As Súmulas Vinculantes 60 e 61 do STF: a distante realidade humana
15 de março de 2025, 13h24
As súmulas estabelecem critérios rígidos para que medicamentos registrados ou não na Avisa, não incluídos nas listas do SUS, possam ser concedidos judicialmente
Esses critérios, embora justificados pela necessidade de padronizar decisões e evitar abusos, acabam desafiando o equilíbrio entre a garantia do direito à saúde e a preservação da dignidade humana. Como advogado que acompanha famílias em busca de tratamentos essenciais, vejo de perto o impacto que essas exigências têm na vida daqueles que dependem de fármacos para melhorar ou mesmo preservar sua qualidade de vida. Na prática, muitas famílias já enfrentam enormes dificuldades, e o rigor desses critérios pode tornar a busca pela Justiça ainda mais penosa e desestimulante, contribuindo para o aumento das desigualdades sociais.
Entre os requisitos previstos pelas súmulas, como a demonstração da ausência de alternativas terapêuticas ou a comprovação da eficácia científica, estão exigências que colocam um ônus excessivo sobre famílias em situação de vulnerabilidade. Essas famílias, muitas vezes, não têm meios financeiros, emocionais ou jurídicos para atender a tais demandas. Quando documentos e informações essenciais estão sob a posse exclusiva da administração pública ou dependem de pareceres científicos difíceis de acessar, o processo se torna um fardo insuportável. Obrigar alguém, especialmente uma mãe ou pai que já lida com a luta diária pela saúde e pelo bem-estar de um filho, a produzir provas praticamente inatingíveis não é apenas uma barreira judicial, mas uma violação ao princípio da dignidade humana, desde tempos consagrada como absoluta.
O papel do Judiciário, sobretudo em questões de saúde, não deve ser o de dificultar o acesso a direitos, mas o de atuar como um facilitador da justiça e da igualdade. A interpretação inflexível das Súmulas Vinculantes 60-61 do STF corre o risco de aprofundar desigualdades e limitar o alcance de direitos fundamentais assegurados pela Constituição, cláusulas pétreas, como o direito à saúde, previsto em todo texto constitucional, dentre eles, o artigo 196. O processo judicial deve ser um caminho para resolver problemas, não para ampliá-los, especialmente para aqueles que mais precisam.
A rigidez de critérios, como a exigência de laudos médicos específicos ou provas científicas que são praticamente impossíveis de reunir, ignora as dificuldades reais enfrentadas por famílias que vivem no limite da sua capacidade física e emocional. Garantir o acesso a medicamentos e produtos terapêuticos, ainda que somente registrados em organismos internacionais, é mais do que um ato de Justiça; é uma ação que preserva vidas, assegura dignidade e reflete humanidade.
Diante disso, o maior desafio que as Súmulas Vinculantes 60-61 nos apresenta é aplicar seus critérios com sensibilidade e à luz dos princípios constitucionais, como a proporcionalidade e a razoabilidade. Apenas com uma interpretação que considere as realidades humanas será possível garantir que o Judiciário continue sendo um espaço de acolhimento e proteção, evitando que direitos fundamentais sejam sacrificados em nome de uma tecnicidade que ignora a vida das pessoas por trás de cada processo.
A propósito, vejamos as palavras do discurso do papa João Paulo 2º aos participantes no 19º Congresso Internacional do Pontifício Conselho para Pastoral no Campo da Saúde, em 12 de novembro de 2004, justamente para que atentássemos para as realidades humanas e dignidade na área da saúde:
“1. Sinto-me feliz por vos receber por ocasião da Conferência Internacional do Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, cujos trabalhos estão a decorrer. Agradeço ao senhor cardeal Javier Lozano Barragán as gentis expressões que, em nome de todos, acabou de me dirigir. O meu pensamento agradecido e o meu apreço dirigem-se para quantos deram o seu contributo para esta assembleia, assim como para os numerosos médicos e a quantos trabalham no campo da saúde que, no mundo, dedicam às próprias capacidades científicas, humanas e espirituais ao alívio do sofrimento e das suas consequências.
2. A medicina coloca-se sempre ao serviço da vida. Mesmo quando sabe que não pode debelar uma grave patologia, dedica às próprias capacidades ao alívio dos sofrimentos. Trabalhar com paixão para ajudar o doente em qualquer situação significa ter a consciência da dignidade inalienável de cada ser humano, também nas condições extremas do estado terminal. Nesta dedicação ao serviço de quem sofre, o cristão reconhece uma dimensão fundamental da própria vocação: de facto, no cumprimento desta tarefa ele sabe que se ocupa do próprio Cristo (cf. Mt 25, 35-40).
“É, pois, por Cristo que se esclarece o enigma da dor e da morte, o qual, à margem do Evangelho, nos esmaga”, recorda o Concílio (Gaudium et spes, 22). Quem se abre, na fé, a esta luz, encontra conforto no próprio sofrimento e adquire a capacidade de aliviar o sofrimento do próximo. Existe, de facto, uma relação directamente proporcional entre a capacidade de sofrer e a capacidade de ajudar quem sofre. A experiência cotidiana ensina que as pessoas mais sensíveis ao sofrimento do próximo e que mais se dedicam ao alívio das dores do próximo estão também mais dispostas a aceitar, com a ajuda de Deus, os próprios sofrimentos.
