos que viabilizem a realização de políticas, um consenso surge em torno da ideia de que a produção normativa deve seguir ritos e empreender análises que potencializem esse papel instrumental da lei, especialmente nas suas dimensões de eficácia e efetividade. A tecnologia trouxe também um especial apelo à simplificação da linguagem e do dever do Estado em assegurar uma maior inteligibilidade dos seus textos, do modo como comunica os seus atos normativos.

A segunda perspectiva é decorrente do primeira. Os novos papéis assumidos pela lei e pelo direito contribuíram para cenários de fragmentação regulatória, instabilidade jurídica, inflação legislativa e disputa entre poderes. Com o advento e transformações do Estado de Bem-Estar Social, a legislação assumiu novos papéis e perdeu seu caráter sistemático, revelando-se insuficiente para tratar de uma realidade altamente cambiante. Nesse sentido, os processos de elaboração legislativo-regulatória necessitam, de um lado, amplificar o contraditório e, de outro, ampliar os canais de informações que veiculem dados e evidências típicos da sociedade de informação.

Um dos efeitos indesejados desse processo é a perda de protagonismo do poder legislativo para oferecer soluções aos problemas sociais mais prementes. Em todo mundo, assistiu-se, primeiro, à ascensão de "Estados Administrativos", em que o poder executivo passou a "legislar" em intensidade maior e com mais racionalidade do que o poder legislativo. Em temos recentes, a própria produção normativa estatal, inclusive a do poder executivo, tem cedido lugar para ambientes regulatórios nos quais normas são produzidas por atores não estatais. Se por um lado o Executivo tem maior celeridade na sua produção normativa, por outro pode exorbitar ou amesquinhar direitos e garantias fundamentais. Por vezes, esses conflitos culminam por depositar sobre o Judiciário o papel de decidir sobre o alcance e os efeitos de políticas públicas 

Embora a atividade normativa não seja privativa do poder legislativo, sendo necessário que outros atores estatais e não estatais regulem os mais variados setores de forma ágil e flexível, entendemos que o direito e a lei só cumprirão plenamente as suas funções instrumentais a partir do fortalecimento — e jamais retração — da atuação dos parlamentos. Para que se restaure a confiança no direito e na lei como mecanismo que garanta a coesão social, ao mesmo tempo em que solucione os problemas sociais contemporâneos, é preciso que sejam incorporados à atividade legislativa parlamentar rigorosos métodos de produção e revisão normativa.

Conferir maior racionalidade ao processo de produção normativa não é imperativo apenas para o executivo, de modo que o legislativo não deve se furtar ao seu dever de produzir boas leis. Afinal, a função legislativa é a mais discricionária dentre todas, na medida em que por força de suas atribuições constitucionais tensiona os limites da legalidade. Portanto, cabe a reflexão sobre os contornos do devido processo legislativo e suas exigências de institucionalização da produção do direito em um sistema político democrático, representativo e deliberativo.  

Isso leva ao terceiro fenômeno aqui destacado: a crescente judicialização do processo normativo, seja em via legislativa, seja em via administrativa. Os tribunais brasileiros e as cortes de outros países têm sido chamados a verificar a conformidade ao direito não somente do produto da atividade normativa, mas também de seu processo de elaboração tendo em vista parâmetros constitucionais, legais e regimentais. Discute-se em que medida deve haver o exame dos elementos e etapas concretos do devido processo normativo e seu significado para validade jurídica das normas assim produzidas.

Nesse contexto, por vezes, o Judiciário acaba sendo instado a dar respostas em ações conclamando a aplicação literal dos regimentos internos das Casas Legislativas, menosprezando o dado de que os acordos entre líderes também são fonte do direito parlamentar e as normas regimentais trazem os contornos para a sua validade. A pretensão de um controle de "regimentalidade" estrita incorre no equívoco de tomar processo legislativo como se fosse semelhante ao processo judicial, ignorando o caráter meramente instrumental dos regimentos internos – que servem para legitimar, pelo procedimento, as decisões legislativas. Ou seja, regimentos não são fins em si mesmos; não faz sentido atender a forma só pela forma, quando não existe divergência entre os parlamentares, representantes legitimados democraticamente para tomar decisões em nome da sociedade. O "jurídico" é diferente do "político" e partir dessa distinção é passo indispensável para compreender o processo legislativo.

É com esse pano de fundo que inauguramos a coluna Fábrica de Leis. Publicaremos, artigos que se propõem a traçar diagnósticos sobre a atuação legislativa dos parlamentos das três esferas da federação brasileira, bem como propor medidas de aperfeiçoamento das técnicas legislativas empregadas pelos legisladores pátrios a partir de postulados de Legística, Teoria da legislação, Legisprudência, Processo Legislativo, Avaliação de Impacto Regulatório, Avaliação Legislativa dentre outras áreas do conhecimento voltadas para o estudo das leis.

