Opinião

Isenção de IR até R$ 5.000: atecnias em busca de maior justiça tributária

Autores

  • é professora titular de Direito Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da UFMG.

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  • é sócio da banca Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC) mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e master of Laws (LL.M.) pela New York University (NYU).

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28 de março de 2025, 7h01

Na última semana, o governo federal apresentou ao país o PL 1.087/2025. O seu objetivo principal é aumentar a faixa de isenção do imposto de renda de pessoas físicas (IRPF), de modo a abarcar todos aqueles contribuintes com rendimentos inferiores a R$ 5.000 mensais. No intervalo compreendido entre o novo limite e o montante de R$ 7.000,00, o benefício é diminuído até que chegue a zero. Acima desse valor, não haverá qualquer redução no imposto devido.

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Essa alteração legislativa compôs o rol de promessas de campanha do presidente Lula. Em um momento de popularidade decrescente (e ainda que esse fato não se impusesse), nada mais natural do que o expediente de se recorrer aos compromissos eleitorais, cujo cumprimento é ponto de honra em face dos eleitores de um político. A propósito, dificilmente existirá alguém (parlamentar ou não) que seja realmente contra o alívio na tributação para cidadãos de baixa renda. Muito menos os autores deste artigo.

É verdade que o efeito deletério de uma inflação elevada diminui o poder de compra e escancara o óbvio: o salário-mínimo é insuficiente para as despesas mensais de uma pessoa que pretenda viver dignamente. Para além disso, a histórica falta de correção da tabela do imposto de renda das pessoas físicas é fator adicional a ser levado em consideração. Portanto, a situação exige providências.

Dito isso, a primeira crítica que se faz ao projeto não se volta contra o seu objetivo (certamente nobre), mas contra os meios escolhidos. A Constituição de 1988, de forma bastante singular, positivou um conjunto de normas de direito tributário que precisam ser necessariamente observadas. Isso foi feito de forma mais geral, por meio de certos princípios (tal como a proteção da confiança), como também diretamente sobre as regras de competência atribuídas a cada um dos entes de nossa Federação.

A respeito do imposto de renda, dispõe a CF que ele deverá ser informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei. Ou seja, em seu aspecto essencial, esse imposto deve onerar a generalidade dos contribuintes, a universalidade dos seus rendimentos, tendo como referência uma base de cálculo que cresça de acordo com o incremento da riqueza (progressividade, i.e.).

A existência de faixas de tributação da renda deveria cumprir justamente esse propósito, com a ressalva de que a progressividade não se efetiva apenas por meio de alíquotas que crescem de acordo com o aumento dos rendimentos. Dito de outro modo, a progressividade pode ser igualmente promovida por meio de ajustes diretos sobre a base de cálculo, tal como ocorre com as deduções com dependentes, despesas com educação etc. Esse aspecto não pode ser ignorado.

Nesse sentido, são antigas e recorrentes às críticas à progressividade do IRPF no Brasil. É inegável que são poucas as faixas e muito tímidos os intervalos de renda entre elas. O resultado prático acaba sendo uma alíquota máxima (27,5%) que tem o potencial de onerar rendimentos muito próximos do que o PL atual intenciona isentar. Em outras palavras, o que se pretende seja considerado o montante sobre o qual não pode haver tributação representa hoje o volume de renda que recebe a maior alíquota. A violação à CF é manifesta, precisamente porque o modelo vigente está muito distante do que se poderia chamar de uma tributação progressiva da renda.

Faixas

O problema é que o PL 1087/2025 restringe ainda mais a progressividade. Em linhas gerais, o que se está propondo é apenas elevar o patamar de isenção, mantendo-se a tributação máxima sobre valores de rendimentos muito próximos do que o próprio Poder Executivo considera ser o piso ideal para a faixa de isenção. Na prática, serão três os intervalos: (i) aquele isento, para os contribuintes que ganham até R$ 5.000; (ii) o sujeito à tabela progressiva, que vai de R$ 5.000,01 a R$ 7.000; e (iii) o que estará submetido à alíquota máxima de 27,5%.

