Opinião

O paradoxo da reforma tributária e os fundos estaduais

Autor

  • é advogado proprietário da JD Advocacia graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Direito Tributário pelo IBET/Cuiabá.

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24 de março de 2025, 15h16

Paul Laurence Dunbar, poeta, romancista e dramaturgo americano, um dos primeiros escritores afro-americanos a ganhar reconhecimento nacional e internacional escreveu um poema intitulado The Paradox:

I am the mother of sorrows,
I am the ender of grief;
I am the bud and the blossom,
I am the late-falling leaf.
Em tradução livre para o português
Eu sou a mãe das tristezas,
Eu sou o fim da dor;
Eu sou o botão e a flor,
Eu sou a folha que cai tarde.

O poeta traz ideias opostas, contraditórias, por exemplo, ao afirmar “Eu sou a mãe das tristezas” e, após, “Eu sou o fim da dor”, tem-se de um lado uma ideia de origem da tristeza; de outro, o fim da dor. Da mesma forma em “Eu sou o botão e a flor” e “Eu sou a folha que cai tarde” revela-se a coexistência de estados opostos, como o início e o fim de um ciclo.

O poema retrata bem a contradição entre os objetivos da reforma tributária e seu texto final, especialmente, no que se refere ao tema do fundos estaduais. É o que passamos a expor.

Aumento de ICMS

Em 4 de fevereiro de 2024, a Secreta de Fazenda de Mato Grosso, assim como outros estados também o fizeram nas mídias locais e/ou nacionais [1], divulgou [2] que, “enquanto diversos estados brasileiros decidiram aumentar a alíquota modal do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para recompor perdas na arrecadação, Mato Grosso mantém a taxa em 17%”.

O que está por trás do aumento de alíquotas do ICMS? E será mesmo que os estados que divulgaram a manutenção das alíquotas não aumentarão sua arrecadação no período por outros meios?

Vou me limitar a análise à questão no âmbito de Mato Grosso, que é o local onde resido e atuo profissionalmente.

Pois bem, uma das mudanças que sem dúvida alguma traz um reflexo direto e sensível na arrecadação dos estados, Distrito Federal e municípios é a adoção do princípio do destino (onde os bens e serviços são efetivamente consumidos), proposta que pretende acabar com a guerra fiscal entre os entes.

Embora a regra no Brasil fosse um regime misto entre origem e destino, já havia entre nós situações em que o princípio do destino era adotado, como p. ex., a imunidade nas operações interestaduais de petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica (artigo 155, § 2º, X, ‘b’ da Constituição), que, segundo as palavras do ministro Ilmar Galvão, no julgamento do RE nº 198.088-SP:

[Objetiva] eliminar, como fonte geradora do ICMS, os poços de petróleo e as refinarias instaladas em poucos Estados, na medida em que exclui da incidência do tributo operações destinadas ao abastecimento das demais unidades federadas, prevenindo o agravamento das desigualdades regionais, um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, III da CF). Prestigiou o constituinte, nesse passo, os Estados consumidores em detrimento dos Estados produtores.

Perdas e ganhos dos estados

Sem entrar no mérito sobre o acerto ou desacerto da medida (adoção do princípio do destino), o fato é que nas unidades federativas onde há uma renda per capita alta como por exemplo o DF, aumentarão sua arrecadação, enquanto nas unidades com menor renda per capita, poderá haver perda de arrecadação.

Spacca

E, exatamente por isso, a EC nº 132/23 trouxe regimes de transição pretendendo suavizar a implantação da reforma, tentando equilibrar a arrecadação que as unidades federadas realizavam antes de sua implementação. Assim, de um lado, no período compreendido entre 2027 a 2032, haverá substituição gradual pelo IBS e CBS dos tributos substituídos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI) serão reduzidos até a total extinção; e, durante essa substituição gradativa, o Senado fixará para as unidades federativas alíquotas de referência do IBS e da CBS, visando a suprir a redução da receita advinda dos tributos que serão gradativamente substituídos.

No âmbito estadual, essa alíquota de referência deverá tomar em consideração a redução de receita com o ICMS com sua substituição gradativa pelo IBS (no período compreendido entre 2029 a 2033) e também a redução da receita com os fundos estaduais em vigência em 30 de abril de 2023, em cálculo que deverá ser realizado pelo Tribunal de Contas da União, com base em informações e propostas do Comitê Gestor.

Segundo o que dispôs a LC 214/25 (artigo 350), deverá ser considerado nos cálculos para fixação da 1ª alíquota de referência o valor médio da arrecadação dos fundos realizada entre 2021 a 2023, corrigidas pela variação da receita do ICMS em cada período, ou seja, pela variação da arrecadação do ICMS em cada ano da substituição gradativa pelo IBS. Após (artigo 360 e ss) para fixação da alíquota de referência de 2029 levará em consideração 10% da arrecadação em 2027, a alíquota de referência de 2030, 10% da arrecadação de 2028 e assim por diante até 2033.

