Consultor Jurídico

Opinião: “Fake jurisprudência”, o STF e a voz da pós-verdade

22 de setembro de 2018, 6h32

Por Walter Vieira Ceneviva, Izabel Cristina Pinheiro Pantaleão Ferreira

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Este Consultor Jurídico noticiou decisão da ministra Rosa Weber que convalidou aplicação da pena de suspensão contra emissora de rádio que apresentou, fora do horário imposto, o programa A Voz do Brasil (veja aqui).

Segundo a ministra, o Supremo teria apreciado o tema ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 561. A ministra diz ainda que o Supremo concluiu que a exibição de A Voz do Brasil é constitucional. Por fim, asseverou que a pena de suspensão é cabível.

Mas nada disso é verdade: pode-se chamar esse tipo de decisão de "fake jurisprudência", um produto da era contemporânea, em que as autoridades perdem vínculo com a verdade e com a realidade dos fatos e passam a trabalhar com a chamada pós-verdade.

Há inúmeras decisões da suprema corte, monocráticas ou colegiadas, todas uníssonas na mesma mentira "goebbeliana" de que o STF teria julgado a ADI 561 e de que tal ADI diria respeito ao programa A Voz do Brasil.

O tema é grave. A partir da adoção, pelo Brasil, do sistema de valorização dos precedentes (especialmente o efeito vinculativo para as decisões proferidas em temas de repercussão geral, no STF, ou em recursos repetitivos, perante o STJ), o precedente adquire um valor jurídico de lei ou, por vezes, até de regra constitucional, de tal maneira que a construção do precedente deve observar um rigor extraordinário.

É perigosa a edificação de precedentes a partir de uma mentira goebbeliana[1].

Explicamos.

A Lei 4.117/62 (que rege o rádio e a televisão e impõe ao povo A Voz do Brasil) nunca foi confrontada face à nova ordem constitucional, no Supremo Tribunal Federal.

Assim, são mentiras goebbelianas as assertivas (i) de que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 561 “declarou” a recepção da Lei 4.117/62 pela Constituição Federal e (ii) de que o entendimento estabelecido na ADI 561 foi pela obrigatoriedade de retransmissão do programa A Voz do Brasil.

A ADI 561 foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores e argumentava, na petição inicial, que o Decreto 177/91, que trata dos Serviços Limitados de Telecomunicações (serviço esse previsto na mesma lei), ultrapassou os limites de seu poder regulamentar, pois “desconsiderou a orientação constitucional que preceitua a forma taxativa que a exploração de serviços de telecomunicações e afins é monopólio exclusivo da União, não podendo ser objeto de prestação de serviços por pessoas jurídicas de direito privado, não controladas pela União, que o explorariam mediante permissão ou concessão do poder público”[2]. Assim, o PT pediu concessão de medida liminar para declarar inconstitucional e de nenhuma eficácia o Decreto 177 de 17 de julho de 1991, que regulamenta os Serviços Limitados de Telecomunicações[3].

Nada no Decreto 177/91 diz respeito ao tema rádio; nada diz respeito ao programa A Voz do Brasil, ou a qualquer tema ligado à comunicação social. Tudo no Decreto 177/91 é matéria pertinente ao mundo das telecomunicações (o qual era regido pela Lei 4.117/62).

Portanto, a mentira número um é dizer que a ADI 561 trata de A Voz do Brasil ou de radiodifusão. Ela trata de outro tema!

Além disso, a ADI 561 foi não conhecida pelo Plenário do STF, o que acarreta dizer que não houve pronunciamento sobre o mérito da questão, conforme ata da sessão de 23/8/1995: “O Tribunal não conheceu da ação e julgou prejudicado o pedido de medida liminar, vencidos, em parte, os Ministros Sepúlveda Pertence, Presidente, e Maurício Corrêa, que julgavam prejudicada a ação contra os artigos 6º e 8º do Decreto nº 177, de 17.7.91, em face da superveniência da EC nº 8/95 e não conheciam a ação quanto ao restante. Votou o Ministro Maurício Corrêa; não participou da votação o Ministro Francisco Rezek (art. 134, §2º, com redação da ER nº 2/85)”.

