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Faucz: ‘Caso boate Kiss’: roga-se por respeito à Constituição

15 de dezembro de 2021, 15h05

Por Rodrigo Faucz Pereira e Silva

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Nesta terça-feira (14/12) o ministro Luiz Fux determinou a prisão imediata dos acusados condenados no júri da Boate Kiss, derrubando a liminar concedida pelo desembargador José Manuel Martinez Lucas, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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Com o devido respeito, a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal contraria diversos dispositivos legais e constitucionais. Para além da controversa competência, chama atenção o ministro ter se referido a "grave lesão ao interesse publico", "de grave comprometimento à ordem e à segurança pública na manutenção da decisão impugnada", também de "impactos para as comunidades local, nacional e internacional", além de que "a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social". Justificativas essas sabidamente utilizadas para distorcer o sistema de garantia dos cidadãos, sempre dispostas a adequar o caso concreto à vontade individual do julgador.

O uso de conceitos subjetivos no âmbito do processo penal visa a justificar o juridicamente injustificável, permitindo a destruição de valores caros ao Estado democrático de Direito.

Casos de grande repercussão (como o da Boate Kiss) deveriam ser tratados com um respeito e cautela ainda maior. Isso porque resta evidente que as premissas adotadas em tais casos refletem para diversos outros. Lamentavelmente, direitos são "excepcionalmente" violados em casos paradigmáticos no processo penal, justificados em um "funcionalismo" ou "utilitarismo" típico do processo civil. Um verdadeiro absurdo pelo viés da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos.

Os princípios processuais penais, previstos expressamente na Constituição, sempre foram (sempre serão e precisam ser) contramajoritários. Obviamente que o desejo da vítima, da "sociedade" (desde que devidamente embebecida pela mídia ou redes sociais) e daqueles que se regozijam da perversidade sempre será o da punição. E é aí que entra o processo penal, buscando evitar a sanha punitivista popular e garantir as regras do fair trial. Não há decisão condenatória legítima sem o cumprimento integral do devido processo legal. É o ônus de se viver em um Estado de Direito.

A alteração do pacote "anticrime", prevendo a execução da pena para aqueles condenados a mais de 15 anos de reclusão, também foi citada. Tanto pelo juiz presidente do caso, quanto pelo Ministério Público, quanto pelo ministro Luiz Fux (que escreveu que se trata de "requisito temporal objetivo e inafastável, plenamente satisfeito no presente caso").

No entanto, há um dado objetivo que está sendo ignorado: o fato aconteceu em 2013. Portanto, muito antes da famigerada alteração pela Lei 13.964/2019.

Por mais que o artigo 2º do CPP preveja o princípio da imediatividade, a alteração do artigo 492, I, do CPP corresponde a uma norma que restringe diretamente a liberdade do acusado, podendo ela ser aplicada apenas nos casos em que o fato criminoso tenha ocorrido após a entrada em vigor da lei [1]. Portanto, por um critério intertemporal, a lei não poderá retroagir, devendo ser afastada a aplicação da execução imediata da pena por esse viés.

Outro ponto que merece maior reflexão é a utilização indevida do princípio da soberania dos vereditos. Consta na decisão que "uma vez atestada a responsabilidade penal dos réus pelo Tribunal do Júri, deve prevalecer a soberania de seu veredito, nos termos do artigo 5º, XXXVIII, 'c', da Constituição Federal, com a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, ante o interesse publico na execução da condenação".

Mais uma vez, olvida-se que a soberania dos vereditos é uma garantia explícita constitucional do cidadão! Por uma questão de interpretação sistemática e lógica, trata-se, oras, de uma garantia do cidadão. E, obviamente, jamais se pode interpretar uma garantia do cidadão contra o próprio cidadão. Até quando precisaremos dizer obviedades?

Ademais, a conceituação do princípio da soberania dos vereditos é reconhecidamente simples e direta: não se admite reforma de mérito da decisão do Tribunal do Júri. O que não quer dizer que, com a decisão do júri, ocorra uma espécie de trânsito em julgado automático. Aliás, longe disso. São inúmeros os casos de anulação da sessão de julgamento não apenas por decisões manifestamente contrárias à prova dos autos, mas, principalmente, por conta de nulidades.

