Escritos de Mulher

Escritos de Mulher está de volta e analisa deep nudes

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15 de novembro de 2023, 8h00

O espaço pensado e criado para potencializar as vozes das mulheres no Direito está de volta após breve pausa. Por aqui, escrevemos sobre qualquer tema jurídico, especialmente a partir da perspectiva feminista.

O assunto de hoje são as deep nudes, imagens de falsa nudez de mulheres geradas a partir de aplicativos de inteligência artificial, que têm se tornado cada vez mais frequentes, com o avançar do desenvolvimento tecnológico.

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Para entender um pouco mais sobre a complexidade por trás da criação dessas falsas imagens e o contexto misógino, precisamos voltar ao surgimento do aplicativo DeepNude.

Em 2019, surgia a primeira plataforma de inteligência artificial capaz de criar falsas imagens de nudez a partir de fotografias de pessoas vestidas por meio de técnicas de deep learning, ou aprendizado profundo, que configuram um conjunto de métodos e algoritmos que se baseiam em redes neurais artificiais para a realização de tarefas complexas de processamento de dados e reconhecimento de padrões, inspiradas no processamento cerebral humano.

Diversas áreas do conhecimento vêm se desenvolvendo a partir do deep learning, que recebe dados variáveis como imagens, textos e áudios por uma porta de entrada e extrai dados específicos que são processados para a obtenção de respostas especificadas em suas configurações. No caso dos fake nudes, as variáveis são as imagens das mulheres e as respostas são as falsas imagens de nudez.

O DeepNude foi criado com a ideia inicial de manipular a imagem de qualquer mulher para mostrá-la sem roupa. O idealizador desse aplicativo, de pseudônimo “Alberto”[1], disse em entrevista ao Motherboard que a intenção ao desenvolver o aplicativo foi clara e objetiva: deixar mulheres nuas e apenas elas, já que o aplicativo não desenvolve imagens de nudez masculina.

A escolha clara e consciente de falsear exclusivamente a nudez de mulheres revela a misoginia que objetifica corpos femininos como se disponíveis estivessem para a satisfação dos desejos masculinos sem qualquer consentimento.

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O desprezo ao expresso consentimento para o uso de imagens femininas é fator determinante nessa análise. Em todos os casos de vazamentos da fake nudes que foram analisados por nós, não havia consentimento para o uso e a disposição das imagens das mulheres e meninas vítimas da manipulação digital. Ao contrário, na maior parte dos casos havia a intenção de expô-las a situações vexatórias, que violam suas dignidades e geram danos emocionais graves e irreparáveis, já que as chances de remover totalmente deep nudes da internet são remotas.

Ainda no contexto do surgimento do aplicativo DeepNude, vale mencionar que sua versão inicial trazia marca d’água e, após viralizar em onda crescente na internet, o aplicativo foi retirado do ar pelos criadores, mas a intervenção de crackers recuperou o sistema que passou a ser oferecido em grupos na plataforma Discord em uma versão muito mais perigosa, sem a marca d’água.

No contexto jurídico, respostas legislativas são previstas e dispositivos criminais preveem condutas que se inserem nesse contexto.

O artigo 216-B do Código Penal prevê que “produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes” é crime punível com detenção de 6 meses a 1 ano e multa.

Contudo, o parágrafo único deste dispositivo é ainda mais preciso ao dispor que “na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo”.

Entendemos que se a intenção for de produzir a imagem com a intenção de “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar” haveria os contornos do artigo 218-C do Código Penal, cuja pena é de reclusão de 1 a 5 anos, “se o fato não constitui crime mais grave”.

Vale mencionar que contextos fáticos diferentes podem ensejar o concurso material de crimes. Explicamos. Se o sujeito manipula a imagem falsa com a intenção de não divulga-la mas, posteriormente, em circunstâncias diferentes, decide praticar um dos verbos do artigo 218-C como “vender” ou “compartilhar” haveria o concurso material e a unificação das penas.

Se as fotos adulteradas forem de meninas, menores de idade, o crime pode ser o previsto no artigo Art. 241-C: “simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual”, que prevê pena de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, e multa. O parágrafo único prevê, ainda, que incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput do referido artigo.

Outra possibilidade jurídica é a ocorrência de “sextorsão”, modalidade do crime de extorsão, configurada pela ameaça de divulgação de imagens íntimas para forçar a mulher a fazer favores sexuais, transferências de dinheiro ou submetê-la a qualquer tipo de situação vexatória.

O maior desafio no combate a esse tipo de crime é a velocidade do compartilhamento das imagens. O Marco Civil da Internet, Lei 12.965/14, determina a imediata remoção, pelos provedores, de qualquer conteúdo que contenha sexo ou nudez mediante notificação simples da vítima. A omissão dos provedores pode levar a responder pela violação da intimidade da vítima.

Ocorre que, com a rápida disseminação de fotos e vídeos por meio de redes como WhatsApp, Telegram, dentre outras, é impossível mensurar o alcance da prática criminosa, que pode permanecer — salva em celulares, tablets, nuvens — por tempo indeterminado.

Não bastasse as mulheres precisarem se preocupar com a possibilidade de circulação de  nudes que efetiva e voluntariamente fizeram, como exercício de sua liberdade sexual, agora ainda precisam viver a angústia de ver seus rostos expostos na circulação de imagens de corpos que sequer são, verdadeiramente, seus.

Já temos legislação específica para proibir esse tipo de crime, o que falta mesmo é acabar com o patriarcado, com o machismo, a misoginia, que permanecem como outrora, mesmo com todos os avanços da sociedade, da tecnologia, da inteligência artificial. O que unifica passado e presente é a apropriação dos corpos femininos, seja no mundo físico, ou virtual.


[1] Disponível em https://www.vice.com/en/article/qv7agw/deepnude-app-that-undresses-photos-of-women-takes-it-offline

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  • Brave

    é advogada criminalista.

  • Brave

    é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC-Rio e da FGV-Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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