Opinião

Reserva do possível para um direito impossível

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  • é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

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26 de março de 2025, 11h17

É uma afirmação universal na teoria democrática moderna a de que, na constituição em sentido formal, “não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre numa inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da Constituição a que aderem e a ordenação instaura” [1].

Embora o princípio da “reserva do possível” esteja sendo aplicado preponderantemente quando há insuficiência de recursos para o Estado cumprir obrigações, originárias de direitos sonegados, o que tal aplicação revela é de uma complexidade bem maior: trata-se de um conflito entre a constituição formal e a sua configuração em sentido material. A “reserva do possível” é, assim, um mecanismo que expressa a impossibilidade momentânea da vida jurídica do Estado funcionar tal qual ela foi desenhada pelo constituinte.

Tarso Genro, ex-ministro da Justiça

O ponto de chegada do princípio “proporcionalidade” e principalmente da “reserva do possível”, na jurisprudência constitucional que versa sobre direitos subjetivos individuais ou coletivos, exige uma exegese que vai mais além da dogmática tradicional; mais além do que normalmente está, portanto, nas abordagens anedóticas ou monásticas, no dizer de Oscar Vilhena [2], que se tornaram metodologias dominantes na bibliografia dos constitucionalistas.

A proposta é então de um novo caminho hermenêutico, compatível com a complexidade da crise do Estado Social, afogado, de uma parte pela pressão política e social para a preservação dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, e, de outra parte, frágil institucionalmente para resistir à pressão que a dívida pública, policiada pelos seus contratantes, exerce, formal ou informalmente, com os especuladores paralelos do mercado financeiro.

Jorge Miranda trata, na questão hermenêutica, de procurar – para esta questão – uma fórmula possível (ou um método cabível) capaz de combinar a questão da proporcionalidade para o atendimento dos direitos fundamentais, com a problemática da reserva do possível para apontar tanto os limites que visam à sobrevivência dos direitos fundamentais como o prestigiamento da ordem que os consagrou.

No que respeita aos requisitos materiais – como no princípio da proporcionalidade para a garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais – pode ser dito que eles seriam aplicáveis em quaisquer circunstâncias, “respeitada a reserva legal (…) (já que se assim não fosse) o Governo perderia a quase totalidade da sua competência legislativa, (se seguidos) os parâmetros da concepção radicalmente ampliativa de tais direitos” [3]. A ausência de critérios para dizer que um direito é fundamental pode inviabilizá-los como direito de todos.

Os preâmbulos formais de uma Constituição, assim como as Declarações de Princípios, que pretendem moldar a subjetividade coletiva que as legitimam, tem certamente algo de poético e épico. Quando o constituinte escreve as suas normas, cujos destinatários são os novos e os anteriores sujeitos de direitos (como se o fizesse em mármore), ele o faz “para dizer como deve funcionar o futuro” [4].

Quando se instala um poder constituinte democrático, seja depois de uma crise intensa ou de um movimento que pretendia instalar a exceção, multiplicam- se, num certo momento, as crenças, os mitos, as memórias mal diferidas, sobre o conjunto de ideias que vão compondo um novo panorama intelectual e moral: mais reflexivo e menos intuitivo, “que sempre reaparece legitimado como consenso e como força” [5].

‘Preâmbulo’ da exceção

Uma constituição em sentido formal busca firmar-se quase sempre num preâmbulo escrito, que valida um compromisso das forças políticas constituintes e dá um novo sentido para a vida coletiva, que deve irradiar o seu conteúdo para todas as normas da nova ordem. Numa constituição cercada pela pretensão golpista, todavia, o que pode vir depois, como seu anúncio preambular da nova ordem, é o discurso do líder.

O exemplo mais completo é dado por Schmitt quando diz que o “Führer comanda o Direito”, muito próximo do seguinte discurso de Milei: “não damos a mínima para as opiniões dos políticos sobre quase nenhum assunto. Em nosso país, a política tradicional só nos trouxe ruína e estabeleceu um modelo, no qual os políticos, seus amigos e clientes, vencem às custas da derrota do resto dos argentinos. Portanto, acreditamos que ouvir políticos sobre qualquer assunto é dar as costas aos bons cidadãos” [6].