Sobre esse aspecto, por mais que não seja objeto de análise deste artigo, o julgamento do caso da Boate Kiss, transmitido ao vivo pela internet, apontou, salvo melhor juízo, uma quantidade razoável de possíveis nulidades. Seja o protagonismo demonstrado pelo juiz-presidente, seja na referência da acusação ao silêncio dos acusados, no sorteio de jurados apenas uma semana antes da sessão, ou ainda, o que considero mais grave, a redação dos quesitos.

Isso significa que há, sim, possibilidade de anulação do julgamento. Quem decidirá a questão será o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sem afastar eventuais recursos posteriores. A corte também decidirá sobre a dosimetria da pena, que, desde já, basta verificar qualquer manual de Direito Penal para saber que exageros terão que ser corrigidos.

Aponto mais algumas questões em relação à decisão do presidente do STF, como sua afirmação de que teria uma "altíssima reprovabilidade social das condutas dos réus", desconsiderando o fato de que a condenação sequer foi por dolo direto e, sim, pelo (improvável, diga-se) dolo eventual. Também asseverou que o impedimento da imediata execução da pena pelo desembargador ocorreu "ao arrepio da lei e da jurisprudência", desprezando o entendimento de ambas as turmas do Superior Tribunal de Justiça [2] e as centenas de decisões dos tribunais estaduais.

Contudo, por derradeiro, a decisão do ministro Luix Fux certifica que a "a decisão impugnada do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul causa grave lesão à ordem pública ao desconsiderar, sem qualquer justificativa idônea, os precedentes do Supremo Tribunal Federal e a dicção legal explícita do artigo 492, §4ª, Código de Processo Penal". Não há como compactuar com essa argumentação.

Como já explicado aqui e em diversos outros textos [3], a justificativa contrária à execução imediata da pena é plenamente idônea e, ressalto, a única em conformidade com o texto constitucional, como já bem apontado por inúmeros juristas, entre eles: Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa; Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo; Geraldo Prado; Lara Teles Fernandes; Caio Paiva; Renato Brasileiro Lima ("Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19 – Artigo por Artigo". Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 337 e 338); Eugênio Pacelli ("Curso de Processo Penal". 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 1354-1355); Aury Lopes Jr. ("Direito processual penal". 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1331-1339); e Gustavo Badaró ("Processo Penal". 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 834). Não por outro motivo, o próprio Supremo Tribunal Federal está se debruçando atualmente sobre o tema [4].

O nível de civilidade de um povo tem relação direta com o sistema de garantias processuais penais. Não podemos descambar para barbárie chancelada pelos órgãos oficiais. Por mais que saibamos que as pessoas somente dão valor aos princípios constitucionais quando seus próprios direitos são violados, a comunidade acadêmica pede um pouco de humanidade e deferência às regras do Estado democrático de Direito. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também merece respeito, assim como os acusados. A execução imediata da pena viola diretamente o princípio da presunção de inocência, o princípio da igualdade e o princípio do duplo grau de jurisdição.

O Tribunal do Júri fará 200 anos em 2022. Apenas funciona de maneira efetiva em estados verdadeiramente democráticos. Assim como o próprio processo penal, precisa ser aperfeiçoado para minimizar a possibilidade de erros e permitir que os acusados sejam julgados de maneira justa. Infelizmente ainda somos obrigados a pugnar por respeito à Constituição Federal, ao processo penal e ao Tribunal do Júri (como parte do sistema de garantias), mesmo após quase dois séculos de funcionamento da instituição e mais de 30 anos de vigência da Constituição.

 


[1] Nesse sentido, por exemplo, as lições de Grandinetti (CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.); Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 115) e Aury Lopes Jr. (LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17a. ed. São Paulo: Saraiva Educaçao, 2020).

[2] Como muito bem apontado por Daniel Avelar recentemente em texto aqui na ConJur: "Porém, enquanto o STF não aprecia em definitivo a questão, o STJ, por ambas as turmas, já firmou o entendimento no sentido de que não se admite a execução imediata de condenação pelo Tribunal do Júri, sob pena de afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência".

[3] Já me manifestei em diversos textos e obras sobre o tema: PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; FELIX, Yuri. A mitigação do duplo grau de jurisdição no pacote anticrime comentários ao artigo 492 do CPP. Boletim IBCCrim, 28, 331, jun/2020. p. 21; PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 513; PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 217.

[4] Julgamento do RE 1235340/SC de Relatoria do ministro Luis Roberto Barroso. Destaca-se o posicionamento do ministro Gilmar Mendes: "A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (artigo 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do artigo 312 do CPP, pelo Juiz Presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados".