Tentativa de golpe, o STF e o standard de defesa
27 de março de 2025, 19h32
Contribuição da ‘extrema direita’ para a dogmática penal

Com muita honra recebo o convite para voltar a escrever regularmente nesta ConJur, depois de tanto tempo. E aceito a incumbência, porém com o compromisso de não focar (ou quase não) em temas das ciências penais sob uma perspectiva excessivamente jurídica. Confesso estar meio cansado desses debates narcísicos que não levam a nada. Bueno, mãos à obra.
O STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu o julgamento e recebeu a denúncia contra o alto escalão da tentativa de golpe. Um resultado meio óbvio em face do absurdo que esse pessoal de “extrema direita” tentou instaurar nesse país no desfecho do 8 de Janeiro. Coloco aspas em “extrema direita” porque não a reconheço como uma ideologia política. Não estamos falando de pessoas que pensam de forma coerente. São portadores de uma moral à la carte, reacionária e fascista.
De que forma poderíamos discutir política com alguém que se julga liberal na economia e conservador nos costumes? É impossível. É o tal pombo no tabuleiro de xadrez. Quisera eu debater seriamente com alguém que tenha predileção por estado mínimo, direito de liberdade maximizado, livre iniciativa sem regulamentação sob as mesmas premissas liberais quando o assunto é aborto, drogas, preconceito e direitos humanos (sim, aqueles direitos cuja gênese remonta à filosofia liberal iluminista). Esse, sim, é um debate político viável.
Mas não é isso que quer essa ala “extrema”. Esse pessoal aí vive com uma caixa de bluepills [1] no bolso. Gosta de uma gritaria. O funcionário da semana foi o desembargador aposentado do TJ-DF que foi berrar na entrada da sessão da 1ª Turma do STF. Parecia o J.R. Guzzo exercendo advocacia criminal. Tudo gravado, cortado e lançado nas redes. Ganhou muitos likes. Lacrou. Em público, um pinscher que acredita ser leão. Dentro de quatro paredes, só mais um covarde qualquer, condenado à sua boçalidade.
Esse pessoal tem muitas outras características. Não caberia aqui descrevê-las. Mas vale uma breve nota sobre um padrão no universo paralelo de Matrix: lá existe algo que eu chamo de inteligência ocasional (I.O.). São ações que, apesar de absurdas e perversas, parecem meticulosamente pensadas, porém muitas vezes executadas de forma atabalhoada, beirando a estupidez. Tipo: membros da segurança nacional dos EUA incluírem, por engano, o editor de um jornal no grupo de Discord no qual é debatido um bombardeio no Iêmen. Ou então gravar uma reunião ministerial em que são discutidas as estratégias para minar uma eleição. Ou ter em mãos um caderno com anotações do passo-a-passo de um golpe de Estado. Temos que dar o braço a torcer. Essa galera se puxa.
O curioso é que esse pessoal conseguiu facilitar a vida de quem leciona Direito Penal. Quem não lembra do exemplo dos dois inimigos (sim, eles: Tício e Caio) que, sem acordo prévio, decidem matar, no mesmo exato momento, o inimigo em comum (pobre Mévio). Os dois tiros são fatais, mas não se consegue identificar de qual arma partiu o tiro fatal. Isso para explicar o conceito de “autoria incerta” (eu sempre dei a seguinte solução para o caso: não vamos perder tempo com algo que nunca vai acontecer).
Logo após, usávamos o mesmo exemplo com uma variável: qual seria a solução caso Tício tivesse percebido o que Caio iria fazer, ainda que este não soubesse da inesperada colaboração? Explicávamos, então, que, no concurso de pessoas, o requisito subjetivo é a consciência de adesão à conduta alheia, que não se confunde com acordo prévio. Havendo tal consciência, ambos responderiam pela mesma morte em concurso de pessoas, pouco importando quem causou o quê. Teoria monista. Incrível como é fácil.
E o dolo? Está na cabeça do autor do crime? É uma presunção? É um juízo de valor que leva em conta o id quo plerumque accidit? Que dificuldade é explicar a diferença entre dolo eventual e culpa consciente em crimes de trânsito…
Em outras aulas, citávamos exemplos patéticos para ilustrar o que difere atos preparatórios e executórios (só estes admitem tentativa, como regra). Lembram do ladrão flagrado pulando a janela de uma residência? Seria tentativa de furto ou de violação de domicílio? Reinhart Frank dizia blá-blá-blá; Maurach, blá-blá-blá.

