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Tribunais dos EUA discutem se blogueiros têm proteção de jornalistas

25 de junho de 2014, 13h01

Por João Ozorio de Melo

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Um tribunal de recursos de São Francisco (Califórnia), decidiu que a agente imobiliária Crystal Cox é jornalista, porque ela escreve um blog. Um tribunal de primeiro grau havia condenado a blogueira por difamação, porque ela não era jornalista e, portanto, não tinha proteção da lei americana que dá certas garantias para esses profissionais.

Há alguns anos, a agente imobiliária começou a escrever um blog, que deveria ser sobre acontecimentos do mercado. Mas, desde logo, mostrou um gosto por investigação e denúncias de escândalos. Arrumou uma briga com a Associação Nacional de Agentes Imobiliários, quando aproveitou uma denúncia do jornal The New York Times, relacionada a um processo de falência.

A reportagem do jornal descrevia a condenação de executivos de uma empresa, por fraudar os clientes. A blogueira fez investigações próprias e acusou, em seu blog, o advogado Kevin Padrick, que era o administrador judicial da falência, de usar informações privilegiadas para confiscar o restante dos ativos para ele e para sua empresa, a Obsidian Financial Group, de acordo com o Jornal da ABA (American Bar Association).

Em 2011, Padrick e sua empresa processaram Crystal Cox por difamação. Em primeiro grau, o juiz mandou a blogueira pagar indenizações, por danos, aos demandantes: US$ 1,5 milhão para o advogado e US$ 1 milhão para a Obsidian. O juiz decidiu que a blogueira falhou em provar seu status de jornalista. Refutou o argumento da blogueira de que caberia aos demandantes apresentar provas: a de que o que ela publicou era falso ou que ela agiu negligentemente”.

Mas o tribunal de recursos de São Francisco “restituiu o status de jornalista” da agente imobiliária tornada blogueira. O juiz Andrew Hurwitz escreveu, na decisão tomada por um painel de três juízes, que “ela tem direito às proteções tradicionais da lei que trata da difamação”. Remeteu o processo para o tribunal de primeiro grau, instruindo que os demandantes têm, sim, de provar que o que ela escreveu era falso.

Assim, o tribunal de recursos estabeleceu que “blogueiros, mesmo que não sejam profissionais do jornalismo, têm o mesmo nível de proteção contra processos por difamação que os jornalistas tradicionais”. A blogueira, como um jornalista, também não é obrigada a revelar, em juízo, quem foi sua fonte de informação.

“As proteções da Primeira Emenda da Constituição à liberdade de expressão não distingue se o demandado é ou não um jornalista treinado, formalmente empregado por uma empresa tradicional de comunicação, que foi além da reportagem publicada por um jornal e tentou revelar outros lados da história”, decidiu o tribunal de recursos.

“A decisão é importante porque blogueiros não ligados à mídia também ajudam a divulgar muitas informações. Da mesma forma que a imprensa institucional precisa ter confiança de que pode se expressar, sem ficar sob a ameaça de processo tão facilmente, os blogueiros também precisam dessa proteção. Ao mesmo tempo, todo mundo sabe que há remédios judiciais contra a denúncia irresponsável pela Internet”, escreveu o especialista Thomas Goldstein, que protocolou um “amicus brief” em nome do SCOTUSblog.

Na verdade, há uma diferença fundamental entre o blog com características jornalísticas, escrito por qualquer pessoa, e o blog que desanda para a difamação: o que é de interesse público é jornalístico, o que é de interesse pessoal não é.

Uma decisão da Suprema Corte dos EUA, de 1974, considerou essa perspectiva, de certa forma: “Uma pessoa que processa outra por difamação não precisa apresentar provas de que houve má intensão (ou dolo) por parte do demandado. Mas, se as informações [no blog, no caso] tratam de uma matéria de interesse público, o demandante deve provar que houve negligência ou culpa por parte do demandado”. O tribunal enfatizou que estabelecer a culpa é importante para proteger “a imprensa contra os rigores da responsabilidade estrita pela difamação”.

O professor de Direito da Universidade da Califórnia de Los Angeles, Eugene Wolokh, que representou Crystal Cox no tribunal de recursos, disse que, para ele, o principal significado da decisão dos juízes foi a de que a mídia não institucional deve ser tratada da mesma forma que a mídia institucional.

“Eu penso que a questão é a da liberdade de expressão, que se aplica igualmente a todos que falam para o público. Hoje, mais do que nunca, é preciso entender que não se pode criar cidadãos de segunda classe: aqueles sem liberdade de expressão. Além disso, está cada vez mais difícil distinguir o que é mídia institucional do que não é”, ele declarou.

Em sua decisão, os juízes do tribunal de recursos disseram que o mais importante, na comparação entre a liberdade de expressão e adifamação, é estabelecer se a pessoa que se sente difamada é uma figura pública ou uma pessoa privada. E se as informações, descritas como difamação, têm importância pública ou se é apenas uma pendenga pessoal.

No caso perante os tribunais, o administrador judicial da falência qualifica mais como pessoa privada do que uma figura pública, diz o tribunal. No entanto, a denúncia da blogueira não era um assunto pessoal. Era um assunto de interesse público, porque o administrador judicial falhou em sua tarefa de proteger os investidores, em benefício próprio. Nesse caso, o demandante teria de provar que as informações eram falsas. Se isso fosse provado, então o caso seria de difamação.