Opinião

'Lawfare' e vulnerabilidades judiciais

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  • é doutor em Direito Constitucional (Unifor) mestre em Ciências Jurídicas (UFPB) pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Público: Constitucional e Administrativo (Ciesa) professor do programa de pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e defensor público (DP-AM).

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22 de março de 2025, 9h28

Os juízes e as juízas que raciocinam contra o senso comum, por vezes, sofrem represálias midiáticas, enfrentando a enxurrada de (des)informações [1] “parciais” contra seu trabalho. Não raras vezes, o movimento agressivo à independência judicial usa as mídias, as corregedorias e o meio político como esferas “pseudo-recursais” em lawfare [2] antijudicial.

Porém, a exemplo da negativa a certas prisões preventivas desnecessárias, esse labor corajoso deve ser respeitado, especialmente em tempos de “estado de coisas inconstitucionais” no sistema carcerário (ADPF nº 347), até porque o “cenário prisional”, além de criminógeno, facilita a arregimentação de recursos humanos pelo crime organizado.

Aliás, em alguns contextos, a negativa prisional é eficaz para a sociedade por impedir (ou, ao menos, enfraquecer) a captação criminosa de pessoas (especialmente as primárias e de bons antecedentes). Mas, hoje, um dos grandes obstáculos da justiça (no sentido substancial) é o ataque à independência judicial por “linchamentos virtuais” promovidos midiaticamente, ataques esses por vezes impactantes em órgãos correcionais inadvertidos.

Frente à mídia que desinforma ou informa parcialmente, a “vulnerabilidade judicial” abre caminho à vitimização de julgadores através da fragilização da independência e de sua “domesticação” às pautas nem sempre constitucionais.

Como exemplo da vitimização provocada pela desinformação impactante na estrutura judicial, podem ser citados Kenarik Boujikian e Roberto Luiz Corcioli Filho. Em ambos os casos foi necessário buscar o CNJ para corrigir a agressão funcional. No mais, diariamente, julgadores em audiência de custódia precisam lidar com posterior “ataques de desinformação” que, quando muito, pressupõem somente o acesso à ata (representativa de mero resumo — Resolução CNJ nº 213/2015, artigo 8º, § 3º), e não tomam conhecimento integral da audiência e do inteiro teor da fundamentação.

Com efeito, julgadores devem respeito à Constituição e não aos fomentadores de “sensacionalismo” jurídico-midiático. Por esse motivo, os juízes não devem consultar os “pseudomanuais” dos programas sensacionalistas sobre quem deve ou não estar preso; de igual maneira, os órgãos de controle ético-disciplinar devem separar o “joio do trigo” e não permitir sua instrumentalização para punir quem julga fora da “opinião publicada[3] assim beneficiando esse ou aquele órgão, sem função judicante, descontente com a decisão.

Pena justa e a questão da quantidade de drogas

Em verdade, juízes e juízas que seguem o comando de “ultima ratio” às prisões preventivas (CPP, artigo 282, § 6º), reduzem as chances de reincidência e de arregimentação de pessoas primárias pelo crime organizado – medida benéfica socialmente e ainda impeditiva do custeio de prisões desnecessárias e contraproducentes. Desse modo, tais julgadores devem ser respaldados pela adequada comunicação à sociedade sobre seus (corretos) atos.

Spacca

Por outro ângulo, quem aplica, fundamentadamente, as cautelares diversas de prisão está afinado com o Plano “Pena Justa” e em harmonia com o STF: “(i) juízes e tribunais motivem a não aplicação de medidas cautelares alternativas à privação da liberdade quando determinada ou mantida a prisão provisória; (…)” (STF, ADPF 347).

Assim, a concessão de cautelares diversas de prisão em casos de grande apreensão de entorpecentes é um corriqueiro exemplo de situação quase sempre acompanhada por “Lawfare Antijudicial”, vulnerando a independência judicial.

No mais das vezes, as decisões estão fundamentadas em necessária análise contextual e não só na superficial (e isolada) questão da grande quantidade de drogas. Apesar de motivadas, por estopim geralmente sorrateiro, ataques midiáticos e correcionais são arquitetados como se recursos processuais fossem. Contudo, para além dos tribunais estaduais, são fartos os casos do STJ e do STF demonstrativos da impossibilidade de isolar a grande quantidade de drogas para fins decisórios.

