De tempos em tempos surgem em nosso país manifestações teóricas de respeitados agentes jurídicos (termo cunhado por Eugenio Raul Zaffaroni para referir-se a todos aqueles que integram determinada agência jurídica; in "Direito Penal Brasileiro", I; Revan Editora, 2003) defendendo alterações na forma de julgamento pelo Conselho de Sentença no Tribunal do Júri.
Em recente publicação nesta respeitada revista eletrônica, foi disponibilizada entrevista a dois grandes teóricos atuais do Direito, Lenio Streck (renomado constitucionalista) e Aury Lopes Jr. (renomado teórico do Direito Processual Penal), na qual abordam suposta necessidade de reformar-se o CPP, para, segundo eles, tornar possível que os votos dos jurados sejam fundamentados.
Em essência, os dois doutrinadores pátrios aceitam a instituição do júri, vez que cláusula pétrea da CF, mas, ao mesmo tempo, defendem a reforma do CPP para que se possa superar a suposta ausência de fundamentação na decisão tomada pelos jurados, seja para absolver ou para condenar o pronunciado submetido a julgamento em sessão plenária.
Segundo os renomados professores e doutrinadores, é inadmissível que em pleno século 21 ainda se aceite que um órgão do Poder Judiciário decida sem necessidade de fundamentação, pois isso violaria, em tese, o disposto no artigo 93, IX, CF.
Para supostamente superar o suposto problema da suposta ausência de fundamentação das decisões adotadas e proferidas pelos jurados no Tribunal do Júri, Lenio Streck sugere a adoção do modelo existente na Espanha, no qual os jurados respondem a um questionário.
Aury Lopes Jr., por sua vez, defende a alteração do CPP para dele extirpar o quesito genérico da defesa e incluir quesitos que retratem o voto dos jurados de forma a captar o fundamento pelo qual o pronunciado foi absolvido ou condenado e que as provas sejam produzidas em plenário.
Ao ponto.
Tenho plena convicção de que os objetivos pretendidos pelos dois professores e doutrinadores podem até ser louváveis.
Entretanto, penso que os argumentos utilizados pelos dois mestres na defesa de alteração na forma em que se dão os julgamentos pelos jurados estão equivocados e retratam — ainda que não pareçam — preconceitos em relação ao Tribunal do Júri e aos jurados, pois:
1) Ao contrário do aludido pelos dois professores e doutrinadores, apesar de a CF não estabelecer que o jurado pode decidir sem necessidade de fundamentação, isso não implica dizer que a CF estabeleça que o jurado deve decidir de forma fundamentada;
2) A CF dispõe em seu artigo 5°, XXXVIII, que ao submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri é assegurada a plenitude de defesa, o que torna legítima a utilização de todo argumento em sua defesa, seja ele jurídico, metajurídico, religioso, moral, amoral, imoral, cultural, idiossincrático etc;
3) Logo, não pode a lei infraconstitucional impor limitação aos argumentos que possam vir a ser utilizados pelo advogado na defesa de seu cliente no plenário do Tribunal do Júri. Do contrário, estaríamos admitindo que uma lei infraconstitucional subverta, mitigue ou anule disposição/garantia explícita contida na CF;
4) Ademais, ao conceder ao acusado a plenitude de defesa e, ao mesmo tempo, assegurar a soberania dos vereditos, a CF estabelece e confirma que a decisão dos jurados não pode ser enclausurada em parâmetros eminentemente legais dispostos na legislação, pois a decisão destes pode e deve ser livre de limites interpretativos daquilo debatido em plenário;
5) Acrescenta-se que o fato de não haver documento que retrate o fundamento explícito pelo qual o jurado absolveu ou condenou o pronunciado não implica que sua decisão tenha sido carente de fundamentação, pois a resposta ao quesito I, artigo 483, CPP retrata que se respondeu afirmativa ou negativamente à pergunta sobre se há uma vítima de crime doloso contra a vida (dependendo de ter havido ou não desmembramento do quesito); a resposta ao quesito II, artigo 483, CPP retrata que o jurado respondeu afirmativa ou negativamente sobre ser o pronunciado autor do delito doloso contra a vida; resposta afirmativa ou negativa ao quesito genérico da defesa implica (artigo 483, III, CP) em aceitar que o pronunciado foi absolvido ou condenado porque o jurado acolheu uma ou mais teses acusatórias ou defensivas, sem que isso implique que sua decisão tenha sido carente de fundamentação;
6) O fato de não haver documento escrito que retrate o fundamento legal adotado pelo jurado para absolver ou condenar um pronunciado julgado pelo Tribunal do Júri não implica que a decisão não tenha sido fundamentada, conforme artigo 5°, XXXVIII, CF.
7) Aliás, o sigilo da votação disposto no artigo 5°, XXXVIII, CF é taxativamente cumprido com a forma atual de resposta ao quesito genérico da defesa, pois sigilo não quer dizer apenas que não se saiba como votou cada jurado, mas também, e principalmente, por que o jurado votou em determinado sentido;
8) Logo, qualquer alteração legislativa que busque ou imponha dispositivo que enclausure o jurado em perguntas cujas respostas retratem entendimento atrelado apenas às possibilidades ditadas pelas normas legais estará desfigurando o Tribunal do Júri e tornando inócua sua natureza, pois, de forma tergiversada, estaríamos transformando os juízes leigos em arremedo de juízes togados (sem concurso público e investidura) e vilipendiando o princípio da plenitude de defesa insculpido no artigo 5°, XXXVIII, CF;
9) Ademais, caso estabelecêssemos que o jurado deve fundamentar por escrito o seu voto pela absolvição ou condenação com espeque em normas legais, estaríamos extinguindo o Tribunal do Júri em nosso país, vez que: para que julgamento por sete jurados leigos se estes somente podem decidir da mesma forma e considerando os mesmos preceitos legais que deveriam ser observados pelo juiz togado?;
10) Aliás, faria tábula rasa da garantia de plenitude de defesa, pois manietaria o advogado, que somente poderia utilizar-se de argumentos legais na defesa do pronunciado, vez que os jurados somente poderiam considerar esses a hora de proferir seu voto/decisão;
11) Acrescenta-se que o posicionamento do professor e advogado Lenio Streck chega a violentar as premissas por ele sempre referidas em seus brilhantes artigos aqui na ConJur, pois, conforme por ele sempre ensinado: "Uma jurisdição que obedeça a força normativa da Constituição, a coerência e a integridade do direito tem muito mais condições de garantir a democracia do que decisões pragmáticas e a construção de jurisprudência(s) defensiva(s)".
Logo, hoje, amanhã e sempre que viger a Constituição de 1988 em nosso país, qualquer alteração legal que objetive e disponha sobre eventual dever de o jurado fundamentar em normas legais sua decisão estará violentando a CF e o âmbito histórico no qual se assenta o Tribunal do Júri no Brasil.
Sobre a proposta do advogado e professor Aury Lopes Jr. de que as provas sejam produzidas no Plenário do Tribunal do Júri, resta dizer que é feita por alguém que, certamente, não tem experiência de atuação nesse tipo de tribunal, pois um bom promotor de acusação e um bom defensor, em regra, não faz qualquer questão de produção de provas testemunhais no Plenário do Júri, pois torna a sessão monótona e longa, sem qualquer resultado prático favorável a qualquer das teses de acusação ou de defesa arguidas em Plenário e, consequentemente, não tem qualquer influência maior na decisão a ser tomada pelos jurados.