Direito do Consumidor

Consumidor e Responsabilidade Civil

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3 de outubro de 1999, 23h00

Abordagem histórica acerca da responsabilidade civil nas relações de consumo

Colima o presente trabalho fazer uma abordagem histórica acerca da responsabilidade civil face às relações de consumo. Tem como finalidade destacar que o consumerismo – movimento oriundo de uma sociedade de massas (contemporânea) – não pode ser visto isoladamente, mas sim, diante de um contexto econômico, de maior espectro, com repercussões até mesmo na tutela da concorrência.

Não se pretendeu ser inovador, mas, sim, apenas destacar a importância de um tema que ainda, pelo que parece, não teve a merecida atenção dos brasileiros.

1 – As Relações de Consumo antes da Revolução Industrial

Pode este período ser classificado como o estágio inicial do capitalismo, caracterizando-se pelo sistema de produção artesanal, em que “a casa do mestre-artesão se constituía no cenário principal da atividade produtiva” (in Amaral Jr., Alberto do, Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e Venda, RT, SP, 1993, fls. 63)

O modelo econômico baseava-se na relação direta entre produtor e consumidor, podendo-se afirmar que produção e comercialização se confundiam na mesma pessoa (artesão), sendo os bens de consumo produzidos de forma individual.

O Surgimento de um Rudimentar Sistema Industrial

Em uma fase posterior, classificada como de um capitalismo comercial, percebe-se uma pequena modificação nas relações de consumo, em decorrência de um fato econômico novo, qual seja o surgimento de um incipiente sistema industrial que, paulatinamente, preparava o caminho para a inexorável revolução industrial.

Representou um estágio intermediário entre o sistema de produção artesanal e o futuro sistema industrial, podendo ser caracterizado pela ocorrência das seguintes modificações na estrutura mercantil existente: a) surgimento de pequenas oficinas, que enfraqueceriam o sistema fundado na produção artesanal; b) cisão entre produção e comercialização, que antes se confundiam na figura única do artesão; c) surgimento de um terceiro elemento na relação mercantil, qual seja, o intermediário.

3 – Revolução Industrial e Tecnológica e seus Efeitos no Mercado de Consumo

Constitui este fenômeno um dos mais importantes capítulos da história da humanidade, produzindo efeitos em diversos segmentos da sociedade, quer seja na área econômica, social ou política.

Analisando tal acontecimento sob o prisma econômico, observa-se que as modificações nos meios de produção repercutiram fortemente nas relações de consumo pois, se antes a negociação era entre as pequenas oficinas/intermediários e consumidor – onde havia certa igualdade de condições entre os contratantes – agora, os negócios eram celebrados entre as indústrias (embora em desenvolvimento)/comerciantes e os consumidores, vislumbrando-se, desde então, a condição de vulnerabilidade destes últimos.

Apresenta Rocha (Silvio L. Ferreira da., in Responsabilidade Civil do Fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro, RT, SP, 1992, fls. 12) algumas modificações, no âmbito comercial, relacionadas com este fenômeno, tais como: “a) o mercado tornou-se o destinatário de uma enormidade de produtos fabricados em série, tipificados e unificados; b) a cisão entre produção e comercialização foi realizada de modo definitivo; c) o comerciante perdeu o controle sobre a fabricação do produto e deixou de informar e aconselhar os seus clientes”.

Essas transformações nos modos de produção fizeram com que um número muito grande de produtos industrializados fossem postos no mercado e, em virtude do rudimentar desenvolvimento tecnológico das máquinas produtoras, verificou-se que, proporcionalmente ao crescimento do mercado, cresciam também os riscos a que estariam expostos os consumidores, seja quanto à sua vida, saúde ou quanto à sua segurança.

A Revolução Tecnológica, fenômeno ocorrido posteriormente à Segunda Grande Guerra também representou importância ímpar para a economia, visto que propiciou um aumento da “produção de massa e do consumo, que geraram a sociedade de massa, sofisticada e complexa” (Almeida, João B., A proteção jurídica do consumidor, Saraiva, SP, 1993: fls.02) em que vivemos atualmente.