É importante destacar que a referida promessa de campanha pode ser cumprida em sua integralidade, desde que venha acompanhada das mudanças legislativas que permitam acomodar, com respeito à CF, o que se exige da tributação da renda no Brasil. Bastaria, portanto, que o PL propusesse a isenção nos mesmos patamares prometidos pelo presidente Lula, mas avançasse na promoção de uma progressividade genuína, criando outras faixas de renda e permitindo que as alíquotas mais elevadas incidissem apenas sobre rendimentos — devidamente comprovados pelos órgãos técnicos — auferidos pela parcela mais favorecida da população.

Os problemas não param por aqui, contudo. O PL também pretende criar uma espécie de mecanismo de compensação para a arrecadação que será perdida em decorrência do novo modelo proposto. Para tanto, sugere a criação de “um imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo — IRPFM”, nos seguintes moldes: (i) antecipação do imposto (retenção na fonte) de 10% sobre os lucros recebidos de pessoa jurídica acima de R$ 50.000 dentro de um mesmo mês; (ii) tributação mínima sobre rendimentos que superem R$600.000 em um ano-calendário. Em termos de alíquotas, ela será de: (a) 10 % para rendimento bruto superior a R$ 1.200.000; e (ii) crescente linearmente, de 0% a 10% para rendimento bruto entre R$ 600.000 e R$ 1.200.000.

De forma mais prática, para fins de definição dos contribuintes que serão afetados pela tributação mínima, propõe o PL que sejam considerados todos os rendimentos recebidos no ano-calendário, inclusive os tributados de forma exclusiva ou definitiva e os isentos ou sujeitos à alíquota zero ou reduzida. Serão excluídos do cômputo geral os ganhos de capital (com exceções), os rendimentos recebidos acumuladamente e as doações em adiantamento da legítima ou herança. Ou seja, institui-se imposto de renda sobre determinados rendimentos sujeitos ao ITCMD, de competência dos Estados, o que é inconstitucional.

A mecânica proposta pode compreendida como se fossem dois distintos impostos de renda das pessoas físicas. O já existente (IRPF) e o mínimo (IRPFM). A tributação mínima será calculada após a padrão, por meio da aplicação da alíquota sobre o rendimento bruto descrito no parágrafo anterior. Feito isso, subsistirá a obrigação do imposto mínimo apenas após a dedução do montante apurado na Declaração de Ajuste Anual, dos valores antecipados ao longo do ano-calendário e da aplicação do redutor previsto no próprio PL 1087/2025. Caso o resultado dessa equação seja negativo, não haverá IRPFM devido. Na hipótese de o valor ser positivo, serão deduzidas as retenções na fonte decorrentes do recebimento de lucros e dividendos acima de R$50.000. O resultado final poderá ser positivo ou negativo.

De todo modo, é importante compreender as razões invocadas pelo governo federal como justificativa para a tributação mínima. Em recente entrevista, o ministro da Fazenda afirmou: “quem vai pagar essa conta é quem hoje não paga imposto de renda”. Trata-se de premissa incorreta. Ela está alicerçada em uma distinção rígida entre pessoas físicas e jurídicas, que induz à crença de que todos os lucros recebidos são rendimentos do capital. Portanto, mesmo que a empresa tenha sido tributada (pelo imposto corporativo), ainda assim deveria haver incidência adicional sobre esse “novo rendimento”, marcado pela passagem da renda da pessoa jurídica para o indivíduo.

Situação diversa

A realidade mostra situação diversa, entretanto. A imensa maioria das pessoas jurídicas brasileiras opta por regimes simplificados de tributação da renda, com especial destaque para o lucro presumido. Desse montante, parcela relevante delas representa o que se poderia qualificar como sociedades de pessoas, como as que são compostas por profissionais liberais (médicos, advogados, engenheiros etc.) e outros prestadores de serviço.

