O processo legislativo como a 'outra metade' do Direito e sua 'porta dos fundos'
25 de março de 2025, 11h05
Este 2025 promete grandes avanços em matéria de processo legislativo, tanto por projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional quanto por julgamentos importantes que estão na pauta do STF. A participação de hoje tece comentários sobre algumas perspectivas alvissareiras.
Na Câmara dos Deputados, acaba de ser protocolizado o PL 26/2025, de autoria da deputada Renata Abreu (Podemos-SP), que pretende obrigar a inclusão da disciplina “Processo Legislativo” nos cursos de Direito, com carga horária mínima de 60 horas, abordando, no mínimo, os seguintes conteúdos: 1) princípios e fundamentos do Processo Legislativo; 2) competência legislativa nas esferas federal, estadual e municipal; 3) etapas da tramitação de proposições legislativas; 4) espécies normativas previstas na Constituição Federal; 5) função do Legislativo no Estado Democrático de Direito; 6) prática legislativa e técnica de elaboração de normas jurídicas; 7) papel das comissões legislativas e do processo de sanção e veto; 8) controle de constitucionalidade e seus reflexos no processo legislativo.
Na justificação, lê-se que: “A inclusão da disciplina contribuirá para que os futuros operadores do Direito tenham uma visão mais ampla do papel do Legislativo, compreendendo o percurso normativo e a dinâmica institucional que rege a elaboração das leis. Dessa forma, qualifica-se não apenas o ensino jurídico, mas também o próprio processo de produção normativa no país, garantindo maior segurança jurídica e transparência legislativa”.
Perfeito, porque não faz o menor sentido que os estudantes de uma Faculdade de Direito estudem apenas uma metade do Direito (o Direito positivado, a jurisprudência) e não se interessem pela “outra metade” do Direito (a elaboração da legislação, a legisprudência). Na Engenharia, equivaleria a ensinar a projetar uma ponte, mas não os pilares que a sustentam. É claro que uma estrutura assim vai colapsar.
O ensino jurídico vem sendo excessivamente juristocêntrico. A academia está descolada do processo legislativo. Observa-se uma separação artificial entre o Direito e as leis. De forma contraditória, doutrina-se sobre a importância do império da leis, mas desacredita-se a forma como os parlamentares as produzem, nem se ensina o que é necessário para legislar bem. A pesquisa jurídica, em grande medida, ainda se volta mais para produzir teses para persuadir tribunais (isso vem mudando a passos lentos), em lugar de pretender influenciar o debate parlamentar.
Como professora da matéria, posso testemunhar que os alunos chegam repletos de preconceitos, com visões de desconfiança e ceticismo sobre o processo legislativo, descrédito das instituições político-representativas, muito fruto do pensamento antiparlamentar já comentado. Sobre as consequências desse cenário, há anos Felipe de Paula tinha comentado: “O descaso doutrinário frente ao processo deliberativo de elaboração normativa, seja qual for a explicação que melhor apreenda o vigente apartamento entre academia e formulação normativa, tende a ignorar as características democráticas básicas da sociedade contemporânea, a alienar os acadêmicos do direito da construção do ordenamento e a impedir a utilização de novos instrumentos de ensino, bem como colabora, dentro de suas limitadas possibilidades, com a deslegitimação das instituições políticojurídicas brasileiras” [1].
Então, a eventual aprovação do PL 26/2025 seria um primeiro passo rumo à mudança de uma cultura jurídico-acadêmica, com potenciais efeitos para abrir mais canais de participação de juristas nos processos legislativos reais. Quem sabe ainda veremos criados núcleos de prática legislativa, com oficinas de técnica legislativa, e o reforço a outros instrumentos de participação democrática da academia na formulação de proposições legislativas?
Enquanto isso, neste 2025 também estão na pauta do STF julgamentos importantes sobre o poder normativo das agências reguladoras, revisitando alguns dos temas tratados em participações passadas nesta Fábrica de Leis, como o abuso do poder regulatório, discussão que acaba tangenciado o conceito de reserva de lei também abordado na ocasião, bem como perpassa as qualidades procedimentais associadas ao processo legislativo (como explicado, só o procedimento parlamentar obedece a princípios pluralistas).