Pode-se perceber o desenvolvimento da tecnologia desde o Séc. XIX, com o conhecimento do uso da energia, passando pelas turbinas hidráulicas, a máquina a vapor, as ferrovias e, mais recentemente, a criação e automóveis, aviões, a invenção do rádio e televisão, a utilização dos computadores, demonstrando, com isto, a importância da Revolução Tecnológica para a consolidação da sociedade de consumo.

4 – A Revolução Industrial e a Responsabilidade das Empresas pelos Danos Causados


Conforme já visto, a Revolução Industrial e, em uma segunda etapa, a Revolução Tecnológica, promoveram profundas modificações em vários segmentos da sociedade contemporânea.

Ambas as revoluções representaram importância fundamental para consolidar o desenvolvimento das cidades, fornecer emprego aos trabalhadores oriundos do campo, propiciar forte desenvolvimento industrial e tecnológico, possibilitar o acúmulo de riquezas para as nações onde as empresas estavam instaladas, consistindo, enfim, em um importante acontecimento econômico não só para a época, podendo-se perceber muitos de seus efeitos no estágio atual da humanidade.

Não obstante um maior número de produtos postos em circulação representasse um aumento dos riscos ao público consumidor, em decorrência dos erros técnicos e falhas no processo produtivo, não havia uma preocupação, por parte das indústrias, ou do Estado quanto à responsabilidade dos fabricantes pelos produtos oferecidos ao mercado.

Isto, em conseqüência de as empresas ainda não possuírem uma estrutura financeira sólida, capaz de arcar com indenizações referentes as seus produtos, aplicando todo seu lucro na melhoria da produção; e, como bem observa Coelho (Fábio Ulhoa, in Os empresários e os direitos do consumidor, Saraiva, SP1994: fls. 63), nesta fase “o excedente social não podia ter outro destino que o reinvestimento em atividades produtivas e comerciais, porque o estágio inicial de evolução do modo de produção capitalista reclamava a concentração de capital nas mãos da classe burguesa”.

Explica-se a complacência do Estado em não exigir das empresas um maior comprometimento em termos de responsabilidade dos produtos postos no mercado, por dois fatores:

1º – Imperava a ideologia do liberalismo econômico, ainda decorrente dos ideais da Revolução Francesa, de que o Estado não deveria intervir nas relações mercantis, e que pode ser sintetizada na expressão laissez faire-laissez passer;

2º – pela função sócio-econômica desempenhada pelas empresas para a época, pois criavam bens, empregos e arrecadavam tributos, razão pela qual não interessava ao Estado onerá-las com mais este encargo, qual seja, o de responder civilmente pelos danos causados aos consumidores.

Com o passar do tempo e em decorrência do aumento dos riscos e do número de acidentes, bem como de outros fatores de ordem econômica, dentre eles o fortalecimento financeiro das indústrias esta situação começou a se alterar em fins do século passado, ensinando Leães (Luiz G. P. Barros, in A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto, Saraiva, SP,1987: fls.22) haver “uma tendência a se transferir para a empresa uma margem de risco mais alta, correspondente a uma reparação mais extensa dos danos provocados na sociedade pelos produtos defeituosos”.

Com efeito, após grande número de ações intentadas no Judiciário em razão dos acidentes de consumo ocorridos, os Tribunais, diante da nova realidade social, acabaram por aceitar uma maior flexibilização das regras relativas aos contratos e, em um período posterior, alargaram o âmbito da responsabilidade do fabricante, tornando-a independente da existência de contrato, a fim de alcançar o consumidor final. Todas estas medidas tinham por escopo fortalecer a parte mais vulnerável das relações de consumo – o consumidor.

