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Emendas parlamentares: quanto menos controláveis, mais atraentes

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17 de maio de 2022, 8h03

Nenhuma outra dimensão fiscal explica melhor a realidade brasileira contemporânea do que as emendas parlamentares ao orçamento. São elas que acomodam os acordos de bastidor que garantem tanto a sobrevivência protocolar do teto em ruínas, quanto o frágil funcionamento do presidencialismo nos últimos anos.

Spacca
Muito embora a crise financeira mundial de 2008 e as manifestações de junho de 2013 sejam pontos de inflexão histórica, podemos destacar — na seara do Direito Financeiro — haver sido a Emenda 86, de 17 de março de 2015, que moveu algumas placas tectônicas quando instituiu as emendas individuais impositivas. Desde então, o país assiste a rodadas, cada vez mais crônicas, de instabilidade e disfuncionalidade nas finanças públicas e nas relações entre Executivo e Legislativo.

A impositividade da alocação pulverizada de recursos públicos foi uma reação dos deputados federais e senadores ao manejo abusivo pelo Executivo do contingenciamento. A opção por restringir a execução das emendas parlamentares — na condição de despesas discricionárias sujeitas à programação financeira do Tesouro — visava garantir coalizão e, com isso, aprovar as pautas de interesse do governo no Congresso. Todavia, a barganha feita pelo Executivo com o Legislativo operava, na maioria das vezes, em rota evidentemente contrária à finalidade do artigo 9º da LRF.

O enfraquecimento do governo federal (acentuado a partir das manifestações de 2013) abriu espaço, porém, para que os parlamentares promulgassem a Emenda 86. Com isso, restou pragmaticamente mitigado o principal instrumento fiscal do presidencialismo de coalizão, diante da composição político-partidária extremamente fragmentada do Congresso.

Não há vácuo de poder e como a fraqueza do Executivo tem sido um traço persistente ao longo dos últimos sete anos, o pêndulo político seguiu oscilando favoravelmente na direção determinada pelo Legislativo. Daí é que foram promulgadas três outras emendas constitucionais (ECs 100, 102 e 105, todas de 2019) para ampliar os nichos de impositividade orçamentária em prol das emendas de bancada, bem como para prever as transferências especiais (como expusemos esta articulista e Cláudio Couto, no podcast Fora da Política Não Há Salvação, disponível aqui).

Durante a crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, o Congresso novamente ampliou seu quinhão no orçamento com a expansão das emendas de relator (mais conhecidas como "orçamento secreto"). O equilíbrio cada vez mais frágil de forças entre os poderes políticos garantiu sobrevivência ao Executivo, ao custo da terceirização de parcela considerável da execução das despesas discricionárias para os líderes partidários do chamado Centrão.

As emendas de relator, que visavam apenas a ajustes e correções, passaram a comportar — de forma ampliada — autorizações do parecer preliminar para barganhar os interesses do Centrão e da base de apoio do governo. Desse modo, deixaram de ser um instrumento intraparlamentar para acomodar interesses no âmbito da Comissão Mista de Orçamento, quando resgataram o modus operandi anterior à Emenda 86/2015 e renovaram o mecanismo de pressão na relação entre Legislativo e Executivo (algo de que o Executivo gostou porque lhe permitiu o retorno da barganha com seu grupo de apoio).

Assim, acentuou-se o regime de participação parlamentar(ista) no ciclo orçamentário, sem suficientes instrumentos de controle e responsabilização dos deputados e senadores pelo manejo abusivo das suas emendas.

Eis que chegamos a 2022 e assistimos ao "orçamento secreto" (manejo alargado e opaco das emendas de relator) e ao "Pix orçamentário" (tal como ficaram conhecidas as transferências especiais introduzidas pela Emenda 105/2019), como uma espécie de sequência agravada do que já estava em curso há alguns anos.

Aliás, o ano de 2015 merece destaque também por causa da Lei 13.204, que alterou a Lei 13.019/2014 [1], para afastar a exigência de qualquer processo seletivo e impessoal no direcionamento de recursos oriundos de emendas parlamentares para entidades do terceiro setor. Referimo-nos ao seguinte artigo 29:

"Artigo 29. Os termos de colaboração ou de fomento que envolvam recursos decorrentes de emendas parlamentares às leis orçamentárias anuais e os acordos de cooperação serão celebrados sem chamamento público, exceto, em relação aos acordos de cooperação, quando o objeto envolver a celebração de comodato, doação de bens ou outra forma de compartilhamento de recurso patrimonial, hipótese em que o respectivo chamamento público observará o disposto nesta Lei."

Esse é, por sinal, o maior incentivo ao regime jurídico das emendas parlamentares, uma vez que os deputados e senadores podem escolher subjetivamente qual é o CNPJ da entidade beneficiária do repasse.

Sob o pálio do citado artigo 29, a execução das emendas parlamentares é marcada por escolhas estritamente personalistas e paroquiais, bem como pela descontinuidade nos serviços públicos, haja vista a falta de critérios que priorizem as obras já em andamento e os projetos inscritos no planejamento das políticas públicas.