3. O amor para com o próximo, que Jesus esboçou com eficiência na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 29ss.), torna capaz de reconhecer a dignidade de cada pessoa, também quando a doença começou a pesar sobre a sua existência. O sofrimento, a idade avançada, o estado de inconsciência na iminência da morte não diminuem a dignidade intrínseca da pessoa, criada à imagem de Deus. Entre os dramas causados por uma ética que pretende estabelecer quem pode viver e quem deve morrer, encontra-se o da eutanásia. Mesmo sendo motivada por sentimentos de uma mal-entendida compaixão ou de uma mal compreendida dignidade a ser perseverada, a eutanásia em vez de resgatar a pessoa do sofrimento realiza a sua supressão. A compaixão, quando está privada da vontade de enfrentar e acompanhar quem sofre, leva à eliminação da vida para aniquilar a dor, alterando assim o estatuto ético da ciência médica.
4. A verdadeira compaixão, ao contrário, promove qualquer esforço razoável para favorecer a cura do doente. Ao mesmo tempo, ela ajuda a deter-se quando nenhuma ação se manifesta útil para essa finalidade. A recusa do excesso terapêutico não é uma recusa do doente e da sua vida. De fato, o objeto da resolução sobre a oportunidade de iniciar ou prosseguir uma prática terapêutica não é o valor da vida do doente, mas o valor da intervenção médica sobre o doente.

A eventual decisão de não empreender ou de interromper uma terapia será considerada eticamente correta quando ela se manifesta ineficiente ou claramente desproporcionada para fins de apoio à vida ou de recuperação da saúde. Por conseguinte, a recusa da tenacidade terapêutica não é o valor da vida do doente, mas o valor da intervenção médica no doente.
Será precisamente este sentido de respeito amoroso que ajudará a acompanhar o doente até ao fim, realizando todas as ações e atenções possíveis para diminuir os sofrimentos e favorecer na última parte da existência terrena uma vida o mais serena possível, que predisponha a alma para o encontro com o Pai celeste.
5. Sobretudo naquela fase da doença, em que deixa de ser possível praticar terapias proporcionadas e eficientes, enquanto se torna obrigatório evitar qualquer forma de excesso ou insistência terapêutica, apresenta-se a necessidade de “cuidados paliativos” que, como afirma a Encíclica Evangelium vitae, são “destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento” (nº 65).
Importância da pastoral da saúde e das capelanias nos hospitais
De fato, os cuidados paliativos, visam aliviar, sobretudo no doente em fase terminal, uma ampla gama de sintomas de sofrimento físico, psíquico e mental, exigindo por isso a intervenção de uma equipe de especialistas com competência médica, psicológica e religiosa, com um bom entendimento entre si para apoiar o doente na fase crítica.
Em particular, na Encíclica Evangelium vitae, foi sintetizada a doutrina tradicional acerca do uso lícito e por vezes obrigatório dos analgésicos no respeito da liberdade dos doentes, os quais devem estar em condições, na medida do possível, “de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus” (nº 65).
Por outro lado, enquanto não se deve deixar faltar aos doentes que têm necessidade do alívio que os analgésicos dão, a sua administração deverá ser efetivamente proporcionada à intensidade e à cura da dor, evitando qualquer forma de eutanásia que se poderia verificar quando se administram grandes doses de analgésicos precisamente com a finalidade de provocar a morte.
Para realizar essa articulada ajuda é necessário encorajar a formação de especialistas das curas paliativas, sobretudo estruturas didáticas às quais estejam comprometidos também psicólogos e agentes da pastoral.
6. A ciência e a técnica, contudo, nunca poderão dar uma resposta satisfatória aos interrogativos essenciais do coração humano. Só a fé pode responder a essas perguntas. A Igreja deseja continuar a oferecer o seu contributo específico através do acompanhamento humano e espiritual dos enfermos, que desejarem abrir-se à mensagem do amor de Deus, sempre atento às lágrimas de quem se dirige a Ele (cf. Sl 39, 13). Evidencia-se neste ponto a importância da pastoral da saúde, na qual desempenham um papel de especial relevo as capelanias nos hospitais, que tanto contribuem para o bem espiritual de quantos se encontram nas estruturas de saúde.
Depois, como esquecer o contributo precioso dos voluntários que com o seu serviço dão vida àquela fantasia da caridade que infunde esperança também à amarga experiência do sofrimento? É também por seu intermédio que Jesus pode continuar hoje a passar entre os homens, para os beneficiar e sanar (cf. Act 10, 38).
7. Desta forma, a Igreja oferece o seu contributo a esta missão entusiasmante em favor das pessoas que sofrem. Que o Senhor se digne iluminar todos os que assistem os doentes, encorajando-os a perseverar nos diferentes papéis e nas diversas responsabilidades. Maria, Mãe de Cristo, acompanhe todos nos momentos difíceis da dor e da doença, para que o sofrimento humano possa ser assumido no mistério salvífico da Cruz de Cristo.”
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