Pois não é que a turma do golpe brindou-nos com um buffet de novos exemplos para explicarmos aquelas categorias dogmáticas bolorentas?! Tudo pronto, registrado em vídeos e fotos. Confessado em lives. Aqueles crimes que, antes, necessitavam de comprovação por interceptação telefônica ou telemática agora são publicados em redes sociais. No universo de Matrix, já não existe uma ética capaz de distinguir o que é certo do que é errado. Tudo que eu faço está certo porque a Constituição diz que eu sou livre e tenho o direito de ir e vir. Só não conta isso para o Marcola.
Eu sempre tive preguiça de dar aula sobre crimes contra a saúde pública, especialmente sobre o crime de causar epidemia (artigo 267 do CP). Os exemplos eram remotos e ridículos. Mas agora nossos problemas acabaram: um presidente da República (que gostava de correr atrás de emas portando uma caixa de cloroquina) fez tudo o que pode para impedir a distribuição de fármacos cientificamente comprovados como eficazes para combate e prevenção de Covid. Perfeito! E ainda temos a omissão imprópria. Presidente da República é garantidor de resultado para fins de incidência do artigo 13, § 2°, do CP?
E o que dizer desse mesmo aí, que se valeu de seus asseclas para falsificar uma carteira de vacinação? Não precisamos mais de Tício e Caio para dar um exemplo qualquer de falsificação ideológica de documento público. Pobre Mévio, hoje abandonado.
A tia do batom facilitou nossa vida para explicarmos a consciência de adesão em casos de multidão delinquente. A tia conscientemente se juntou com mais algumas centenas de pessoas com camisas da seleção brasileira para, todos, invadirem o STF, destruírem tudo e destituírem ministros daquela corte. A tia alega que ela só passou batom na estátua. Mas agora fica fácil lembrar o que os livros de Direito Penal dizem sobre alguém que deseja aderir à conduta de outras pessoas (pouco importando que não as conheça) com o propósito comum de eliminar um poder da República.
Ah, mas não está provado o dolo de praticar do golpe; era só um protesto. Ué? O que dizer do post no Instagram com a faixa “Intervenção Militar Já!”? E o outro cartaz que dizia: “Queremos o presidente Bolsonaro no Poder. Intervenção militar no Judiciário, no Legislativo e nova Constituição e a criminalização do comunismo no Brasil. Já!!!” [2]. Incrível. Descobri que o dolo não está na cabeça do autor. O dolo está no cartaz. Não satisfeitos em quebrar tudo e depor nosso Poder Judiciário, eles ainda escrevem e publicam que era isso que eles queriam. Sério, isso daria margem a um julgamento antecipado da lide: para que processo penal? (Contém ironia, como sempre nos alerta Lenio Streck).
Tá difícil de explicar a diferença entre atos preparatórios e atos executórios? Não mais. O pessoal aquele anotou tudo, mandou áudios, escreveu mensagens pressionando o povo e o alto comando das Forças Armadas para depor um Presidente da República legitimamente eleito e abolir o Estado Democrático de Direito. Tem inclusive registro de plano de assassinato de Ministros do STF, vice-Presidente etc.
Não deu certo. Pensar em praticar algo não é fazer. Logo, não é crime. Mas essa Damásio de Jesus resolve: o verbo nuclear do tipo penal é “tentar depor”. Não houve apenas cogitatio. Houve atos materiais executados (!) para a tentativa de deposição e abolição, que não se verificou por circunstâncias alheias às vontades dos agentes. Incrível, como é fácil estudar Direito Penal atualmente. Está tudo aí, à nossa disposição. Dá até vontade de voltar a lecionar.
Standard de prova x standard de defesa
Tantos crimes e tantas provas facilitam uma resposta institucional democrática à tentativa de ruptura democrática. Os votos dos ministros da 1ª Turma do STF foram cuidadosos em apontar as robustas provas de materialidade e de autoria. E merecem elogios por isso.
Mas o julgamento atropelou desnecessariamente uma questão preliminar suscitada. Tenho muito receio de um objetivo legítimo ser alcançado por meios tortuosos, sem respeito às regras do jogo. Refiro-me ao direito fundamental que todo acusado tem de acessar todos os elementos de prova que foram coletados na investigação preliminar.
Eis a questão debatida: a Polícia Federal realizou ampla coleta de provas. Boa parte, obtida em buscas e apreensões contra os investigados. Dentre o material apreendido estão documentos, objetos, mídias etc. Parte desse material foi separado e periciado. Aquilo que interessava para a formação da opinio delicti foi autuado eletronicamente. Com base nesse material, a Procuradoria Geral da República formulou a acusação.
Todo esse material foi disponibilizado às defesas. Porém, foi expressamente reconhecido pelos ministros que uma parte das provas (especialmente mídias apreendidas) estavam em poder da Polícia Federal e não foi disponibilizada às defesas. O argumento: não foram utilizadas pela acusação para a formulação da denúncia. Tais provas serão disponibilizadas apenas após o início do processo, para que as defesas possam exercer o contraditório em toda a sua amplitude.
