Público & Pragmático

A política de consensualidade do estado da Bahia

Autor

  • é mestre em Direito Público (UFBA) professor da Faculdade Baiana de Direito membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

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16 de março de 2025, 8h00

Em outubro de 2024 foi publicada a Lei Estadual nº 14.783, que instituiu a Política de Consensualidade no âmbito do estado da Bahia. O propósito geral declarado do diploma é estimular a consensualidade e reduzir a litigiosidade, tanto administrativa quanto judicial.

Além disso, a lei positivou múltiplos objetivos específicos, merecendo destaque o estímulo ao consenso e a redução de conflitos, a redução de dispêndio de recursos públicos na instauração e acompanhamento de processos administrativos e judiciais quando os custos não justifiquem os benefícios, a redução de passivos decorrentes de controvérsias (individuais, coletivas e repetitivas), a uniformização na solução de conflitos e ampliação da segurança jurídica.

A lei também estipulou em quais tipos de litígio envolvendo a administração pública a autocomposição não deverá ser realizada. Optou-se por interditar acordos em que a controvérsias somente possam ser resolvidas por atos ou concessões de direitos que dependam de autorização do Poder Legislativo, que envolvam pretensão contrária à orientação jurídico-formal da PGE ou a jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores, que decorram de sentença penal condenatória transitada em julgado, em que o valor que exceda a alçada dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, quanto à pretensão objeto de ação judicial em curso nestes órgãos e no qual o interessado teve a sua pretensão rejeitada com trânsito em julgado.

Foi atribuída à PGE uma função de destaque na condução da política de consensualidade. Além de a política ser coordenada pelo órgão de assessoramento jurídico do Estado, caberá ao procurador geral, por exemplo, estabelecer as condições e requisitos para o exercício das autorizações e acordos relacionadas à lei, incluindo os requisitos para a sua validade, tal como a necessidade de exame de probabilidade de êxito das teses, análise de viabilidade jurídica do acordo e exame de economicidade do acordo para o Estado, além de hipóteses de autorização para não apresentação de defesa, não interposição ou desistência de recursos.

Foram expressamente previstas na lei os métodos extrajudiciais de solução de controvérsias (Mescs). Fixou-se que os contratos, convênios, parcerias, contratos de gestão e instrumentos congêneres poderão prever quaisquer dos Mescs, notadamente a negociação, a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Mais do que isso, a lei previu que estes mecanismos podem ser utilizados mesmo quando não previstos nos contratos e instrumentos congêneres, desde que aprovado pela PGE

A lei também previu as hipóteses de rescisão de acordos celebrados: descumprimento das condições, das cláusulas ou dos compromissos assumidos, ocorrência de dolo, de fraude, de simulação ou de erro essencial quanto à pessoa ou quanto ao objeto do conflito, ocorrência de alguma das hipóteses rescisórias adicionalmente previstas no respectivo termo de acordo e a inobservância de quaisquer disposições da lei. Como consequência da rescisão, a lei demanda a exigibilidade imediata da totalidade do débito confessado e ainda não pago, o cancelamento das condições estabelecidas no termo de acordo, inclusive sobre o valor já pago e a apuração do valor original do débito, restabelecendo-se os acréscimos legais na forma da legislação aplicável a época da ocorrência dos respectivos fatos geradores até a data da rescisão, deduzidos os valores já pagos.

A redação do dispositivo, contudo, parece não considerar a hipótese de o responsável pelo descumprimento do acordo ser o próprio Estado e, por isso, não prevê consequências para estas situações. Esta omissão legal é especialmente impactante para os particulares de boa-fé.

De forma a garantir segurança jurídica para os agentes públicos que atuarem nos processos consensuais e estimular a realização de acordos, a lei previu que estes só poderão ser civil, administrativa e criminalmente responsabilizados, inclusive perante órgãos de controle, quando agirem com dolo ou fraude para obter vantagem indevida para si ou para outrem.

A lei também não descuidou da possibilidade de solução consensual de conflitos eventualmente existentes entre órgãos e entidades do próprio estado ou entre estes e outras estruturas estatais, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, ou mesmo entidades e órgãos de outros entes federados.

Ponto de destaque é a expressa previsão em lei da utilização de tecnologia da informação para realizar prognósticos de resultados de demandas a partir de análise de precedentes judiciais e administrativos. De forma simples, o poder público passa a estar expressamente autorizado a realizar juízos de custo-benefício na instauração ou continuidade de processos, notadamente aqueles com alto potencial repetitivo e com potencial multiplicador de demanda.

Em segundo lugar, a lei positivou a possibilidade de decretação, pelas partes, da confidencialidade das negociações, desde que justificada diante do caso concreto. Uma vez acordada pelas partes, a confidencialidade se estende a todas as informações produzidas no processo de autocomposição e alcança todos os envolvidos na negociação, inclusive os terceiros facilitadores, conciliadores, mediadores, assessores e advogados.

Trata-se de correta relativização do princípio da publicidade. Saber que manifestações, declarações, promessas, oferta de propostas e reconhecimento de fato não serão publicizados antes do fim da negociação e sem o consentimento dos envolvidos cria incentivos positivos. A confidencialidade em um ambiente de autocomposição contribui para a transparência e facilita o atingimento de consensos, uma vez que interdita a utilização da informação fornecida para outros fins.

A lei também possui o mérito de estender a qualquer um que possua legítimo interesse a possibilidade de requerer o início do processo de autocomposição. Isso significa que não apenas os órgãos públicos, mas também os particulares interessados/afetados podem provocar a utilização dos mecanismos de consenso. Em qualquer caso, a PGE, além de também poder dar início aos processos, sempre deverá ser ouvida após a instrução técnica inicial.

Na linha de reduzir dispêndios desnecessários, a lei previu a possibilidade de celebração de transação por adesão. Trata-se de modalidade de acordo em que o poder público define unilateralmente requisitos, condições e procedimentos gerais para a prevenção ou o encerramento de litígios. O caráter unilateral da definição dos termos esvazia a natureza efetivamente negocial e consensual da transação. Em compensação, a lei expressamente autoriza este tipo de acordo apenas sobre matérias com potencial repetitivo.

Consolidação

Apesar de já existirem outros diplomas legais que autorizam e balizam a atuação consensual do Estado, notadamente a Lei de Ação Civil Pública, o Código de Processo Civil, o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, no caso específico de licitações e contratos, o artigo 151 da Lei Federal nº 14.133/2021, a nova lei baiana contribui efetivamente para consolidação de um paradigma menos adversarial e mais horizontal do Direito Administrativo.

Em primeiro lugar, sinaliza de forma específica para agentes privados a plena legalidade da possibilidade de acordos e a disposição do Estado em reduzir litígios. Em segundo lugar, cria critérios, mecanismos e procedimentos específicos para a condução de autocomposições na órbita do Estado. Como consequência, afasta qualquer dúvida dos próprios agentes públicos envolvidos no dia-a-dia da gestão pública sobre a possibilidade da celebração de acordos.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado (USP), mestre em Direito Público (UFBA), MBA em PPPs e Concessões (FESPSP), professor da Faculdade Baiana de Direito e advogado.

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