Enfrentamento à regressividade fiscal sobre consumo: cashback e cesta básica de alimentos
13 de março de 2025, 16h18
As distorções da tributação sobre o consumo vêm, historicamente, onerando aos mais pobres em face, justamente, do caráter altamente regressivo dos inúmeros tributos incidentes sobre bens e serviços, os quais correspondem a mais de 50% do total arrecadado. Aliado a isso, outros pontos controvertidos, como a defasagem da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas, a incidência de contribuição previdenciária sobre salários irrisórios e a ausência de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), colaboram para a acentuação daquilo que se convencionou denominar de “injustiça fiscal à brasileira”.

Especificamente em relação a tabela do imposto de renda, estudos apontam que sua defasagem, comparativamente à inflação oficial, é de 167%, tomando-se por base o ano de 2024, o que prejudica demasiadamente os trabalhadores que ganham um pouco acima da atual faixa isentiva (tributação direta) e que já sofrem diretamente a sobrecarga dos tributos indiretos (nomeadamente sobre o consumo) [1].
Todo esse conjunto de assimetrias, entre tantas outras incoerências do sistema tributário, podem ser apontadas como fatores diretos da manutenção da desigualdade de renda e patrimônio no Brasil, já que a alta incidência da carga tributária sobre o consumo, além das distorções da tributação sobre a renda, agravam a situação daqueles que não ostentam uma real capacidade contributiva, colocando numa zona de conforto aqueles que estão em uma posição de contribuir de forma proporcional ao seu patrimônio ou renda.
Com o intento de corrigir tais assimetrias, pode-se apontar como dois avanços da reforma tributária a previsão da devolução personalizada do IBS e da CBS (cashback) e a redução a zero das alíquotas do IBS e da CBS sobre alguns itens da cesta básica nacional de alimentos.
Antes de analisar os pormenores desses novéis mecanismos de atenuação dos efeitos da regressividade fiscal, deve-se mencionar o artigo 145, §4°, da Constituição, que passou a prever, a partir da Emenda Constitucional nº 132, de 2023, que as alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos. Com isso, parece claro o objetivo assumido pela reforma tributária, de diminuir os efeitos regressivos que, historicamente, comprometem os ideais de justiça fiscal.
Dessa forma, ao lado dos princípios elencados no artigo 145, §3º (simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação e defesa do meio ambiente), os quais também fazem parte desta recente alteração, pode-se dizer que a Constituição brasileira passa incorporar, agora de uma forma explícita, um sexto princípio que delineia o Sistema Tributário nacional: o princípio da progressividade tributária.
A progressividade tributária já estava prevista no texto constitucional no artigo 153, §2º, inciso I, relativamente ao Imposto de Renda, o qual sempre esteve informado pela progressividade, ainda que a atual defasagem na atualização das faixas isentivas – que implicam diretamente na progressão das alíquotas – se afigure como uma das distorções do Sistema Tributário Nacional.
Como se mencionou no início do presente artigo de opinião, as distorções da tributação do consumo oneram diretamente os mais pobres, pois, devido ao fato de os tributos sobre o consumo serem indiretos, não há como tributar de maneira distinta aqueles que são economicamente vulneráveis, de forma que as famílias de baixa renda suportam a mesma carga tributária que milionários quando vão ao mercado comprar itens de alimentação.
Cesta Básica Nacional de Alimentos
Antes da reforma tributária, não havia um mecanismo específico de desoneração da tributação sobre o consumo às famílias mais pobres, de forma que a maneira de alcançar um pouco de justiça fiscal era a partir de programas de redução de alíquotas sobre alguns produtos essenciais, tornando-os, por consequência, mais baratos. Essa estratégia tributária se mantém, eis que uma das alterações encampadas pela reforma tributária é levar para o texto de lei complementar a redução permanente das alíquotas de alguns tributos sobre itens da cesta básica alimentar.
A Emenda Constitucional nº 132, de 2023, em seu artigo 8º, criou a Cesta Básica Nacional de Alimentos, que, na forma do texto, considerará a diversidade regional e cultural da alimentação do país e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada, em observância ao direito social à alimentação previsto no artigo 6º da Constituição Federal.
Conforme o parágrafo único do dispositivo citado, à lei complementar cumpre definir os produtos destinados à alimentação humana que comporão a Cesta Básica Nacional de Alimentos, sobre os quais as alíquotas dos tributos previstos nos artigos 156-A (IBS) e 195, V (CBS), da Constituição Federal serão reduzidas a zero.
Conforme o disposto no artigo 125, da Lei Complementar nº 214, de 2025, em atendimento ao comando da Emenda Constitucional nº 132, de 2023, que instituiu os tributos acima e os regulamentou, ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre as vendas de produtos destinados à alimentação humana relacionados no Anexo I da mesma lei. São 26 os itens que cujas alíquotas são reduzidas a zero, conforme se pode analisar abaixo:
ITEM | DESCRIÇÃO DO PRODUTO |
1 | Arroz das subposições 1006.20 e 1006.30 e do código 1006.40.00 da NCM/SH |
2 | Leite, em conformidade com os requisitos da legislação específica relativos ao consumo direto pela população, classificado nos códigos 0401.10.10, 0401.10.90, 0401.20.10, 0401.20.90, 0401.40.10 e 0401.50.10 da NCM/SH |
3 | Leite em pó, em conformidade com os requisitos da legislação específica, classificado nos códigos 0402.10.10, 0402.10.90, 0402.21.10, 0402.21.20, 0402.29.10 e 0402.29.20 da NCM/SH |
4 | Fórmulas infantis, em conformidade com os requisitos da legislação específica, classificadas nos códigos 1901.10.10, 1901.10.90 e 2106.90.90 da NCM/SH |
5 | Manteiga do código 0405.10.00 da NCM/SH |
6 | Margarina do código 1517.10.00 da NCM/SH |
7 | Feijões dos códigos 0713.33.19, 0713.33.29, 0713.33.99 e 0713.35.90 da NCM/SH |
8 | Café da posição 09.01 e da subposição 2101.1, ambos da NCM/SH |
9 | Óleo de babaçu do código 1513.21.20 da NCM/SH, em conformidade com os requisitos da legislação específica relativos ao consumo como alimento |
10 | Farinha de mandioca classificada no código 1106.20.00 da NCM/SH e tapioca e seus sucedâneos do código 1903.00.00 da NCM/SH |
11 | Farinha, grumos e sêmolas, de milho, dos códigos 1102.20.00 e 1103.13.00 da NCM |
12 | Grãos de milho classificados no código 1104.19.00 e do código 1104.23.00 da NCM/SH |
13 | Farinha de trigo do código 1101.00.10 da NCM/SH |
14 | Açúcar classificado nos códigos 1701.14.00 e 1701.99.00 da NCM/SH |
15 | Massas alimentícias da subposição 1902.1 da NCM/SH |
16 | Pão comumente denominado pão francês, de formato cilíndrico e alongado, com miolo branco creme e macio, e casca dourada e crocante, elaborado a partir da mistura ou pré-mistura de farinha de trigo, fermento biológico, água, sal, açúcar, aditivos alimentares e produtos de fortificação de farinhas, em conformidade com a legislação vigente, classificado no código 1905.90.90 da NCM/SH e a pré-mistura ou massa, para preparação do pão comumente denominado pão francês, dos códigos 1901.20.10 e 1901.20.90 da NCM/SH |
17 | Grãos de aveia dos códigos 1104.12.00 e 1104.22.00 da NCM/SH |
18 | Farinha de aveia classificada no código 1102.90.00 da NCM/SH |
19 | Carnes bovina, suína, ovina, caprina e de aves e produtos de origem animal (exceto foies gras) dos seguintes códigos, subposições e posições da NCM/SH: a) 02.01, 02.02, 0206.10.00, 0206.2 e 0210.20.00; b) 02.03, 0206.30.00, 0206.4, 0209.10 e 0210.1; c) 02.04 e 0210.99.20, carne caprina classificada no código 0210.99.90 e miudezas comestíveis de ovinos e caprinos classificadas nos códigos 0206.80.00 e 0206.90.00; d) 02.07, 0209.90.00 e 0210.99.1, exceto os produtos dos códigos 0207.43.00 e 0207.53.00 |
20 | Peixes e carnes de peixes (exceto salmonídeos, atuns, bacalhaus, hadoque, saithe e ovas e outros subprodutos) dos seguintes códigos, subposições e posições da NCM/SH: a) 03.02; exceto os produtos das subposições e dos códigos 0302.1, 0302.3, 0302.51.00, 0302.52.00, 0302.53.00 e 0302.9 da NCM/SH; b) 03.03; exceto os produtos das subposições e dos códigos 0303.1, 0303.4, 0303.63.00, 0303.64.00, 0303.65.00 e 0303.9 da NCM/SH; c) 03.04; exceto os salmonídeos, atuns, bacalhaus, hadoque e saithe classificados nas subposições 0304.4, 0304.5, 0304.7, 0304.8 e 0304.9 da NCM/SH |
21 | Queijos tipo mozarela, minas, prato, queijo de coalho, ricota, requeijão, queijo provolone, queijo parmesão, queijo fresco não maturado e queijo do reino classificados nos códigos 0406.10.10, 0406.10.90, 0406.20.00, 0406.90.10, 0406.90.20 e 0406.90.30 da NCM/SH |
22 | Sal em conformidade com os requisitos da legislação específica relativos ao teor de iodo enquadrado nos limites próprios para consumo humano classificado nos códigos 2501.00.20 e 2501.00.90 da NCM/SH |
23 | Mate da posição 09.03 da NCM/SH |
24 | Farinha com baixo teor de proteína para pessoas com aminoacidopatias, acidemias e defeitos do ciclo da uréia da NCM 1901.90.90 |
25 | Massas com baixo teor de proteína para pessoas com aminoacidopatias, acidemias e defeitos do ciclo da uréia da NCM 1902.19.00 |
26 | Fórmulas Dietoterápicas para Erros Inatos do Metabolismo da NCM 2106.9090 |
Além dos produtos relacionados no Anexo I, da Lei Complementar nº 214, de 2025, o Anexo XV, da mesma legislação, informa que serão reduzidas em 100% as alíquotas do IBS e da CBS dos seguintes produtos:
ITEM | DESCRIÇÃO DO PRODUTO |
1 | Ovos da subposição 0407.2 da NCM/SH |
2 | Produtos hortícolas das posições 07.01, 07.02.00.00, 07.03, 07.04, 07.05, 07.06, 0707.00.00, 07.08, 07.09 e 07.10, exceto os cogumelos e trufas classificados na subposição 0709.5 e no código 0710.80.00 da NCM/SH |
3 | Frutas frescas ou refrigeradas e frutas congeladas sem adição de açúcar ou de outros edulcorantes classificadas nas posições 08.03, 08.04, 08.05, 08.06, 08.07, 08.08, 08.09, 08.10 e 08.11 da NCM/SH |
4 | Plantas e produtos de floricultura relativos à horticultura e cultivados para fins alimentares, ornamentais ou medicinais classificados no Capítulo 6 da NCM/SH |
5 | Raízes e tubérculos da posição 07.14 da NCM/SH |
6 | Cocos da subposição 0801.1 da NCM/SH |
Dessa forma, em que pese os produtos acima não tenham sido elencados como itens componentes da cesta básica de alimentação, submeter-se-ão à integral das alíquotas da CBS e do IBS.
Cashback
Além dessas previsões que conferem uma tributação diferenciada aos itens que fazem parte do programa da Cesta Básica Nacional de Alimentos, a reforma tributária trouxe uma inovação que efetiva o compromisso de justiça tributária, conferindo um tratamento substancialmente diferenciado às famílias de baixa renda.