Desta forma, concluímos, em consonância com Alpa e Bessone (apud Rocha, Silvio L. Ferreira da., in Responsabilidade Civil do Fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro, RT, SP, 1992, fls:14) que “os riscos introduzidos no mercado pelo fenômeno de produção e distribuição de massa significaram elevado custo social. Era necessário assegurar, de um lado, o completo ressarcimento àqueles que sofreram o prejuízo e, de outro lado, distribuir racionalmente os custos desses danos. Entretanto, a disciplina então vigente não era suficiente e precisava adequar-se a esse novo fenômeno”.

5 – Como a Legislação Pré-Consumerismo disciplinava a Responsabilidade do Fornecedor

Entenda-se legislação pre-consumerista como o ordenamento vigente, no Brasil, antes da edição do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Mister se faz a consideração acerca do contexto histórico e econômico que a matéria estava inserida.

A tutela dos consumidores era exercida com base em diplomas legais ultrapassados (Cód. Comercial-1850 e Cód. Civil-1916) – produzidos por uma sociedade pré-industrial – que visavam disciplinar as relações comerciais em âmbito individual e que, portanto, apresentavam-se efetivamente insuficientes na disciplina dos negócios em massa (Cf. Coelho, op.cit. fls:123).

A responsabilidade civil do fornecedor era fundamentada quanto ao seu fato gerador, que poderia ser contratual – se oriunda de inexecução contratual – ou extracontratual – se resultante da violação de um dever geral de abstenção pertinente aos direitos reais ou de personalidade.


No âmbito contratual prevaleciam os princípios da autonomia da vontade, da relatividade dos contratos e da força obrigatória, tradicionais no direito privado e insuficientes para regulamentar as novas relações oriundas de uma sociedade de consumo, vez que não aceitava a responsabilidade face a terceiro estranho à relação de consumo, além de não permitir o rompimento da cadeia de comercio, impedindo que o consumidor atingisse o próprio produtor, a não ser que este fosse o alienante imediato.

Nos casos que ensejassem a responsabilidade contratual, o instituto a proteger o consumidor era o dos vícios redibitórios, segundo o qual, se o vendedor estivesse de boa-fé, o consumidor poderia pedir a restituição ou ajuste do preço (CC arts. 1.101 e 1.103, 2ª alínea), mas, se estivesse de má-fe, poderia pleitear o que recebeu com perdas e danos (CC, art. 1.103, 1ª alínea) (Cf. Maria H Diniz, in Curso de Direito Civil Brasileiro, Saraiva, SP. 1993:fls.290).

Na verdade, todos os postulados que disciplinavam a matéria contratual, em especial o princípio da relatividade, consistiam em fator de estímulo e fortalecimento da atividade empresarial, uma vez que, limitando a possibilidade de os consumidores acionarem os fabricantes, acabavam por distribuir entre os sujeitos da relação de consumo os riscos relativos a mercadorias defeituosas, promovendo, assim, uma contenção dos custos de produção (Cf. Leães, in op. cit. fls:31).

No âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, mister seria a existência de dois pressupostos: o ilícito e a culpa (art. 159 Cód. Civil). O sistema adotado pelo legislador civilista em 1916 foi o da teoria da responsabilidade subjetiva, sintetizada no princípio: “nenhuma responsabilidade sem culpa”.

Ora, a exigência imposta ao consumidor, no sentido de que demonstrasse a culpa do fornecedor tornou-se quase impossível, em razão das peculiaridades de cada sistema de produção, ainda mais em face da vulnerabilidade do consumidor.

Na verdade, ensina Carnevalli (apud Rocha, op. cit. fls:18) que: “a teoria subjetiva, ao lado da responsabilidade contratual, atendia aos interesses das empresas. Com efeito, a empresa desenvolvia qualquer atividade sem preocupar-se com os prejuízos causados a terceiros. A reparação pelos danos, geralmente era negada pela ausência de uma relação contratual direta entre o causador do dano – fornecedor – e a vítima, ou, então, porque a vítima não tinha como provar a culpa do fornecedor”.