Sobre o sentido do “não conhecimento”, o magistral José Carlos Barbosa Moreira ensina que:

“A expressão ‘não conhecer’ de um recurso significa, só e sempre, abster-se de examinar a impugnação em sua substância, de aprovar ou desaprovar a decisão recorrida”[4].

A doutrina de Barbosa Moreira foi amplamente acatada pelo Plenário do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 298.694-1[5], durante o qual a antiga tradição de não conhecer recursos que, em verdade estavam sendo improvidos, foi enterrada, como porta para a “independência” do STF[6]. Nessa assentada, afirmou o relator:

“Já denunciada pelo notável Castro Nunes, a confusão entre a admissibilidade e o provimento do RE, a tem sido objeto de crítica veemente e de inequívoca procedência de Barbosa Moreira” (pg. 1.302).

Ora, a ADI 561 não foi conhecida, ou seja, o STF afirmou-se interditado de apreciar a Lei 4.117/62 naquela ação. Assim, não houve o fenômeno da coisa julgada material sobre a questão. Não houve qualquer pronunciamento de constitucionalidade ou inconstitucionalidade por essa corte. As considerações e ilações a respeito da Lei 4.117/62 não foram debatidas nem discutidas nem votadas pelo Pleno do STF, por isso não se constituem precedentes para nada.

Tanto é assim que, como já asseverado anteriormente, o ministro Marco Aurélio já afirmou ser necessário discutir a questão da obrigatoriedade (ou não) de transmissão do programa A Voz do Brasil:

“É citado o precedente formalizado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 561, e não se conheceu do pedido veiculado, porque direcionado contra Decreto, e não Lei. Conferi e o acórdão é da lavra do Min. Celso de Mello, ele não deixa, invariavelmente, pedra sobre pedra. Mas não houve, pelo Plenário, a adoção de entendimento quanto à obrigatoriedade, ou não de transmissão. Considerado esse aspecto, peço vênia à relatora para prover os agravos a fim de que o Supremo se pronuncie, ou seja, se, no caso, ocorre, ou não, a transgressão à liberdade de informar, como se entende que se deva informar, ou se as concessionarias estão compelidas, por serem concessionárias, a observar a transmissão em certo horário” (Ag. no RE 602.640) — grifos nossos.

Essa mesma advertência foi repetida por diversas vezes, mas o “fake” prevaleceu, goebbelianamente[7].

Esta, então, a mentira número dois: afirmar que o Supremo julgou alguma coisa na ADI 561.

Decisões como a noticiada pelo Consultor Jurídico devem ser objeto de atenção da suprema corte e de preocupação da sociedade: é inaceitável que precedentes judiciais se constituam com base numa mentira factual.

Pode ser até que o Supremo Tribunal Federal encontre razão para convalidar esta imposição ditatorial repugnante que é o programa A Voz do Brasil.

Mas, neste caso, é dever constitucional da suprema corte produzir e tornar público para a sociedade a fundamentação válida. Para tanto, não serve a repetição mecânica de uma mentira factual. O Supremo nunca julgou ADI 561. A ADI 561 nunca tratou de A Voz do Brasil.

Bom será que o Supremo Tribunal Federal acate o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal, pois a corte já se manifestou pela ampla liberdade de manifestação e expressão, no julgamento da ADPF 130 (que discutiu a constitucionalidade da Lei de Imprensa).

No referido caso, a ministra Ellen Gracie manifestou entendimento segundo o qual não pode existir óbice à liberdade de expressão. Vejamos:

“Caberá sempre ao Poder Judiciário apreciar se determinada disposição legal representou verdadeiro embaraço ao livre exercício de manifestação, observadas as balizas constitucionais expressamente indicadas, conforme disposto no artigo 220, §1°, da Constituição, nos incisos IV, V, X, XIII e XIV do seu artigo 5°.
Em conclusão, Senhor Presidente, acredito que o artigo 220 da Constituição Federal, quando assevera que nenhum diploma legal conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade conferida aos veículos de comunicação social, observado o disposto no artigo 5°, IV, V, X, XIII e XIV, quis claramente enunciar que a lei, ao tratar das garantias previstas nesses mesmos incisos, esmiuçando-as, não poderá nunca ser interpretada como empecilho, obstáculo ou dificuldade ao pleno exercício da liberdade de informação”.