Temos testemunhado, em tempos recentes, um crescente protagonismo do Congresso na proposição de leis primárias, ao mesmo tempo em que assistimos a uma retração do poder executivo na proposição de medidas provisórias e até mesmo de leis de matéria de sua competência. Isso obviamente não significa que o poder executivo produza menos normas do que o legislativo. Se considerarmos as normas secundárias ou de natureza infralegal, o poder executivo é responsável por 84% de todas as normas editadas no Brasil. No entanto, é inegável que o parlamento, na era Bolsonaro, destacou-se em relação a legislaturas de governos anteriores na proposição de leis primárias, como emendas constitucionais e leis ordinárias, bem como impulsionou  a avaliação de impacto no Executivo.

Legislar mais não significa legislar melhor, e será nosso papel, nesta coluna, observar a qualidade da produção legislativa parlamentar, o que requer muito mais do que uma análise estritamente jurídico-dogmática das iniciativas legislativas. Embora não pretendamos nos furtar a analisar a robustez jurídica dos enunciados normativos das leis, analisaremos sobretudo as dimensões de eficácia, efetividade e eficiência dos textos legais.

Assumimos, portanto, o compromisso de estimular, nesta coluna, uma agenda que tem como escopo central a produção — ao invés da interpretação e aplicação — de leis. Além de explorar temáticas como os processos interpretativos típicos da legislação, sua racionalidade e teorias da legislação, a dinâmica do sistema de leis e regulamentos, faremos análises sobre o impacto do sistema político e da cultura jurídica no desenho legislativo e regulatório das leis que são fabricadas todos os dias, em todas as unidades federativas, e que não escaparão ao nosso controle de qualidade.

Citações
1 https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-96WPB6 Acesso em: 17.ago.2022.

2 aqui. Acesso em: 17.ago.2022.

3 A expressão é de Roscoe Pound, realista jurídico norte-americano, que defendia o papel preditivo e instrumental do direito sobre as políticas públicas. POUND, Roscoe. Social Control Through Law. New Haven: Yale University Press, 1942. 

4 Um dos autores que melhor retratou a crise do direito e da lei para regular uma sociedade plural e cada vez mais fragmentária é Gunther Teubner. Cf. TEUBNER, Gunther. Juridification. Concepts, Aspects, Limits, Solutions. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of labor, corporate, antitrust and social welfare law. Berlin; New York; de Gruyter, 1987.

5. A  expressão  “Estado  Administrativo”  foi  cunhada  por  Dwight  Waldo  para  se  referir  a  uma Administração  Pública  que  concentra  em  si  atividades  típicas  dos  três  poderes  de  um  Estado.  Esta expressão é usualmente adotada nos Estados Unidos, mas é evitada pela literatura jurídica brasileira, talvez porque remeta à ideia – incompatível com uma visão rígida da separação de poderes – de que a Administração Pública exerça funções quase-legislativas ou quase-judicantes. Cf. WALDO, Dwight. The  Administrative  State:  a  study  of  the  political  theory  of american public administration. New York: Ronald Press Company, 1948.

6 NOLL, Peter. Gesetzgebungslehre.Rechtswissenschaften. Rowolt Taschenbuch Verlag GmbH. Reimbek bei Hamburg: juni1973. MORAND, Charles-Albert. Éléments de Légistique Formelle e Matérielle. In: MORAND, Charles-Albert (Org.). Légistique Formelle et Matérielle. Aix-En-Provence: Presse Universitaires d´Aix-Marseille, 1999, p. 17-45.

7 Por todos, cf. ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madri: Civitas, 1997.

8 Por todos, cf. WINTGENS, Luc. F. Legisprudence: Practical Reason in Legislation. Roudledge, 2016.

9 Por todos, France Houle, Analyses d'impact et consultations réglementaires au Canada, Étude sur les transformations du processus réglementaire fédéral : de la réglementation pathogène à la réglementation intelligente, Cowansville, Éditions Yvon Blais, 2012, 604 p

10 Por todos, MADER, Luzius.L’évaluation législative. Pour une analyse empirique des effets de la legislation. Lausanne: Payot, 1985.

11 Esse fenômeno foi noticiado pelo próprio Conjur. Cf. SANTOS, Rafa. Com governo enfraquecido, Congresso se torna protagonista na proposição de leis. Conjur, São Paulo, 19 de julho, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-19/congresso-nacional-assume-protagonismo-proposicao-leis. Acesso em: 17 ago. 2022.

12 Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBT, 2018) identificou que, desde a Constituição de 1988, em um período correspondente a 32 anos, foram editadas, apenas no nível federal, 168.642 normas. No período, foram produzidas “6 emendas constitucionais de revisão, 108 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 116 leis complementares, 6.308 leis ordinárias, 1.612 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 13.318 decretos federais e 141.680 normas complementares (portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios, pareceres normativos, etc.)”.