É uma pena que uma questão processual tão simples possa manchar um julgamento tão importante. A solução dada pelo STF vai contra sua própria jurisprudência. Contra, inclusive, uma súmula vinculante (n° 14).
Todos sabemos que o recebimento da denúncia deve obedecer a um standard de prova. Não se exige que uma ação penal seja proposta amparada em prova cabal de materialidade e de autoria. Em vez disso, o processo só pode ter seu início mediante “a verificação da parametricidade entre a imputação da denúncia e a descrição fática analisada em face dos elementos probatórios justificadores da ocorrência de justa causa”, conforme nos ensinam Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa [3]. O tal do in dubio pro societate é um argumento tão sólido quanto “bola prensada é da defesa”, no futebol.
O acusado tem o direito de contraditar o standard probatório de materialidade e autoria exigido para o recebimento da denúncia. Para tanto, possui o direito de acessar todas as provas que foram produzidas na investigação criminal, pouco importando se utilizadas, ou não, pela acusação. Ora, se o Código de Processo Penal prevê a possibilidade de uma denúncia ser rejeitada (art. 395) ou mesmo de uma absolvição sumária ser reconhecida (artigo 397), é porque deve ser assegurado à defesa o acesso a tudo o que lhe interessar para refutar o standard de prova exigido.
O que o STF disse no recente julgamento é que esse direito é relativo e diferido. O advogado só acessa o que Polícia Federal e Ministério Público selecionaram. A totalidade das provas? Só depois de iniciado o processo. É como se o STF tivesse criado um standard de defesa para refutar um standard de prova: o contraditório não é pleno na fase de resposta à acusação. O acusado só tem um direito parcial à ampla defesa.
Vejam onde isso pode parar. Existe a investigação preliminar e a gaveta da autoridade que investiga (polícia ou parquet). Essa autoridade escolhe o que bem entender para formar sua convicção. O que não lhe interessa, joga na gaveta. Só mais adiante ela será aberta. Talvez alguém tente justificar a legitimidade disso alegando que o ato administrativo goza de uma presunção relativa de boa-fé. Ora, isso é uma balela inventada por Hely Lopes Meirelles para legitimar a atuação do Estado ao tempo de um regime de exceção. Numa democracia, as coisas não funcionam assim (que o digam os corriqueiros exemplos cotidianos de arbítrios policiais).
Vejamos algumas breves hipóteses fáticas que poderiam surgir. Sou investigado. Meu computador é apreendido. Alguns arquivos foram extraídos do HD e utilizados pela acusação. Porém, no meu computador existem outros arquivos que demonstram que a acusação é equivocada, ou então que a autoria não se justifica. Agora, apliquem tudo isso no material apreendido em poder de Mauro Cid.
Ele mesmo não poderia acessar para montar a sua defesa? Pior: os demais acusados não tem o direito de acessar tudo o que foi digitalmente produzido por Mauro Cid? Qual a razão para esse direito ser obstado na fase de resposta à acusação? Eu realmente não consigo entender a razão desse desfecho. A decisão, em linhas gerais, cria temporariamente uma investigação preliminar redpill e outra bluepill. Só polícia e Ministério Público possuem o direito de bisbilhotar o que foi coletado de provas. A defesa, no início, não. Não tem interesse processual.
Fico aqui imaginando as dúvidas sobre a legitimidade da persecução penal contra os golpistas caso, após iniciado o processo, surja um elemento de prova relevante que foi sonegado às defesas. Por que criarmos um risco de deslegitimidade tão desnecessário?
Não vou nem entrar no mérito de como fiscalizar quem detém a chave daquela gaveta. Abre-se um novo universo especulativo sobre isso. Fato é que a garantia constitucional da ampla defesa possui um corolário lógico chamado par conditio (paridade de armas). Duas pessoas não podem ser enviadas a um duelo caso uma delas porte uma arma e a outra um pedaço de pau, ainda que a morte esteja proibida durante a disputa. Lamento, mas essa não é solução democrática e republicana. Todos os denunciados devem ter acesso a todas as provas coletadas, pouco importando pertençam, ou não, a eles. Tenham sido, ou não, utilizadas pela denúncia.
[1] Em dado momento do filme Matrix, os personagens poderiam optar por tomar uma bluepill (pílula azul que permite que a pessoa siga na realidade paralela de Matrix) ou uma redpill (pílula vermelha que mantém a pessoa no mundo real). Essas expressões voltaram a circular recentemente na série Adolescência, lançada pelo Netflix recentemente.
[2] Há uma reportagem bem interessante com as frases que constaram nos cartazes dos golpistas: aqui
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