Possibilidade de penhora do bem de família vultoso: análise jurisprudencial
16 de março de 2025, 7h06
Por meio da Lei nº 8.009/90, o imóvel que serve como residência da família brasileira é especialmente protegido de sua expropriação para o pagamento de qualquer tipo de dívida, sob o manto da impenhorabilidade do bem de família. A sua ratio legis é tutelar o direito fundamental à moradia, disposto no artigo 6° da Constituição.
Entretanto, tal direito não é absoluto. A título de exemplo, podemos citas os casos em que o exequente busca a penhora do imóvel familiar para a cobrança de imposto predial, territorial, execução da hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real, entre outras exceções dispostas no artigo 3° da Lei nº 8.009/90. Importante pontuar, todavia, que tais dispositivos, ao permitirem a penhora do bem de família, não são inconstitucionais.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o direito fundamental à moradia deve ser compatibilizado com outros direitos fundamentais, tal como decidiu ao fixar a tese de repercussão geral para o Tema 1.127: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial” [1].
Nesse contexto, tem se tornado cada vez mais comum que os credores recorram ao Judiciário para discutir a possibilidade de penhora do bem de família quando há indícios de que o seu valor de mercado seja vultuoso.
Por meio deste texto, abordaremos algumas decisões recentes de destaque que, ao relativizar a possibilidade de penhora do bem de família, deferiram a constrição parcial do bem cujo valor é de grande expressão.
Recentemente, a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao Agravo de Instrumento nº 2338345-88.2024.8.26.0000, interposto pelo executado. Por meio desse, o agravante pretendia o reconhecimento da qualidade de bem de família do seu imóvel e, consequentemente, a declaração de sua impenhorabilidade integral.
Nova moradia digna
No acórdão, lavrado sob a relatoria da desembargadora Sandra Galhardo Esteves, a Câmara fez uma digressão a respeito da trajetória legislativa do tema bem de família, desde a Constituição de 1988 até a promulgação da Lei nº 8.009/90.
Na oportunidade, os julgadores foram enfáticos ao expor que o direito à moradia é legalmente previsto e, por óbvio, deve ser respeitado. Todavia, não pode sobrepujar o direito do credor à satisfação da dívida quando verificado que o imóvel possui expressivo valor de mercado.
Ao final, a Câmara negou provimento ao recurso, e manteve a decisão agravada que determinou a avaliação do imóvel para que posteriormente seja analisada a sua impenhorabilidade. Segundo a Corte Bandeirante, caso o imóvel possua valor vultoso, será possível a sua penhora, desde que seja assegurado ao devedor uma quantia para a aquisição de uma nova moradia digna.

O entendimento, apesar de raro, não é isolado, especialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo. Em 2021, a 16ª Câmara de Direito Privado deu parcial provimento ao Agravo de Instrumento nº 2075933-13.2021.8.26.0000, interposto pelo exequente. Como resultado, deferiu a penhora de um imóvel avaliado em R$ 24 milhões, resguardando ao executado a quantia equivalente a 10% desse valor para a compra de uma nova residência.
No acórdão, lavrado sob a relatoria do desembargador Ademir Modesto de Souza, constou que a quantia garante ao devedor o direito a uma moradia digna, conforme pretendeu o legislador ao tratar do tema junto à Constituição e à Lei nº 8.009/90.
Outro interessante acórdão foi proferido pela 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2288903-95.2020.8.26.0000, interposto pela parte executada, com o objetivo de que fosse reconhecida a qualidade de bem de família do seu imóvel.
A corte julgadora reconheceu que a devedora comprovou residir no imóvel e que aquele era o único registrado em seu nome, preenchendo, assim, os requisitos do artigo 5° da Lei nº 8.099/90 para o reconhecimento da qualidade de bem de família do imóvel. Todavia, tais pontos não foram óbices para o deferimento da penhora do bem. Nas razões do acórdão, lavrado sob a relatoria da desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, constou que o valor da avaliação do imóvel era de R$ 1.780.000, muito superior ao valor da dívida, que era de R$ 495.999,70.
Assim, de acordo com a Câmara, a alienação do bem vultoso para a satisfação da dívida respeitaria tanto o direito do credor em ter o seu crédito satisfeito, quanto o direito do executado à moradia digna, que poderá ser garantida com o saldo residual da venda do imóvel após a satisfação da execução.
Além dessas decisões, denota-se, porém, que há uma lacuna legal e jurisprudencial a respeito de qual seria o valor suficiente para garantir ao devedor uma moradia digna para residir com a sua família. Lacuna essa que, muitas vezes, é um óbice para o deferimento da penhora do bem de família de valor vultoso.
Entretanto, acreditamos que esse hiato não pode ser um impedimento para que a impenhorabilidade do bem de família seja flexibilizada quando o devedor destina todo o seu patrimônio à aquisição de um imóvel de caráter excessivamente luxuoso e desnecessário. Afinal, embora a execução não deva conduzi-lo a uma situação indigna, não se pode admitir que as disposições relativas à impenhorabilidade sejam utilizadas de maneira abusiva pelo executado, com o intuito de obstruir o regular andamento da execução [2].
De todo o exposto, acreditamos que seja válida a relativização da impenhorabilidade do bem de família quando verificado, sem sombra de dúvidas, que o imóvel possui valor vultoso, muito além do necessário para garantir uma residência digna ao devedor. Assim, é possível concatenar o direito do executado à moradia, conforme lhe garante a Constituição por meio do artigo 6°, e a Lei n° 8.009/90, para com o direito do credor à liquidação da dívida por meio da penhora de bens do executado, esculpido no artigo 797 do Código de Processo Civil.
[1] (STF – RE 1.307.334, Tribunal Pleno, Rel.: Alexandre de Moraes, julgado em 09.03.2022).
[2] MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.
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