Justo Processo

A materialidade como requisito da decisão de pronúncia (parte 2 – a comprovação)

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  • é bacharela em Direito (UFPR) monitora e pós-graduanda em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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  • é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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15 de março de 2025, 8h00

Na semana passada discutimos sobre o standard probatório da materialidade na fase da decisão de pronúncia (parte 1 – standard probatório), concluindo que a sua ausência, ou a falta de comprovação inequívoca, deve ocasionar uma decisão de absolvição sumária ou de impronúncia do acusado. Em continuidade, no artigo de hoje, exploraremos a forma de comprovação da materialidade e a jurisprudência atual sobre o tema.

No caso dos crimes que deixam vestígios, o artigo 158 do CPP [1] determina que a realização do exame de corpo de delito é essencial, salvo nos casos em que a prova testemunhal se mostre suficiente. O exame é considerado direto quando a análise ocorre de forma imediata sobre o objeto periciado, estabelecendo uma relação direta entre o perito e os vestígios do crime, sem qualquer tipo de intermediação no processo de obtenção do conhecimento [2]. Todavia, em casos excepcionais, a impossibilidade da realização do exame de corpo de delito por desaparecimento dos vestígios do crime, o artigo 167 do CPP [3] autoriza o chamado exame indireto.

Nesse viés, as provas testemunhais e circunstâncias são admitidas em casos extraordinários, quando os vestígios do crime não puderem ser preservados [4], de forma que os tribunais superiores têm admitido que a materialidade seja provada por elementos indiretos, como testemunhas, filmagens, fotografias, gravações de áudio, dentre outros.

No AgRg no AREsp nº 2.753.303/CE, julgado em 26/11/2024, o ministro do STJ Messod Azulay Neto apontou que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permite a pronúncia mesmo na ausência de exame de corpo de delito, desde que outros meios probatórios idôneos estejam presentes”, explicando em seu voto que a materialidade, no caso de tentativa de homicídio qualificado, estaria comprovada “por meio de prontuário de atendimento médico, boletim de ocorrência e oitiva de testemunhas”.

No AgRg no AREsp nº 2.037.421/AL de 2022, o ministro Joel Ilan Paciornik, também decidiu que “no caso dos autos, embora ausente o exame de corpo de delito, houve a demonstração da materialidade delitiva através do laudo pericial do local dos fatos, depoimentos testemunhais e declarações da vítima”.

A 6ª Turma, por unanimidade, negou a decisão no AgRg no HC nº 818.956/AL, de relatoria do ministro Jesuíno Rissato, em 13/11/2023, decidindo em caso de tentativa de homicídio que os depoimentos das testemunhas e a confissão do próprio acusado serviriam, em tese, para comprovar os elementos necessários para a pronúncia, mesmo sem o laudo pericial.

Portanto, não se está a sustentar que, em caso de homicídio consumado, a ausência do corpo permita livremente a apreciação de outros elementos para comprovação da materialidade, mas sim de que são necessários elementos seguros e idôneos para a constatação da ocorrência do delito, vez que, como analisado no artigo da semana passada, a materialidade precisa estar comprovada.

Dito de outra forma, no caso específico do homicídio, a ausência do corpo não impede, por si só, a comprovação da materialidade. Pelo aspecto doutrinário, Paulo Rangel pontua que: “Em verdade, é possível que haja processo crime e, consequentemente, julgamento do acusado sem que seja encontrado o corpo da vítima, ou seja, o chamado júri sem corpo. Na ciência moderna e atual, não há como desprezarmos a tecnologia que é colocada em nossas mãos para aferir determinados fatos, tais como: interceptação telefônica; exame de DNA; exame de voz; bafômetro e o exame de sangue mais sensíveis para detectar, por exemplo, dosagens alcoólicas, dentre outros” [5].