No STJ, a quantidade expressiva de droga apreendida (caso 311 quilos de cocaína) não foi determinante da prisão preventiva por si só (AgRg no HC nº 752.056/GO). Monocraticamente, em situação envolvendo aproximadamente 900 quilos de cocaína, também foi rejeitada a prisão cautelar fundamentada tão somente na farta quantidade — e ali ressaltou o ministro relator:

“(…) é imperativo que se ponderem, neste momento, os efeitos colaterais da manutenção do paciente em regime de prisão preventiva. Ressalte-se que, a princípio, o réu não integra organização criminosa e não apresenta um histórico de práticas delitivas reiteradas” (HC nº 957.157/SP)

Ainda no STJ, a quantidade expressiva de maconha apreendida (241 quilos) não afastou, per si, o direito à redução de pena do § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 (AgRg no HC nº 765.343/MS). Nesse ponto, cresce a importância do trabalho dos magistrados em aferir o risco de prisão preventiva (“acessório”) mais gravosa que a pena final provável (“principal”) — em um juízo de “homogeneidade” (HC 182.750-SP) e lógica similar à Súmula Vinculante nº 56 do STF, impeditiva da manutenção da pessoa em regime punitivo mais gravoso.

Noutro passo, do STF também se extrai a preponderância do contexto concreto sobre a quantidade. Trata-se de caso no qual foi verificada a condição “mula” da pessoa em situação de cárcere: “(…) a tarefa de interpretação constitucional para análise de excepcional situação jurídica de constrição da liberdade exige que a alusão a esses aspectos esteja lastreada em elementos concretos, devidamente explicitados (…)” (HC 195.990 AgR).

Segundo round

Noutra ponta do debate, os órgãos de controle ético-disciplinar da magistratura também são vulneráveis aos ataques concertados, pois outros órgãos e sujeitos interessados em “docilizar” os julgadores às suas pautas não hesitam em instrumentalizar a esfera correcional, seja por caminhos “subterrâneos” (informais) e/ou midiáticos-sensacionalistas.

Desse modo, os interessados em prejudicar magistrados de pensamento divergente, buscam usar as Corregedorias como instância recursal [4], como se esperassem um “2º round” prisional e uma inquisição que “queime” liminarmente bons juízes que pensem diferente. É preciso, portanto, que as Corregedorias se atentem que, elas próprias, podem ser instrumentalizadas por partes, órgãos e mídias com fins não tão democráticos e, desse modo, seriam ferramenta fragilização da independência judicial, reforçando o “lawfare antijudicial” e ofertando-lhe combustível.

Em suma, membros do Judiciário devem obediência à Constituição e não à desinformação. Não são escravos de quem discorda de suas conclusões. São, outrossim, servos da Constituição e do povo, selecionados por concurso técnico (e não político) para aplicação justa da ordem jurídica. Urge, por outro lado, que os canais de controle midiático comuniquem adequadamente e não propaguem desinformação ofensiva não só ao Judiciário, mas, ao fim e ao cabo, à própria população que se quer proteger.

Em síntese, o “lawfare antijudicial” ergue-se principalmente da manipulação de dois “nichos” — o midiático e o ético-disciplinar —, com a finalidade de “docilizar” os julgadores às pretensões nem sempre constitucionais. Assustadoramente, até esta data, não se conhece apuração institucional séria sobre essa prática “subterrânea” e sorrateira que, apresentando-se como sucedâneo do recurso cabível, revela a dura faceta contemporânea da vulnerabilidade judicial.

 


[1] RECUERO, Raquel. A Rede da Desinformação: Sistemas, Estruturas e Dinâmicas nas Plataformas de Mídias Sociais. Porto Alegre: Sulina, 2024.

[2] MARTINS, Cristiano Zanin. MARTINS, Valeska Teixeira Zanin. VALIM, Rafael. Lawfare: uma Introdução. São Paulo: Contracorrente, 2019.

[3] MAFFESOLI, Michel. Apocalipse: Opinião Pública e Opinião Publicada. Porto Alegre: Sulina, 2010.

[4] ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah. Não recorro e te represento na Corregedoria: a lógica autoritária permanece? Acesso em: 5 Mar. 2025.

Autores

  • é pós-doutor em “Direito Processual” (PPGD-UFES) e em “Direito e Sociedade” (UniLaSalle/Canoas-RS), doutor em Direito Constitucional (Unifor), mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), pós-graduado em “Direitos Civil e Processual Civil” e em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” (Ciesa), professor de Direito Processual Civil (Ufam), defensor público (DP-AM) e líder do grupo de pesquisa Direito da Proteção dos Vulneráveis e Sistema de Justiça (PPGD-Ufam).

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