Em virtude das novas relações comerciais celebradas em uma sociedade de massas, bem como a necessidade de se proteger os consumidores contra os riscos e danos causados pelos produtos postos em circulação no mercado, novas teorias foram sendo criadas a fim de suprir a insuficiência da legislação então vigente e, consequentemente, possibilitar maiores chances de ressarcimento frente aos fabricantes.

6 – Consumerismo

O consumerismo deve ser entendido como uma das conseqüências oriundas dos fenômenos sociais modernos, v.g. a revolução industrial, tecnológica, o desenvolvimento do comércio, bem como o aperfeiçoamento da publicidade, entre outros.

Com efeito, menciona Orlando Gomes (apud Bezerra, Flávio de Queiroz, in Responsabilidade civil por fato do produto no CDC, BH, Del Rey, 1995: fls.29) que “a complexidade da sociedade moderna, com a necessidade de diferentes soluções e conseqüente especialização, impõe a criação de novos ramos do direito ao lado dos tradicionais. Novas relações sociais levam à busca de novas soluções, que exigem tratamento cada vez mais específico, posto não estarem as normas gerais aptas a lhes atender”.

Desta forma, em razão dos clamores da sociedade pelo reconhecimento dos direitos dos consumidores, uma vez que a legislação existente tornava-se insuficiente para tutelar as relações de consumo existentes, foi que começou a se esboçar uma tendência a proteger a parte mais vulnerável nestas relações que era o consumidor.

Pode-se assinalar como verdadeira inovação em matéria de defesa do consumidor, a mensagem enviada ao Congresso norte-americano pelo então Presidente Kennedy, que consistia em um amplo programa de reformas consonantes com os interesses dos consumidores, a que a legislação e a prática judicial e administrativa deram efetiva seqüência, colocando os Estados Unidos na posição porventura mais avançada nesta matéria. Representou, igualmente, um marco para o despertar desta questão, com repercussões nos planos nacional e internacional (Cf. Ferreira de Almeida apud Bezerra, op. cit., fls:28).

O consumerismo, – movimento social em constante adaptação à situação do mercado – pode ser analisado sob vários aspectos e, não apenas como conseqüência de uma maior conscientização dos consumidores acerca de seus direitos, ou como decorrência da evolução moral das relações sociais (Coelho, op. cit.: fls.27).

É fundamental que se destaque o caráter econômico que tal matéria apresenta, uma vez que o reconhecimento deste direitos deve-se menos à necessidade de se proteger os interesses dos consumidores e, mais ao desejo de se prestigiar as indústrias em uma nova fase do capitalismo, a qual, certamente, procuraria consolidar e assegurar a maior participação das empresas no mercado, evitando, ao máximo, a concorrência.

Isto, pois, em regra, apenas as grandes empresas, com uma certa reserva financeira é que poderiam bancar os custos advindos com a nova legislação, ao passo que a pequena empresa, por não possuir tais reservas, estaria fadada à extinção, uma vez que a legislação não distingue quanto ao tamanho ou capacidade financeira da empresa.

Em virtude disto, as empresas já portadoras de um certo grau de sofisticação tecnológica e solidez financeira varreriam do mercado as que engatinham nessa direção, representando, portanto, uma lei mais adequada à macroempresa, face à sua estruturação em todos os sentidos.

Para finalizar, é necessário ressaltar que o consumerismo, – fenômeno surgido em razão da sociedade de consumo – tem apresentado muitos pontos positivos, especialmente no âmbito da política de consumo, destacando-se os seguintes:

a – foi fundamental para a consolidação de uma maior conscientização dos consumidores a respeito de seus direitos;

b – responsável pela tomada de posição dos Estados em favor da parte mais vulnerável – consumidor;

c – assim como no que pertine a um maior controle dos fornecedores em relação aos produtos postos no mercado.

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