O programa de devolução personalizada do IBS e da CBS, também nominado “cashback” tem por escopo não tributar as famílias socialmente hipervulneráveis. Conforme o disposto no artigo 112, da Lei Complementar nº 214, de 2025, serão devolvidos, nos termos e limites, para pessoas físicas que forem integrantes de famílias de baixa renda, a CBS, pela União e o IBS, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.
O critério para que uma família possa ser considerada de baixa renda está descrito no artigo 113, que dispõe que o destinatário das devoluções previstas será aquele responsável por unidade familiar de família de baixa renda cadastrada no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e que observar, cumulativamente, os requisitos de possuir renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo nacional, ser residente no território nacional e possuir inscrição em situação regular no CPF.
Em termos operacionais, a Lei Complementar nº 214, de 2025, prevê, no art. 114, que a devolução da CBS será gerida pela Receita Federal do Brasil, ao passo que, no artigo 115, determina que a devolução do IBS será gerida pelo Comitê Gestor do IBS. O regramento específico da sistemática do cashback, sobretudo em relação ao momento destas devoluções, será previsto em regulamento específico, conforme o artigo 116, os quais ainda não foram editados.
Segundo o artigo 117, as devoluções serão calculadas mediante aplicação de percentual sobre o valor do tributo relativo ao consumo, formalizado por meio da emissão de documentos fiscais (o que fortalece o princípio da transparência tributária, insculpido no artigo 145, §3º, da Constituição Federal).
O percentual a ser aplicado nos termos do artigo 117 da Lei Complementar nº 214, de 2025, será de 100% para a CBS e 20% para o IBS na aquisição de botijão de até 13 kg de gás liquefeito de petróleo, nas operações de fornecimento domiciliar de energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário e gás canalizado e nas operações de fornecimento de telecomunicações e 20% para a CBS e para o IBS, nos demais casos.
Além dessa disposição geral, que não poderá ser minorada, a Lei Complementar nº 214, de 2025, permite um tratamento local diferenciado em razão da vulnerabilidade das famílias regionais. Dessa forma, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão, por lei específica, fixar percentuais de devolução da sua parcela da CBS ou do IBS superiores aos previstos nos incisos I e II da Lei Complementar nº 214, de 2025, os quais poderão ser diferenciados em função da renda familiar dos destinatários.
Devido ao regime de transição a ser observado, a sistemática de implementação do cashback também será gradativa. Conforme o disposto no artigo 123, as devoluções do IBS e da CBS serão calculadas com base no consumo familiar realizado a partir do mês de janeiro, de 2027, para a CBS, e do mês de janeiro, de 2029, para o IBS.
Em que pese o programa de devolução personalizada ainda não ter sido implementado, pode-se citar como uma medida símile o programa nomeado Devolve-ICMS, no Rio Grande do Sul, que foi criado no ano de 2021 com o objetivo de combater a regressividade tributária. Conforme consta do site da Secretaria da Fazenda, o escopo da iniciativa é reverter a lógica da regressividade fiscal ao se devolver de forma estimada o valor que uma pessoa de baixo poder aquisitivo gastou de imposto nas aquisições para consumo, atenuando-se os efeitos regressivos [2].
Dessa forma, sem ignorar as críticas já tecidas em outro artigo autoral [3], sobretudo em relação à faixa de renda familiar “enquadrável” no programa de devolução personalizada do IBS e da CBS, pode-se considerar que as medidas de promoção de justiça fiscal estão de acordo com um sistema progressivo de tributação. Contudo, para que se atenue, de fato, a regressividade fiscal, urge a reforma da tributação sobre a renda, engendrando-se mecanismos que, além de progressivos, fomentem uma tributação que, efetivamente, leve em conta a capacidade contributiva dos cidadãos.
[1] Disponível em: https://diariotributario.com.br/defasagem-da-tabela-do-imposto-de-renda-alcanca-167-em-2024/. Acesso em: 26 fev. 2025.
[2] https://devolveicms.rs.gov.br/o-que-e-o-devolve-icms.
[3] https://www.conjur.com.br/2024-mai-27/tributacao-indireta-como-afronta-e-cashback-como-avanco-da-reforma-tributaria/.
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