Consultor Jurídico

Orçamento secreto majora ganhos de curto prazo e risco de corrupção

18 de outubro de 2022, 9h54

Por Élida Graziane Pinto

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Interessa-nos, neste espaço de interlocução, retomar o debate acerca do regime jurídico das emendas de relator, marcadas pelo identificador de resultado primário 9 (RP-9), sobretudo à luz da hipótese do seu manejo abusivo e, por conseguinte, corrompido em face da finalidade que lhe autorizou a instituição.

Spacca
Como já debatemos aqui e aqui, tais emendas operam na contramão do regime supostamente isonômico e impessoal das emendas individuais e de bancada impositivas, ao discriminarem subjetivamente alguns parlamentares em detrimento dos outros.

A seletividade arbitrária nas indicações para execução orçamentária das emendas de relator é deliberada, uma vez que não há qualquer parâmetro racional ou filtro prévio dado pelo arranjo objetivo das políticas públicas que justifique sua consecução. Impera o curto prazo eleitoral, sem maior preocupação com os médio e longo prazos traçados pelas peças de planejamento orçamentário e setorial.

A opacidade na execução dessas emendas, aliás, justificou a alcunha que lhes foi atribuída pela imprensa: orçamento secreto. Isso ocorre, na medida em que a baixa rastreabilidade dos autores das indicações permite burlar balizas normativas, maximizar ganhos de curto prazo eleitoral e, no limite, até mesmo favorecer o enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro, sem maiores constrangimentos perante os órgãos de controle.

É almejado o segredo para que a execução do orçamento público possa ser manejada como se se tratasse de aplicação privada de recursos públicos. Tal como bem resumido nesta reportagem, a tergiversadora figura do "usuário externo" visa invisibilizar o autor real das indicações, de modo a terceirizar a responsabilidade e a mitigar o alcance dos instrumentos tradicionais de controle:

O orçamento secreto tem uma peça central para seu funcionamento: o chamado "usuário externo".
No orçamento secreto, o relator do projeto do Orçamento da União tem poderes para liberar um montante bilionário em emendas parlamentares para deputados e senadores. Os nomes dos deputados e senadores que são beneficiados não aparecem no sistema do Congresso, só aparece o nome do relator.
Além disso, qualquer cidadão pode entrar no sistema e solicitar a liberação de emendas para obras em um município. Nesse caso, fica registrado o nome da pessoa e, ao lado, a identificação de "usuário externo".
Para o pedido virar de fato liberação de verba, um deputado ou senador tem que apadrinhar a solicitação, e o relator tem que liberar. Novamente, o nome do deputado ou do senador fica oculto.
Esse é um dos motivos pelos quais essa modalidade de emendas parlamentares é chamada de orçamento secreto.
Outros motivos são:

  • os critérios para a distribuição das emendas não são claros e dependem de negociação política com o relator;
  • há menos transparência na aplicação dos recursos que em outros tipos de emendas parlamentares

As emendas de relator, que visavam apenas a ajustes e correções, passaram a comportar — de forma ampliada — autorizações do parecer preliminar para barganhar os interesses dos parlamentares que oferecem contingente apoio ao governo. Desse modo, elas deixaram de ser um instrumento intraparlamentar que acomodava interesses no âmbito da Comissão Mista de Orçamento, precisamente quando resgataram o modus operandi anterior à Emenda 86/2015, para, desse modo, renovar o mecanismo de pressão e frágil formação de coalizão no Legislativo da base fragmentada de sustentação do Executivo.

Ao longo dos últimos anos, aludido regime de participação parlamentar(ista) no ciclo orçamentário foi expandido, sem suficientes instrumentos de controle e responsabilização dos deputados e senadores pelo manejo abusivo das suas emendas.

Vale lembrar que a Lei 13.204/2015 alterou a Lei 13.019/2014, para afastar a exigência de qualquer processo seletivo e impessoal no direcionamento de recursos oriundos de emendas parlamentares para entidades do terceiro setor. Referimo-nos ao seguinte artigo 29:

"Artigo 29. Os termos de colaboração ou de fomento que envolvam recursos decorrentes de emendas parlamentares às leis orçamentárias anuais e os acordos de cooperação serão celebrados sem chamamento público, exceto, em relação aos acordos de cooperação, quando o objeto envolver a celebração de comodato, doação de bens ou outra forma de compartilhamento de recurso patrimonial, hipótese em que o respectivo chamamento público observará o disposto nesta Lei."

Esse é, por sinal, o maior incentivo ao regime jurídico das emendas parlamentares, uma vez que os deputados e senadores podem escolher subjetivamente qual é o CNPJ da entidade beneficiária do repasse.