Nesse ponto, também vale citar Fauzi Hassan-Choukr [6]: “deve ficar claro que a impossibilidade da realização do exame há de ser compreendida apenas pela inexistência de base material para a realização direta, a dizer, quando o crime não é realizado no momento oportuno pela desídia do Estado, ou sua realização é imprestável pela falta de aptidão técnica dos operadores encarregados de fazê-lo, não há que onerar o réu com uma prova indireta em vez daquela que poderia ter sido imediatamente realizada”.

Spacca

Cautela indispensável

Indo além, em interpretação sistemática, lembre-se que os tribunais também têm reiterado que a decisão de pronúncia não pode se apoiar exclusivamente em provas meramente informativas ou em depoimentos de “ouvir dizer” que não tenham sido submetidos ao contraditório em juízo [7]. Esse tipo de prova não possui a robustez necessária para justificar uma decisão de pronúncia [8], muito menos para alcançar a certeza exigida em relação à materialidade.

Logo, considerando a imprescindibilidade da prova da materialidade na decisão de pronúncia, especialmente porque sua ausência inviabiliza a admissibilidade para o julgamento pelo júri, impõe-se um rigoroso exame dessa fase processual. A correta avaliação dos elementos probatórios é essencial para evitar que a pronúncia recaia sobre indivíduos sem substrato suficiente, prevenindo, assim, o risco de submissão indevida de um inocente ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Aliás, não se pode olvidar que exames técnicos-periciais são importantes tanto para acusação quanto para a defesa, eis que a sua ausência pode limitar a comprovação da tese defensiva.

Nesse contexto, a atuação cautelosa dos magistrados, membros do Ministério Público e defensores se revela indispensável, de modo a assegurar que a decisão de pronúncia observe não apenas a existência de prova da materialidade e a suficiência dos indícios de autoria ou participação, mas também o princípio da presunção de inocência e seu desdobramento in dubio pro reo, essencial à garantia de um devido processo legal. E, para além da fase judicial, exige-se um trabalho cauteloso, minucioso e técnico na fase policial, com o intuito de produzir os elementos científicos que evidenciem a própria ocorrência do crime.

A decisão de pronúncia atua, portanto, como uma garantia para o acusado, servindo como um filtro destinado a barrar acusações sem fundamento antes de chegarem ao julgamento pelo júri. Para isso, é fundamental que o magistrado conduza uma avaliação criteriosa das provas, impedindo que o acusado seja submetido a julgamento sem a comprovação segura da materialidade delitiva a partir de elementos idôneos.

 


[1] “CPP. Art. 158.  Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”

[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª ed., São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 509-510.

[3] “CPP. Art. 167.  Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.”

[4] Deve-se lembrar que tecidos humanos, como sangue e outros tipos de conjunto de células, assim como membros de um corpo, são considerados como vestígios diretos.

[5] RANGEL, Paulo. Tribunal do júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 149. Entretanto, como explicado nesta coluna, “exame de DNA” ou outros exames de sangue, enquadram-se na categoria de exame direto.

[6] HASSAN-CHOUKR, Fauzi. Código de Processo Penal – comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 306.

[7] Nesse sentido, o STJ decidiu recentemente que “esta Corte Superior possui entendimento no sentido de que não se admite que a pronúncia esteja lastreada exclusivamente em elementos probatórios colhidos na fase investigativa que não foram ratificados em juízo ou em depoimentos judiciais de testemunhas por ‘ouvir dizer’” (STJ, AgRg no HC 704.868/AL). No mesmo sentido: STJ, Ag no HC 673.138/PE; STJ, HC 746.873/GO; STJ, AgRg no REsp 1.802.617/RS.

[8] Tema já enfrentado diversas vezes nesta coluna, como em: O testemunho indireto (hearsay) e sua complexa utilização no Tribunal do Júri; Em busca de maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte 1); Em busca de maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte 2); Em busca de uma maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte final); A decisão de pronúncia como garantia e os elementos colhidos no inquérito policial.

Autores

  • é bacharela em Direito (UFPR), monitora e pós-graduanda em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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