Embora se assuma que várias questões são discutidas pela via do Habeas Corpus por conta de falhas do próprio Judiciário ou em razão do desrespeito dos tribunais inferiores à jurisprudência do STJ, a tônica dos pronunciamentos vai na linha da restrição ao emprego do writ.
É empírica e teoricamente equivocada a ideia de que o Habeas Corpus atrapalhe a produtividade do STJ ou de que não permita a uniformização da jurisprudência. Primeiro, com o perdão da obviedade, porque é missão deste tribunal superior julgar Habeas Corpus, ou seja, está compreendido naquilo que se pode chamar de produtividade, inclusive no que diz com a uniformização da jurisprudência.
Tomemos como exemplo a questão da liberdade até o trânsito em julgado. O Supremo Tribunal Federal, em 2016, definiu a prisão em segunda instância por meio de um HC (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Embora tal decisão não tivesse efeito vinculante, como reconhece a matéria do dia 29/2, “o precedente foi adotado em todo o país”. Antes ainda, em 2006, o Pleno do STF, também pela via do writ, havia reconhecido a possibilidade de o sujeito ficar em liberdade até o trânsito em julgado, salvo as hipóteses de prisão preventiva (HC 84.078, do qual foi relator o ministro Eros Grau, DJ 5 de fevereiro de 2009).
Esse vai e vem do STF gerou a impetração de inúmeros Habeas Corpus e, convenha-se, não poderia ser diferente. O aumento da atividade jurisdicional na área penal e o aparelhamento das Defensorias, como lembrou a ministra Laurita Vaz (29/2), também implicou o aumento de impetrações. Noutro giro, é bom recordar que, em fevereiro de 2006, o STF, também em Habeas Corpus (HC 82.959, relatado pelo ministro Marco Aurélio), aliás, impetrado por um preso, julgou inconstitucional a regra da Lei dos Crimes Hediondos que impôs o regime integralmente fechado para os condenados por crimes hediondos e os que lhe são equiparados (Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 1º). Posteriormente, sempre incidenter tantum, declarou-se a inconstitucionalidade do artigo 40 [1], III, da Lei 11.343/2006, que vedava a concessão de liberdade provisória sem o exame da presença dos pressupostos cautelares (HC 104.339, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 6 de dezembro de 2012). Idem ao se julgar a inconstitucionalidade do artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/2003 (HC 100.362, relator ministro Celso de Mello, DJe 7 de dezembro de 2009).
O ponto é que se o STF consegue pela via mandamental estabelecer teses de caráter geral, como, aliás, o Habeas Corpus coletivo para mulheres (HC 143.641, julgamento em 21 de fevereiro de 2018, relator ministro Ricardo Lewandowski), por que seria diferente com o STJ?
É preciso dizer que se a inconstitucionalidade pode ser declarada numa ação direta de inconstitucionalidade ou num recurso extraordinário, pode igualmente num HC. O mesmo vale para o recurso especial. O que nele se chama de negativa de vigência da lei pela sua preterição em caso em que deveria incidir (negativa direta) ou indevida aplicação a fato no qual a lei não deveria ser aplicada (negativa indireta), no campo do writ isso recebe o nome de constrangimento ilegal. Em outras palavras, deixar de aplicar uma atenuante quando ela tem lugar pode ser chamado de negativa de vigência da lei ou de constrangimento ilegal. O mesmo, sem tirar e nem por, se dá quando se aplica uma agravante indevida. Veja-se que tanto no recurso especial como na ação autônoma de impugnação do habeas não se admite a discussão dos fatos. Daí a sábia decisão da lavra do saudoso ministro Assis Toledo no HC 17, referindo-se especificamente à substituição do recurso especial pelo habeas:
Sendo assim, como no recurso especial, criado pela Constituição de 1988 (artigo 105, III), o objeto só pode ser, da mesmíssima forma que no Habeas Corpus, uma quaestio iuris, não uma intricada quaestio facti, é possível prever-se a substituição de um pelo outro, quando houver coincidência de fundamentos e interesse da parte em apressar a decisão judicial. [2]
Não há, com efeito, razão lógica e nem jurídica para se impedir o manejo do writ quando a questão versada for compatível com seus limites de cognição. Envolvendo questão puramente de direito, ainda que controvertida ou de alta indagação, a ordem deve ser conhecida, pois a Constituição, ao disciplinar o Habeas Corpus, impõe que sempre se concederá a ordem quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer constrangimento ilegal em sua liberdade de ir e vir (artigo 5ª, inciso LXVIII). De resto, com o ministro Pertence, não custa lembrar que é princípio sedimentado na jurisprudência brasileira de que a recorribilidade da decisão ou a efetiva pendência de recurso contra eles não inibe a admissibilidade paralela do Habeas Corpus [3]. Idem: “É cabível Habeas Corpus mesmo quando pendente julgamento de recurso de apelação que veicule a mesma questão” (HC 77.858, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 12 de fevereiro de 1999).
Como advertiu o desembargador Dante Busana, ainda ao tempo do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:
Garantia constitucional e ação de direito processual constitucional, o Habeas Corpus não conhece outros limites que os estabelecidos na Carta Magna. Inaceitável sustentar, como faz a ilustrada Procuradoria de Justiça, seu não cabimento em hipótese em que haveria constrangimento ilegal à liberdade física porque prescrita a pretensão punitiva, a pretexto de que quem a sofre apelou da sentença condenatória e no julgamento do recurso a eventual extinção da punibilidade poderá ser melhor apreciada. [4]
Em resumo, o tribunal é produtivo quando julga Habeas Corpus e pode cumprir sua missão constitucional de uniformização da jurisprudência também pela via mandamental. É, para exemplificar, exatamente o que se fez no julgamento do HC 435.934, ao se repudiar a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos: “Não é possível a concessão de ordem indiscriminada de busca e apreensão para a entrada da polícia em qualquer residência” (relator ministro Sebastião Reis Jr.) Por fim, não é por outra razão que boa parte das súmulas editadas pela 3ª Seção do STJ foram fruto de julgamentos em Habeas Corpus.
[1] Os crimes previstos nos arts. 33, caput e parágrafo 1º, e 34 a 37 desta lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
[2] 3ª Seção, DJ 26/6/1989.
[3] RHC n. 82.045, DJ 25.10.02; HC n.º 82.968/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20.06.2003; HC n. 83.346, do mesmo relator, DJ 19/8/2005 e STJ HC n.º 77703/SP, rel. Min. Laurita Vaz, DJ 29.6.07.
[4] JUTACRIM, ed. Lex, 74/140-142.