Sob o pálio do citado artigo 29, a execução das emendas parlamentares é marcada por escolhas estritamente personalistas e paroquiais, bem como pela descontinuidade nos serviços públicos, haja vista a falta de critérios que priorizem as obras já em andamento e os projetos inscritos no planejamento das políticas públicas.

Insistimos em denunciar que o principal atrativo desse instrumento é a liberdade irrestrita de escolha, para além do dever de licitar, provar economicidade ou mesmo justificar o regular emprego do recurso público. Trata-se de uma hipótese anômala de adjudicação direta do objeto contratual, sem seguir sequer o rito de motivação para a dispensa e para a inexigibilidade previsto no artigo 26 da Lei 8.666/1993.

É extremamente preocupante o fato de a emenda parlamentar chegar ao ponto de indicar até o CNPJ da entidade beneficiária, na medida em que não há qualquer filtro de conformidade com o artigo 37, XXI da CF/1988. É uma ordenação excepcional de despesas que permite alocação sem qualquer controle prévio e de difícil controle posterior.

Para fins de contraste, vale a pena lembrar que mesmo quando o Judiciário impõe judicialmente a aquisição de medicamentos para determinado paciente, a escolha alocativa não é tão arbitrária, considerando que há um processo judicial e suas provas. Tampouco se compara ao regime de adiantamento de despesa dentro do limite de dispensa de licitação, onde há certa margem de escolha discricionária de fornecedores e a prestação de contas é posterior.

As emendas parlamentares parecem se revestir de um rito excepcionalíssimo de execução orçamentária, o qual traz consigo riscos incomensuráveis, a pretexto de uma natureza jurídica anômala. Nas indicações secretas para execução das emendas de relator, não há limites para adjudicação direta do objeto contratual, tampouco há provas de um devido processo de escolha conforme a Constituição de 1988. É quase um gasto de natureza privada, legitimado tão somente pelo exercício da função parlamentar.

A analogia mais próxima do que tem ocorrido na realidade brasileira seria a do relator geral como uma espécie de banco sendo demandado por titulares de crédito ali depositados de forma privada (indicações secretas seriam esses saques ao cofre daquele banco para alocação livre). Precisamos nos preocupar com o risco de o orçamento público se comportar como uma espécie de banco que disponibiliza cerca de R$ 20 bilhões/ano em depósitos de parlamentares para sacarem e aplicarem privadamente como bem entenderem.

Para tentar aprimorar o regime jurídico de tais emendas, sugerimos alterar a redação do artigo 29 da Lei 13019/2014, acrescentando-lhe um parágrafo único que obrigue ao cumprimento dos seguintes comandos legais:

I- conformidade com o artigo 26 da Lei 8666/1993 e o artigo 72 da Lei 14133/2021, para que haja processo de motivação/demonstração de economicidade da contratação direta decorrente da emenda parlamentar, em consonância com o artigo 37, XXI da Constituição;

II – vinculação substantiva ao artigo 10 da Lei 13005/2014, ao artigo 36 da Lei 8080/1990 e ao artigo 30 da Lei Complementar 141/2012, que definem parâmetros de aderência aos instrumentos de planejamento setorial dos recursos vinculados à educação e à saúde, respectivamente;

III – ônus de provar o regular emprego dos recursos públicos conforme o art. 93 do Decreto-lei 200/1967 e artigo 2⁰, parágrafo único da Lei 12.257/2011, de modo a obrigar as entidades beneficiárias da emenda parlamentar a prestarem contas dos recursos recebidos.

Além de todas as anomalias no âmbito da despesa, o orçamento secreto parece ter desequilibrado absurdamente as últimas eleições ocorridas em 2 de outubro (a exemplo do que se pode ler aqui), como, a propósito, era sua finalidade implícita desde o início. Abre-se, com isso, o risco de reiteração, ao longo das próximas eleições, de toda sorte de abuso de poder político com recursos do orçamento, na medida em que as regras foram redigidas por quem sabia exatamente o que estava fazendo para dificultar ao máximo os controles.

É incontroverso que o Congresso tem buscado fugir ao controle, evitando a rastreabilidade dos recursos públicos pulverizados nas emendas parlamentares. A bem da verdade, o orçamento secreto potencializa os riscos de apropriação privada dos recursos públicos, tanto para os que almejam apenas satisfazer ao seu curto prazo eleitoral, quanto para o que buscam, por vezes, enriquecer-se ilicitamente.

Como antídoto a isso, cabe resgatar o dever universal de transparência inscrito na Lei de Acesso à Informação em relação às entidades privadas beneficiárias dos repasses oriundos de emendas parlamentares:

"Artigo 2º. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.
Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas."