Embora haja a previsão de uma trava, mediante a possibilidade de redução da alíquota de referência a ser realizada em 2035, acaso a média da receita-base total obtida entre 2029 e 2033 exceda o teto de referência total. No entanto, no cálculo do teto de referência não serão consideradas as receitas com tais fundos estaduais. O fato é que quanto maior a arrecadação maior será a alíquota de referência do IBS, e, portanto, maior a participação dos estados na arrecadação no novel tributo.

Ou seja, não obstante os estados sustentem que o valor exigido como condição à fruição de benefícios fiscais não possui natureza jurídica tributária, por ser facultativo, os governadores acabaram exigindo a consideração de sua receita para fixação da alíquota de referência do IBS.

Quanto a este aspecto é bastante elucidativo trecho do parecer do deputado Aguinaldo Ribeiro apresentado em plenário quando da apresentação da proposta aglutinativa à EC nº 45/2019 (EC nº 45-a/2019).

A PEC da Câmara permitiu que os Estados e o Distrito Federal (DF) instituíssem, até o final de 2043, contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, de regime especial ou de outro tratamento diferenciado, relacionados com o ICMS, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023. Por sua vez, a PEC do Senado manteve essa possibilidade, mas exigiu que a contribuição sobre produtos primários e semielaborados não pode ser superior à das contribuições que substituir e terá a mesma destinação da receita (art. 136 do ADCT). Além disso, alternativamente, determinou que a alíquota de referência dos Estados e do DF deve também compensar a redução das contribuições aos fundos estaduais de infraestrutura decorrentes da extinção gradual do ICMS, exceto as mantidas nos termos do art. 136 do ADCT (art. 130, II, “b”, do ADCT) e incluiu a receitas dos fundos de infraestrutura no cálculo da participação dos Estados na transição federativa (art. 131, § 3º, I, “b”, do ADCT).

Arrecadação em Mato Grosso

Para termos uma noção da arrecadação do Fethab no âmbito do Estado de MT, em 2024 arrecadou-se o valor de R$ 3,59 bilhões [3] (valor líquido após deduções), enquanto a arrecadação do ICMS no mesmo período foi de R$ 31,6, mas após os repasses constitucionais (municípios, saúde e educação), restou apenas R$ 13,84 bilhões, ou seja, a arrecadação do Fethab representa 25,94% da arrecadação do ICMS.

Portanto, não se computando a receita de arrecadação de tais fundos, o estado teria reduzido 25% de sua arrecadação só na fixação da alíquota de referência.

Wenderson Araujo/Trilux/CNA

Não apenas isso, recentemente entrou em vigor aqui em MT (vigência a partir de 01/01/2025) a Lei nº 12.751/2024, que acrescentou 16 produtos agropecuários na lista dos produtos sujeitos ao Regime de Recolhimento ao Fundo Estadual, são eles: feijão, grão de bico, lentilha, ervilha, amendoim, trigo, fava, milho pipoca, milho canjica, mamona, girassol, arroz, sorgo, gergelim, milheto e painço bem como previu elevação progressiva do percentual incidência sobre a UPFMT para os anos de 2025 a 2029 para todos os produtos agropecuários abrangidos pelo regime de recolhimento ao fundo estadual.

Portanto, o motivo das recentes elevações de alíquotas do ICMS é a pretensão de manter ou até mesmo aumentar a arrecadação na transição para o regime do IBS, e, muito embora o Estado de MT tenha noticiado na mídia que mantivera a alíquota de ICMS enquanto outros estados estão elevando para poder beneficiar na transação para o IBS [4], em verdade, aumentou a abrangência e alíquota da arrecadação do fundo estadual.

Paradoxalmente, Mato Grosso prega que a contribuição ao Fethab não possui natureza tributária, mas exige que sua arrecadação seja computada na fixação da alíquota de referência do IBS; afirma que, ao contrário de outros estados, não aumentou a abrangência da arrecadação do fundo estadual que antes do aumento dessa abrangência já representava 25% de sua arrecadação.

 


[1] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/01/12/ao-menos-seis-estados-terao-novas-aliquotas-de-icms-ate-abril-entenda.ghtml

[2] https://www5.sefaz.mt.gov.br/w/mato-grosso-mant%C3%A9m-al%C3%ADquota-do-icms-enquanto-outros-estados-elevam-tributo

[3] Dados obtidos no Portal transparência https://consultas.transparencia.mt.gov.br/receita/detalhada/resultado_7.php?ano=2024&mes_ini=1&mes_fim=12&categoria=1&fonte=2&especie=2&rubrica=1&alinea=50&des_3=1221501

[4] https://www5.sefaz.mt.gov.br/w/mato-grosso-mant%C3%A9m-al%C3%ADquota-do-icms-enquanto-outros-estados-elevam-tributo e https://valor.globo.com/brasil/noticia/2025/02/03/estados-recorrem-cada-vez-mais-a-alta-de-icms.ghtml

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  • é advogado, proprietário da JD Advocacia, graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Direito Tributário pelo IBET/Cuiabá.

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