Já o ministro Celso de Mello pontuou que a liberdade de expressão deve ser observada nos julgamentos da corte, não podendo haver lei que limite essa tal liberdade:

“O conteúdo dessa Declaração, Senhor Presidente, revela-nos que nada mais nocivo, nada mais perigoso do que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de há de ser livre — permanentemente livre, essencialmente livre, sempre livre”.

O Supremo Tribunal Federal dignificou a Constituição Federal com decisões clássicas, relativas à liberdade de expressão: inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (ADPF 130), inexigibilidade de diploma para exercer a profissão de jornalista (RE 511.961), constitucionalidade da Marcha da Maconha (ADPF 187), liberdade constitucional para publicação de biografias (ADI 4.815), dentre outros tantos significativos precedentes.

Portanto, saber se a transmissão de A Voz do Brasil é obrigatória (ou não) é juridicamente relevante. Se é verdade que “cala a boca já morreu” (ministra Cármen Lúcia, ADI 4.815), então a retransmissão do programa A Voz do Brasil não pode ser obrigatória — o que se constitui numa questão jurídica que se extravasa a esse processo em específico.

Importante ponderar que o STF julgou que a pena de suspensão de emissoras é inconstitucional, na ADI 869, que tratou do artigo 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal ação constitucional foi julgada procedente, por unanimidade, para declarar a inconstitucionalidade, no parágrafo 2º do artigo 247, do ECA, da expressão “ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números”.

Nessa ADI, afirmou o relator, ministro Ilmar Galvão:

“Todas as limitações passíveis de serem opostas à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas, ante o tom peremptório dos precedentes indicados, hão de estar estabelecidas, de modo explícito ou implícito, na própria Constituição”[8].

Nessa decisão, o STF decidiu que a proteção da criança e do adolescente se sobrepõem à liberdade de informar, mas não ao ponto de permitir sua supressão, por suspensão de emissora ou veículo de comunicação, como sanção por infração à lei. O STF reconheceu uma proibição contra o Poder Legislativo, de prever penas de suspensão de veículos de comunicação, e contra o Poder Judiciário, como se vê das manifestações dos ministros Moreira Alves, Neri da Silveira e Marco Aurélio na mesma ADI, de aplicar penas que suprimissem a informação.

Dito tudo isso e considerando que A Voz do Brasil, por imposição legal, “cala a boca” das emissoras, uma hora por dia, é flagrante que o artigo 38, “e” da Lei 4.117/62 é inconstitucional. Mas, mais importante, o caso dessa “fake jurisprudência”, a jurisprudência baseada em falsos, está a reclamar que o STF se detenha no tema, encerre a má prática de adotar precedente inexistente e profira, 30 anos depois da Constituição cidadã, uma decisão que julgue o mérito do tema. “Delenda” A Voz do Brasil! (como diria o senador romano Catão, o Velho).


[1] Paul Joseph Goebbels (1897-1945) foi ministro da Propaganda na Alemanha nazista e autor da célebre frase: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
[2] Fls. 02, terceiro parágrafo.
[3] Fls. 12, segundo parágrafo.
[4] Que significa “não conhecer” de um Recurso? (p. 191 da Revista Nº 9 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, disponível em http://www.ablj.org.br/revistas/revista9/revista9%20%20JOS%C3%89%20CARLOS%20BARBOSA%20MOREIRA%20-%20Que%20significa%20'n%C3%A3o%20conhecer'%20de%20um%20Recurso.pdf , acessado em 20/9/2018.
[5] DJ 23/4/2004; Recurso Extraordinário 298.694-1 São Paulo; relator min. Sepúlveda Pertence; recorrente: Município de São Paulo; recorridos: Edna Maria Locatelli e outro. Maioria de votos, vencido o ministro Moreira Alves, julgado em 6 de agosto de 2003.
[6] Vide o voto do ministro Nelson Jobim, nesse mesmo acórdão, pg. 1.320.
[7] Confiram-se também o Ag. no RE 602.421, RE 725.418/SP, Ag. no RE 608.172, Agr. Reg. no RE 1.001.493/SP.
[8] Ação Direta de Inconstitucionalidade 869-2, Distrito Federal, relator min. Ilmar Galvão, requerente o Procurador-Geral da República, DJ 4/6/2004, Pleno, votação unânime.