A sujeição universal aos deveres da transparência e de prestar contas precisa ser resgatada, inclusive com segregação de contas bancárias nas entidades beneficiárias dos repasses, sob pena de negarmos o próprio sentido republicano da Lei de Acesso à Informação. É urgente que exigirmos a plena sindicabilidade das emendas parlamentares, submetendo-as aos influxos constitucionais do controle que regem toda a Administração Pública.

Muito embora as emendas parlamentares, em sua concepção teórica, visassem oxigenar democraticamente o processo de elaboração da lei orçamentária, algumas delas passaram a se comportar como instrumento de captura de significativa parcela do ciclo decisório estatal.

Como noticiado pelo jornalista Breno Pires da revista Piauí, o Tribunal de Contas da União alerta para o fato de que o orçamento secreto nega cumprimento ao planejamento das políticas públicas e tende a pressionar a trajetória da dívida pública, na medida em que: "O Executivo e o Legislativo estão retirando recursos das despesas obrigatórias para cobrir as emendas dos parlamentares. Isso significa que a dívida vai aumentar e, para saldá-la, será necessário recorrer ao endividamento."

Ora, postergar a aplicação dos recursos vinculados (a exemplo do ocorrido com os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), parcelar o pagamento de precatórios, gerar fila de espera no Auxílio Brasil e no INSS, dar causa a passivos judicializados por deliberada omissão quanto à regulamentação e à efetiva oferta de serviços públicos essenciais que amparam a consecução dos direitos fundamentais são exemplos dessa burla à ordenação legítima de prioridades inscrita na Constituição e nas leis de planejamento setorial e orçamentário que direcionam o percurso das políticas públicas.

Quando despesas discricionárias (a exemplo das emendas RP-9) passam à frente e, por isso, direta ou indiretamente implicam o inadimplemento das obrigações legais e constitucionais de fazer, isso deveria gerar uma presunção de irregularidade do gasto, que deveria demandar o ônus da prova, na forma do art. 93 do Decreto-lei 200/1967.

Não é demasiado lembrar que a democracia comporta pluralidade de pretensões e pressões, muitas vezes antagônicas, para que o Estado atue (ou não), em nome da sociedade, nas mais diversas áreas e em face dos mais variados conflitos. Todavia a disputa entre demandas individuais, corporativas e setoriais somente emerge como legítima prioridade de ação estatal, quando obedece a filtros de validação procedimental e material.

De um lado, há que se estimar o custo do processo decisório em termos de tempo e de recursos necessários à ampliação do debate. De outro, é preciso contrapor o risco de concentrar as escolhas estratégicas da vida em sociedade nas mãos de poucas pessoas. Para que a democracia sobreviva e seja aprimorada, é indispensável que quem delega poder esteja consciente e comprometido com a imperativa e correlata tarefa de controlar o seu regular exercício.

Uma boa síntese a respeito desse binômio custo-risco pode ser encontrada no art. 14 do Decreto-Lei 200/1967: "Art. 14. O trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de controles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco".

É possível que haja simplificação do controle se os riscos forem proporcionalmente baixos, até para que sejam menores os seus respectivos custos de operação. Em sentido inverso, se forem destacadamente altos os riscos de desvio de finalidade no manejo do poder que delegamos aos nossos representantes, devemos adotar e/ou aprimorar instrumentos de controle que garantam que não haja tal usurpação, ainda que isso demande mais tempo e maiores recursos financeiros em prol do melhor monitoramento social da ação estatal.

O controle tem sido aquém do necessário para enfrentar o considerável risco de captura trazido pelo orçamento secreto. A bem da verdade, o que temos vivido é um paulatino retorno ao regime pré-Constituição de 1988 de execução privada do orçamento público: impessoalidade, moralidade, publicidade e legalidade não têm sido referências fortes de controle, tampouco há qualquer limite fiscal ou eleitoral na distribuição subjetiva/coronelista de novas benesses em meio ao pleito.

Precisamos, nesse sentido, ressituar o debate em seus pilares óbvios: sem planejamento, impera o caos de curto prazo eleitoral e o risco de apropriação privada dos recursos públicos. Até porque, sem controle e com sigilos longevos, o diagnóstico da corrupção resta pragmaticamente impossível. Aliás, a maior corrupção é exatamente essa: o rebaixamento institucional que nega a própria possibilidade de haver controle, transparência, impessoalidade e limites da lei.

O orçamento secreto revela-se, enfim, como o outro lado da moeda da erosão da rede de controle: ambos expressam uma corrupção estrutural que rebaixa a credibilidade do nosso arcabouço constitucional e literalmente implode a noção de "limite da lei".