O Tema 1.252 da Repercussão Geral, com julgamento já iniciado, revisita a discussão da ADI 4.874 sobre a competência da Anvisa para editar normas sobre a restrição de importação e comercialização de cigarros, especificamente as contidas na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 14/2012, no que proíbe o uso de certos aditivos. Quando do julgamento da ação direta, não foi atingido o quórum para a declaração da constitucionalidade da RDC 14/2012 da Anvisa, mas se entendeu que não houve extrapolação do poder regulamentar.

Agora no ARE 1.348.238 (leading case do Tema 1.252), o ministro relator Dias Toffoli votou para negar provimento ao recurso da Cia Sulamericana de Tabacos e propôs a seguinte tese: “A RDC nº 14/2012 da Anvisa fundamenta-se em critérios e estudos técnicos, estando amparada no art. 196 da Constituição e nos arts. 7º, inciso XV, e 8º, § 1º, inciso X, da Lei nº 9.782/99 para proibir a importação e a comercialização de produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco, que contenham aditivos usados para saborizar ou aromatizar os produtos”.
Entretanto, o ministro Alexandre de Moraes abriu divergência para consignar que as agências reguladoras não podem inovar primariamente a ordem jurídica sem expressa delegação, tampouco regulamentar matéria para a qual inexista um prévio conceito genérico, em sua lei instituidora (standards), ou criar ou aplicar sanções não previstas em lei. Após analisar a cadeia normativa, especialmente a Lei 9.294/1996 e a Lei 9.782/99, concluiu que a delegação congressual não fixou como standard a possibilidade de proibição total produtos e insumos fumígenos em geral.
Em resumo, considerou que a RDC 14/2012 viola o princípio da legalidade e os termos da delegação legislativa. O voto divergente propôs, ainda, a fixação da seguinte tese: “A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 14/2012 é inconstitucional, pois extrapolou os limites do poder regulamentar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma vez que, nos termos do artigo 8º da Lei 9.782/99 e da Lei 9.294/1996 (Lei Antifumo, com redação dada pelas Leis Federais 10.167/2000, 10.702/2003 e 12.546/2011), ao órgão controlador não se autorizou a possibilidade de proibição total para a importação, comercialização e consumo de cigarros com base na proibição de certos aditivos, mas sim foi delegada a competência administrativa para a edição de normas de controle e fiscalização dos produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, como cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco”.
O julgamento está paralisado com o pedido de vista do ministro Luiz Fux. Aqui, reputa-se desnecessário explicar a importância desse julgamento, que claramente versa não só sobre cigarros, mas sobretudo os limites da função normativa das agências reguladoras. Deve-se acompanhar com atenção seu desfecho, destacando que a divergência foi por um raciocínio bastante semelhante ao do REsp 2.035.645, recentemente julgado pelo STJ e noticiado pela Conjur, em que se reconheceu que a Anvisa não tem poder normativo para, por ato próprio, restringir ou limitar a propaganda comercial de fármacos, precisamente pelos termos da Lei 9.294/1996 que se acaba de mencionar.
Nesse último caso, é curioso observar que o voto da ministra relatora Regina Helena Costa chegou a mencionar que os objetivos da Anvisa eram legítimos e louváveis, mas não poderiam ser validados ao arrepio das leis (Leis 9.294/1996 e 9.782/99). Por isso, convidou o Congresso Nacional a um diálogo institucional para avaliar “a eventual pertinência de alteração/modificação normativa acerca dos contornos da propaganda comercial de medicamentos ou das balizas competenciais legalmente atribuídas à agência reguladora em matéria de vigilância sanitária”.
Transplantando essa lógica para o Tema 1.252, não importaria que a RDC 14/2012 tenha sido elaborada com base em evidências ou esteja alinhada a objetivos constitucionais, que são alguns dos argumentos repetidos em sua defesa. Seria preciso uma cadeia normativa muito clara outorgando tais poderes específicos à Anvisa.