O trânsito da norma à realidade, bem como os seus reflexos na conformação do processo constituinte que gerou a Constituição em sentido formal, são os movimentos que organizam o Estado, e que, por conseguinte, estão em tensão permanente com a Constituição em sentido material. O princípio da proteção judicial efetiva, de outra parte, é aquele que configura “a pedra angular do sistema de proteção de direitos” da Constituição de 1988 [7]. Suas dificuldades, no entanto, não são poucas. Como proteger o país do “preâmbulo” (oral) da exceção, escorado no discurso do líder eleito, que proclama o fim da constituição democrática?

Os diversos temas que o poder constituinte entende que devem ser tratados na Constituição, aqueles que ele deseja imprimir dentro da “ordem” a ser “conformada”, no dizer de Konrad Hesse, “não podem configurar apenas expressão de ser, mas também de um dever ser; assim, a ordem significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, mas também a subjetividade política das forças sociais e políticas, que imprimiram, na nova ordem e na nova conformação, a realidade política e social” [8]

A doutrina constitucional nacional (e.g. Lenio Streck) e internacional (e.g. Ronald Dorin e Friedrich Müller) promovem a exposição crítica dos pensadores mais influentes da contemporaneidade sobre qual é o papel que “é preenchido pela jurisdição constitucional” para adaptar a vida à ordem em evolução, cujo exemplo mais significativo é o uso sistemático da reserva do possível.

Georges Abboud, apoiado na obra de Lenio Streck , pensa que esse papel está compreendido num sociametabolismo, como assimilação e desassimilação do passado no presente que, ao mesmo tempo, revisa o sentido da constituição material. Dentro dos limites que ela encerra, fazendo mudanças moleculares em cada época pode, todavia, em certas conjunturas, tornar alguns direitos simplesmente impossíveis. É o início de uma nova crise e talvez de uma nova era.

 


[1] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Disponível em:

https://arquivos.integrawebsites.com.br/66582/bc2c06fb00ef651400fb18045b1797b3.pdf.Acesso em:11de março.

[2]VIEIRA, Oscar Vilhena GLEZER, Rubens LYNCH, Christian. Coordenadores. Constitucional Brasileira: 200 anos de disputas. 1ed.Avaré, SP: Editora Contracorrente, 2024.

[3] NOVAIS, Jorge Reis. Limites dos direitos fundamentais: fundamento, justificação e controlo Coimbra: Edições Almedina,SA,. 2021.

[4] GENRO, Tarso. Ler e Entender o Preâmbulo: Pressupostos de uma Dogmática do Concreto. Estado de Direito. 24 de maio de 2024.Disponível em: https://estadodedireito.com.br/ler-e-entender-o-preambulo-pressupostos-de-uma-dogmatica-do-concreto/. Acesso em:21 de março de 2025.

[5] GENRO, Tarso. (no prelo) Segunda edição do Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo, a partir da escrita do “verbete” Anticomunismo pós-moderno”.

[6] Palabras del Presidente de la Nación, Javier Milei, en el Festival Juvenil Fratelli D’Italia Atreju, Italia. Disponível em: https://www.casarosada.gob.ar/informacion/discursos/50821-palabras-del-presidente-de-la-nacion-javier-milei-en-el-festival-juvenil-fratelli-d-italia-atreju-italia. Acesso em : 21 de março 2025.

[7] GILMAR, Mendes. Revista Justiça & Cidadania. Redação por Giselle Souza.2010. Disponível em:< https://www.editorajc.com.br/missao-cumprida-2/>. Acesso em:21 de março de 2025.

[8]KRELL, Andreas J. “Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição Concretizada Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2000. p. 30.

Autores

  • é ex-ministro da Justiça, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, autor de livros e artigos de Teoria do Direito e Teoria Política.

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