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Em razão da natureza de suas atividades, tais pessoas jurídicas auferem lucro apenas em razão de uma ficção legal. A sua riqueza se confunde com a de seus sócios, na medida em que há uma correspondência direta entre as receitas auferidas e os serviços por eles pessoalmente prestados. Dito de outro modo, inexiste riqueza autônoma na distribuição desses rendimentos aos sócios a reclamar nova incidência do imposto de renda, sob pena de efetiva bitributação.

Como se poderia imaginar, o mundo não desconhece essa realidade. Por essa razão, tais rendimentos costumam ser tributados diretamente no âmbito das pessoas físicas, não se sujeitando as empresas ao imposto corporativo (como na Europa ou mesmo nos EUA, por opção). Fosse essa a escolha brasileira, a fala do ministro Fernando Haddad ficaria completamente esvaziada. É inverídico, portanto, que esses rendimentos não são tributados. O fato é que eles são tributados no âmbito das pessoas jurídicas, como expressão de um sistema conhecido pelo nome de integração.

Fossem esses rendimentos a real preocupação do PL, bastaria que o Brasil positivasse um modelo de transparência fiscal para as sociedades de pessoas. Com isso, os rendimentos do trabalho auferidos por meio de pessoas jurídicas seriam tributados nos mesmos moldes dos rendimentos do trabalho assalariado, em termos de alíquotas e base de cálculo. Em outros termos, os lucros distribuídos por sociedades de pessoas se submeteriam apenas ao IRPF, evitando-se a ocorrência de bitributação. Pelo menos o teto, o limite para a incidência do adicional na definição desse PL em tela, deveria ser 27,5% e não 34% (o último, muito mais adequado para as sociedades de capital).

Ademais, a CF parece impor um obstáculo jurídico ao modelo proposto. No Brasil, os critérios determinantes para a identificação de um tributo são o fato gerador e a base de cálculo. Ou seja, o contribuinte não integra essa definição. Por essa razão, a mesma renda não pode ser tributada duas vezes, ainda que a incidência seja determinada sobre dois contribuintes diferentes sob a ótica jurídica. Essa lógica está presente até mesmo nos tributos indiretos, por força da não-cumulatividade. Não é por outra razão que a competência residual (CF, artig 154, I) somente pode ser exercida por meio de impostos não-cumulativos.

É imperioso destacar não ser possível promover justiça fiscal por meio de constrangimentos à principal fonte de riqueza da atual economia brasileira, que é o setor de serviços. O discurso apresentado pelo governo pretende induzir o Parlamento a acreditar que realmente existe um volume imenso de rendimentos, auferidos pelo que se está chamando de titulares de “altas rendas”, que simplesmente escapam à incidência do imposto de renda, como se a regra de isenção vigente não fosse uma técnica de tributação, mas um benefício odioso. Insista-se, isso não é verdade.

O ponto de partida para apresentar a questão de forma mais técnica passa por uma distinção conceitual importante. Como mencionado, não se pode tratar da mesma forma todos os resultados recebidos de pessoas jurídicas por pessoas físicas. Nem todos os lucros distribuídos são rendimentos do capital, como seria o caso dos dividendos pagos por companhias abertas, por exemplo. Nem todos os sócios de empresas devem ser chamados genericamente de acionistas, como se tem visto na imprensa.

Em verdade, a maior parte dos lucros distribuídos são rendimentos do trabalho, que sofrem tributação no âmbito das pessoas jurídicas sobre a receita bruta por elas auferida, por meio de alíquota efetiva que dificilmente fica longe dos 15%. E acrescente-se: em tais sociedades de pessoas, a responsabilidade dos sócios é integral e solidária perante terceiros, o que não se dá nas sociedades de capital.