Não se tem bola de cristal para saber qual entendimento vai prevalecer no julgamento do Tema 1.252, mas a discussão só mostra a importância do estudo do processo legislativo, bem como do processo de produção normativa nas agências reguladoras. Seria uma oportunidade para se conhecer trabalhos como Backdoor Lawmaking de Melinda N. Ritchie [2], para entender melhor as relações entre Congresso Nacional e as agências regulações.
De acordo com a autora, os parlamentares na verdade usam as agências reguladoras como uma “porta dos fundos” para a elaboração de políticas que, por alguma razão, não passariam por meio do processo legislativo estabelecido na Constituição. Então, de certa forma, haveria influência parlamentar persuadindo a burocracia não eleita, o que é explicado pelo comportamento estratégico dos dois lados.
Para os legisladores, atuar em questões polêmicas pode atrair manchetes negativas, irritar as partes interessadas e fornecer material de campanha aos adversários para a próxima eleição. A elaboração de políticas pelas “portas dos fundos” permite que os membros do Congresso escapem dessa responsabilidade. As agências, por sua vez, respondem aos legisladores porque desejam obter apoio no Congresso para seus projetos e prioridades e evitar irritar os legisladores. Para chegar às conclusões, Ritchie fez uma pesquisa empírica em que analisou mais de 65 mil comunicações (contatos, e-mails, cartas, telefonemas, reuniões, etc.) entre parlamentares e agências reguladoras entre 2005 e 2012, submetendo esses dados a análises estatísticas rigorosas explicadas no livro.
Para quem está se perguntando: De que forma essas inferências auxiliam os juristas no Brasil? A resposta é a seguinte: só quem se aprofunda no estudo dessas matérias é capaz de perceber que os processos legislativos e regulatórios não são tão estanques quanto parecem. Parlamentares e agências reguladoras com frequência entabulam negociações e colaboram sobre a legislação e a regulação. Ou seja, o Congresso Nacional dispõe de mecanismos para controlar a produção normativa das agências. Daí a importância de estudar a “outra metade” do Direito.
Não custa lembrar que o Congresso Nacional pode legislar sobre quaisquer matérias, nos termos do artigo 48, caput, da Constituição, cuja principal característica é a irrenunciabilidade da competência do Poder Legislativo, sobretudo nas matérias em que a Constituição exigiu a disciplina por lei. A interpositio legislatoris determina que a norma legal contenha uma regulação mínima, cuja abrangência dependerá sempre da intensidade da reserva constitucional de lei. Não necessariamente isso significa excluir a possibilidade de regulamentos, muito embora implique reconhecer seu caráter residual.
Como a Constituição de 1988 a rigor não é um verdadeiro primor em matéria de sistematização, essa seria a segunda premissa básica para discutir o poder regulamentar: há diferentes níveis ou graus de reserva de lei. Basta contrastar, por exemplo, a amplitude da redação do artigo 172 com a determinação do artigo 220, § 3º, II, e § 4º, da Constituição, que essa intensidade fica visível. Como consequência, há regulamentos com maior ou menor determinação legislativa, como já reconhecia Louis Favoreu [3].
Para fechar a participação de hoje, como o espaço já acabou, conclui-se recordando que a jurisprudência do STF até o momento considera que o poder normativo das agências reguladoras está sempre subordinado à legislação. Nesse sentido, por exemplo, mencione-se a ADI 1.668. Parece pouco provável que a corte vá abrir mão desse parâmetro nos julgamentos vindouros.
[1] PAULA, Felipe de. Processo legislativo, doutrina e academia: hipóteses de afastamento e efeitos deletérios. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 10, n. 116, p. 6775, 2010.
[2] RITCHIE, Melinda N. Backdoor Lawmaking. Evading obstacles in the US Congress. Oxford: OUP, 2023.
[3] FAVOREU, Louis. Les règlements autonomes n’existent pas. RFDA, n. 6, 1987, p. 871-884, p. 882.
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