Insistimos em denunciar que o principal atrativo desse instrumento é a liberdade irrestrita de escolha, para além do dever de licitar, provar economicidade ou mesmo justificar o regular emprego do recurso público. Trata-se de uma hipótese anômala de adjudicação direta do objeto contratual, sem seguir sequer o rito de motivação para a dispensa e para a inexigibilidade previsto no artigo 26 da Lei 8.666/1993.

É extremamente preocupante o fato de a emenda parlamentar chegar ao ponto de indicar até o CNPJ da entidade beneficiária, na medida em que não há qualquer filtro de conformidade com o artigo 37, XXI da CF/1988. É uma ordenação excepcional de despesas que permite alocação sem qualquer controle prévio e de difícil controle posterior.

Para fins de contraste, vale a pena lembrar que mesmo quando o Judiciário impõe judicialmente a aquisição de medicamentos para determinado paciente, a escolha alocativa não é tão arbitrária, considerando que há um processo judicial e suas provas. Tampouco se compara ao regime de adiantamento de despesa dentro do limite de dispensa de licitação, onde há certa margem de escolha discricionária de fornecedores e a prestação de contas é posterior.

As emendas parlamentares parecem se revestir de um rito excepcionalíssimo de execução orçamentária, o qual traz consigo riscos incomensuráveis, a pretexto de uma natureza jurídica anômala. Nas indicações secretas para execução das emendas de relator, não há limites para adjudicação direta do objeto contratual, tampouco há provas de um devido processo de escolha conforme a Constituição de 1988. É quase um gasto de natureza privada, legitimado tão somente pelo exercício da função parlamentar.

A analogia mais próxima do que tem ocorrido na realidade brasileira seria a do relator geral como uma espécie de banco sendo demandado por titulares de crédito ali depositados de forma privada (indicações secretas seriam esses saques ao cofre daquele banco para alocação livre). Precisamos nos preocupar com o risco de o orçamento público se comportar como uma espécie de banco que disponibiliza cerca de R$ 20 bilhões/ano em depósitos de parlamentares para sacarem e aplicarem privadamente como bem entenderem.

Além de todas as anomalias no âmbito da despesa, esse tipo de prática tende a desequilibrar absurdamente o jogo eleitoral para os cargos legislativos. Abre-se, com isso, o risco para toda sorte de abuso de poder político com recursos do orçamento, risco esse chancelado por emenda constitucional, a qual, por seu turno, teve suas regras redigidas por quem sabia exatamente o que estava fazendo para dificultar ao máximo os controles.

Repetimos os erros do passado de forma ainda mais potencialmente danosa ao erário, porque não corrigimos as falhas estruturais do arcabouço normativo das finanças públicas nacionais. Não é de se estranhar, portanto, que o "orçamento secreto" siga cinicamente secreto, em afronta às determinações do Supremo Tribunal Federal.

Fato é que o Congresso parece buscar fugir ao controle, evitando a rastreabilidade dos recursos públicos pulverizados tanto nas emendas impositivas, quanto nas indicações secretas de emendas de relator. A bem da verdade, quão menos suscetíveis de controle, mais atraentes se tornam as emendas parlamentares para os que almejam apenas satisfazer ao seu curto prazo eleitoral, além dos que, em última instância, almejam, por vezes, enriquecer-se ilicitamente.

Como não corrigimos os erros apurados no escândalo dos Anões do Orçamento pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Orçamento (relatório final publicado em 1994), agora os anões se agigantaram no manejo das emendas parlamentares individuais impositivas, de bancada impositivas e de relator geral.

Nesta semana em que se celebra o décimo aniversário da plena vigência da Lei de Acesso à Informação, vale a pena resgatarmos o seu artigo 2º, segundo o qual:

"Artigo 2º. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas."

A sujeição universal aos deveres da transparência e de prestar contas precisa ser resgatada, sob pena de negarmos o próprio sentido republicano da Lei de Acesso à Informação. Às vésperas do calendário eleitoral, nada mais urgente que exigirmos a plena sindicabilidade das emendas parlamentares, submetendo-as aos influxos constitucionais do controle que regem toda a Administração Pública.

Emendas parlamentares que promovem repasses a entidades do terceiro setor continuam a veicular recursos públicos e devemos nos preocupar com quaisquer abusos ou desvios de finalidade. Um risco digno de registro, por fim, é o de que as transferências especiais (Pix orçamentários) sejam manejadas de modo a burlar as vedações do período eleitoral, já que — uma vez feitos os repasses — os recursos passariam a ser formalmente do ente municipal que os recebesse, mas atenderiam à indicação do parlamentar federal. A pergunta que nos fazemos é se tal circunstância teria o condão de afastar os limites procedimentais, temporais e materiais impostos à execução de recursos da União no âmbito das eleições estaduais e nacionais, já que pragmaticamente a execução municipal no 2º semestre deste ano das transferências especiais abriria brechas consideráveis para impactar ilegitimamente o processo eleitoral que se avizinha.

Afinal, não é demasiado repetir: as emendas parlamentares são tão mais atraentes e disputadas quão menos suscetíveis a controle elas se revelarem em um Estado tão exposto a todo tipo de retrocesso e captura.

 


[1] Cuja ementa é a seguinte: "Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999".

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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