A Receita Federal do Brasil é seguramente um dos melhores Fiscos do mundo. Deveria caber a ela, portanto, demonstrar qual é a real distância entre contribuintes de mesma renda que recebem os seus recursos por meio de fontes distintas. A título de exemplo, bastaria a comparação entre duas pessoas com rendimentos mensais de R$ 60.000. A primeira, executiva de uma grande companhia e com vínculo de emprego (portanto, recebendo salário). A segunda, sócia de uma empresa de prestação de serviços de profissão regulamentada, optante pelo lucro presumido,

No primeiro caso, será aplicada, de forma progressiva, a alíquota máxima de 27,5% sobre o rendimento líquido. Ou seja, será permitida a dedução de gastos com saúde, educação, dependentes, pensão alimentícia etc. Assim, dificilmente a alíquota efetiva estará próxima da nominal, salvo exceções que ainda terão à sua disposição o desconto padrão de 20% (declaração simplificada). É dizer, muitos daqueles assalariados, ou autônomos, ou servidores públicos, sujeitos à alíquota máxima de 27,5%, pagam uma efetiva de 15% ou menos.

No segundo caso, a empresa terá suportado uma alíquota efetiva próxima dos 15%, mas não sobre o seu rendimento líquido. A incidência ocorrerá sobre a receita bruta, sem a possibilidade de qualquer dedução. Nesse cenário, seria mesmo possível afirmar que a justificativa do PL está pautada em um cenário que opõe contribuintes que pagam imposto de renda e aqueles que nada pagam? A resposta é claramente negativa.

Um outro ponto merece reflexão. Se quem recebe lucros e dividendos não paga imposto de renda (tal como sustenta o ministro Haddad), por qual razão esse adicional deixa de fora quem recebe esses rendimentos até o limite R$ 50.000 mensais? Ao pressuposto de se tributar os mais ricos, não pode o legislador simplesmente ignorar dois dos critérios constitucionais informadores do imposto de renda: generalidade e universalidade, sob pena de inconstitucionalidade.

A verdade é que os argumentos apresentados pelo governo federal, alicerçados em premissas de validade questionável, apenas aumentam a polarização atualmente existente em nossa sociedade. Ao focar na tributação de lucros e dividendos, de forma indistinta, com base no pueril argumento de uma isenção injustificada, tende a aprofundar a disputa entre ricos e pobres (ou entre vencedores e perdedores, nas lições de Sandel), o que em nada contribui para um genuíno debate sobre justiça fiscal.

Ao fim e ao cabo, desejando intensamente que o governo federal consiga beneficiar as pessoas de baixa renda, validando-se a isenção para aqueles cuja rendimento não supere o valor de R$ 5.000, sugerimos singelamente que tais inconstitucionalidades sejam eliminadas do texto, o que não é difícil. (Em primeiro lugar, para conservar o respeito à isonomia e à progressividade, bastaria inserir o teto máximo para o adicional, no caso dos lucros distribuídos por sociedades de pessoas, como 27,5%).

E mais, ainda assim, as compensações almejadas pela Fazenda serão consideráveis, e provavelmente suficientes, já que: a) estamos em face de retenções de fonte, que serão obrigatórias em todas as distribuições de lucros e dividendos acima de R$ 50.000 mensais; b) tais retenções, com natureza de antecipação — ainda que sujeitas a devoluções parciais, no exercício financeiro subsequente, nos termos do PL proposto — configurarão empréstimo compulsório (que nossa Corte Suprema considera constitucional), sem a incidência de juros e correção monetária até o encerramento do período de apuração. Bom negócio!

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora emérita de Direito Tributário e Financeiro da UFMG. Presidente honorária da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt). Membro da Fondation des Finances Plubiques (Fondafip). Advogada.

  • é residente pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Master of Laws (LL.M.) pela New York University (NYU). Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Advogado e contador.

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