Influência dos antecedentes criminais no Tribunal do Júri: prejuízo à Justiça?
17 de março de 2025, 17h22
A utilização da certidão de antecedentes criminais no Tribunal do Júri é um tema que desafia os fundamentos constitucionais do direito penal brasileiro. Ao contrário do que estabelece a Constituição, que adota o direito penal do fato como princípio orientador do sistema acusatório, a menção aos antecedentes no julgamento fere a imparcialidade dos jurados e traz à tona o criticado direito penal do autor.

O Tribunal do Júri, consagrado no artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição, é uma garantia pétrea que visa, entre outros aspectos, a permitir que o cidadão seja julgado por seus pares — aqui vale o adendo de que o sistema bifásico do rito do Tribunal do Júri serve como uma segunda chance ao acusado; convencido de que o acusado seja, de fato, culpado, o magistrado, não possuindo poder para condená-lo, deve submeter-lhe ao Conselho de Sentença, sendo este último uma garantia individual do acusado, conferido pela Constituição; infelizmente, na prática, este sistema foi convertido num sistema pilatiano onde o magistrado “lava suas mãos” e submete o acusado, mesmo que sem respaldo probatório, ao plenário, tornando a decisão de pronúncia uma mera repetição do recebimento da denúncia.
Contudo, o julgamento por leigos, sem formação jurídica, traz consigo a responsabilidade de evitar influências externas que possam comprometer a análise imparcial do fato. Como bem destaca Ana Lúcia Menezes Vieira, os jurados são particularmente permeáveis à opinião pública e a fatores emocionais, o que torna o ambiente de julgamento altamente suscetível a desvios de foco. Aqui, entra o papel dos antecedentes criminais. Mencioná-los durante os debates no plenário altera significativamente a percepção dos jurados. Como enfatiza o ministro Reynaldo Soares da Fonseca em seu voto no RHC 94.434/RS, a utilização de elementos da vida pregressa do acusado, sem relação com o fato em julgamento, perpetua a lógica do direito penal do autor, punindo o indivíduo por quem ele é e não pelo que fez.
Oposição ao princípio da culpabilidade
Essa prática se opõe ao princípio da culpabilidade, consagrado na Constituição. O princípio da culpabilidade determina que não há crime se não houver reprovabilidade do fato — “nulla poena, sine culpa”. Gisela Gondin Ramos leciona que o princípio da culpabilidade é uma manifestação do princípio da humanidade, valor fundamental definido no artigo 1º, III, da Constituição, e, além disso, encontra-se “expresso no artigo 5º, LVII, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Daí a exigência de que alguém somente pode ser apenado se a sua culpabilidade restar comprovada”. (RAMOS, 2012, p. 539). Nivaldo Brunoni, em análise sobre a ilegitimidade do direito penal do autor, destaca que tal abordagem “enxovalha o princípio da legalidade” e a dignidade humana, ao desviar o foco do julgamento da conduta para a personalidade do réu.
Além disso, como ensina Günther Jakobs, ao se adotar o direito penal do autor, corre-se o risco de criminalizar o sujeito pela sua suposta periculosidade, desconsiderando-se o fato concreto. Isso distorce a função do Tribunal do Júri, cuja competência é julgar crimes dolosos contra a vida com base nas provas apresentadas, e não na história de vida do acusado. Ao permitir que o passado do réu entre no julgamento, estamos permitindo que o sistema penal, que deveria ser acusatório e orientado para a busca da verdade real, seja corrompido por um viés punitivo e preconceituoso.
O direito penal do fato, por outro lado, determina que o infrator deve ser julgado exclusivamente pela sua conduta delitiva, sem que características pessoais ou antecedentes interfiram na formação da culpa. Como afirma Murilo Vilela Freitas Martins, a culpabilidade deve estar relacionada apenas ao fato concretamente realizado e não às circunstâncias pregressas do autor.
Papel do Tribunal do Júri

Em julgamentos realizados por leigos, como ocorre no Tribunal do Júri, a exposição de antecedentes pessoais desvirtua o propósito do processo penal democrático. A função do jurado é julgar os elementos fáticos e probatórios que cercam o crime em questão, e não exercer juízos morais sobre o réu. A mera menção aos antecedentes pode causar um efeito devastador para a defesa, como observou Guilherme de Souza Nucci, uma vez que os jurados, sem a devida formação jurídica, podem ser facilmente influenciados por essas informações.
O artigo 478 do CPP já veda a menção de certas circunstâncias que poderiam influenciar os jurados, como o uso de algemas ou o silêncio do acusado. Contudo, essa proteção precisa ser ampliada para incluir expressamente a proibição do uso dos antecedentes criminais no plenário. Afinal, como defende Caroline Silveira de Jesus, ao expor os antecedentes, rotula-se o acusado como “criminoso” antes mesmo da análise cuidadosa dos fatos e provas.
Menção a antecedentes criminais
Portanto, a menção aos antecedentes criminais no Tribunal do Júri subverte a lógica do direito penal brasileiro, ao permitir que o julgamento seja contaminado por um viés que desumaniza o réu e antecipa uma condenação com base em sua vida passada. O correto seria restringir a utilização dos antecedentes para a fase posterior à condenação, apenas para a dosimetria da pena. Essa medida, além de preservar a dignidade da pessoa humana, garante que o foco do julgamento permaneça exclusivamente nos fatos relacionados ao crime em questão.
Para assegurar um processo justo, é fundamental que o legislador amplie as disposições do artigo 478 do CPP, proibindo expressamente a utilização de antecedentes criminais nos debates do Tribunal do Júri. Essa mudança é necessária para proteger a presunção de inocência e garantir que a justiça penal continue sendo orientada pelo direito penal do fato, conforme preconizado pela nossa Constituição.
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Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988.
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Brasília: Presidência da República, 1941.
FONSECA, Reynaldo Soares da. RHC 94.434/RS. Quinta Turma do STJ, julgado em 13/03/2018, DJe 21/03/2018.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed. 2020.
JESUS, Caroline Silveira de. Direito Penal do Autor no Tribunal do Júri. 2020.
MARTINS, Murilo Vilela Freitas. Direito Penal do Autor e Direito Penal do Fato. UniRV, 2019.
MENEZES, Ana Lúcia. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.
RAMOS, Gisela Gondin. Princípios Jurídicos. Prefácio de Fábio Konder Comparato. – Belo Horizonte: Fórum, 2012.
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