Senso Incomum

Como uma startup faz intensa advocacia por meio de robôs em Pindorama

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13 de março de 2025, 8h00

1. Sobre a notícia de que está surgindo ‘IA-Advocacia’, resta a pergunta: o robô fará exame da Ordem?

Leio nas redes a seguinte manchete:  “Enter: como uma startup brasileira de IA atraiu US$ 5,5 milhões da Sequoia”.  Bom, confio na veracidade da notícia publicada no site da prestigiada revista Exame. Descrevo, aqui, o que leio. Que não se brigue com o mensageiro.

Vamos à notícia: A Enter, uma startup brasileira fundada em 2023, utiliza inteligência artificial para automatizar defesas jurídicas, especialmente em ações trabalhistas e de consumo, visando a reduzir custos e aumentar a eficiência. Em 2024, a empresa recebeu um investimento de 5,5 milhões de dólares da Sequoia Capital, marcando o retorno do fundo ao Brasil após 12 anos desde seu aporte no Nubank.

Segue: A startup já conquistou clientes de destaque, como Banco BMG, Nubank, Vivo, C6 Bank, Inter, SulAmérica, Light Energia e iFood. Essas empresas, que enfrentam um grande volume de processos judiciais, perceberam a vantagem competitiva de utilizar a IA para reduzir custos e tempo nas defesas jurídicas.

Segundo a notícia, trata-se da criação de um agente de inteligência artificial que entende o motivo da ação judicial, processa informações dos sistemas internos da empresa para compreender o que de fato aconteceu e entrega uma defesa formal pronta para ser levada à Justiça.

A startup afirma que, com o uso de sua IA, tem obtido de 7% a 21% mais êxito nas defesas jurídicas em comparação com empresas que não utilizam essa tecnologia. Desde sua fundação, a Enter já gerou 34 mil contestações. Isto é, os robôs são melhores que os causídicos dessas empresas.

Finalizando, diz a notícia que, com o investimento da Sequoia Capital, a Enter planeja expandir suas operações e continuar aprimorando sua tecnologia para atender a diferentes necessidades das empresas, além do setor jurídico, posicionando-se como uma empresa de inteligência artificial para grandes corporações.

2. Crônica de um desastre anunciado: o que fará a OAB?

Pronto. O que era uma coceirinha virou uma gangrena. Um conjunto (pequeno, é verdade) de juristas que alertaram para essa tragédia poderia hoje receber os cumprimentos dos que achavam que “ah, isso é bobagem”; “ah, a IA vai trazer melhorias para a profissão de advogado”, “ah, a prestação jurisdicional vai melhorar”, “ah, quem critica a IA no direito é como aquele que criticava a energia elétrica que substituiu as velas…”. Ou “o que faremos dos cavalos com o advento do automóvel…”, como se as comparações tivessem algum sentido. Lembro sempre do menino do aeroporto, funcionário da Latam. Empolgou-se com os totens de autoatendimento. Avisei-o que o totem o substituiria. Nunca mais o vi no aeroporto. Mas o totem está lá!

Spacca

Não sei o que a OAB (ou a comunidade jurídica) vai dizer sobre isso. Explicitamente, o trabalho de advogar está sendo substituído por máquinas. Em vários lugares e situações. Basta ver nas redes sociais. Jovens advogados que nem clientes possuem “ensinando” como usar a IA. Jus Deus ex machina. De novo, descrevo o fenômeno.

Pior (ou melhor!) de tudo é que, segundo informam, melhorou o nível das defesas das empresas. Ou seja, o ensino juridico brasileiro vai tão mal que os advogados perdem para os robôs da startup.

De há muito chove na serra. Nós (mas me incluam fora dessa) é que não nos demos conta de que a chuvarada provocaria enchente. Eu avisei. E vai piorar.

Ao mesmo tempo em que uma startup (adoro esse nome) “otimiza” (logo surgirão outras para concorrer com essa) as defesas de grandes empresas na justiça do trabalho e na área cível (defesa do consumidor), parcela da comunidade jurídica está encantada com a busca de precedentes por meio da IA: robôs catadores — e caçadores — de precedentes. Ao mesmo tempo, os robôs são plagiadores, porque não citam as fontes doutrinárias. Vejam a matéria dando conta dos livros “chupados” pelas big techs para alimentar a IA (Treinamento de IA é o “maior roubo da história da humanidade”, afirma Toby Walsh contra Big Techs).

E ainda por cima há a questão do meio ambiente, porque o prejuízo no consumo de energia é descomunal.  Um estudo publicado na revista Nature Climate Change, em 2022, estimou que a IA poderá representar 10% das emissões globais de gases de efeito estufa até o ano de 2040.

Mas, o Brasil é vanguarda. A “atrasada” França proíbe o uso de Legal Tech (jurimetria) para prever decisões e coisas do gênero. Ao contrário daqui, em que o próprio Poder Judiciário se utiliza de Legal Techs. Aliás, a França criminalizou o tema. A pena para quem divulgar dados de legal tech pode chegar a cinco anos de prisão.  Nota: por favor, não digo que isso deva ser feito aqui. Apenas descrevo o que ocorre.

Ainda no plano da descrição (hoje estou empirista!), o fato é que, por aqui, advogados são substituídos por robôs.  Assessorias são trocadas por IA – fato. Decisões são elaboradas por IA — fato. Robôs filtram recursos – fato. E empresas (e advogados) vendem modelos de espiolhamento de decisões, por meio de repositórios disso que se chama “precedentes”, que, na realidade, não o são — fato.

3. Tudo vai bem no direito brasileiro: alguns tocam tambor

Mas, tudo vai bem. Às mil maravilhas.  Há alguns anos, antes da pandemia, li o livro de Alan Riding, Paris, a Festa Continuou, que trata da vida cultural de Paris durante a ocupação nazista. Há uma bela passagem, que fala de uma canção popular do ano de 1936, interpretada por Ray Ventura, chamada Tout va très bien, Madame La Marquise (“tudo vai bem, Madame Marquesa). A canção denunciava o que a França fingia não ver: o cataclismo que se aproximava.

Na canção de Ventura, os empregados de uma aristocrata continuavam a assegurar-lhe de que tudo estava bem, embora um incêndio tomara conta de seu castelo, destruindo os estábulos e matando a sua égua favorita. Além disso, o marido de Madame cometera suicídio, mas, ainda assim, não havia com que se preocupar, porque “tout va très bien, Madame Marquesa”.

Disso faço — como já fiz há tempos — uma paródia com o título da música de Ray Ventura, “tudo vai muito bem no mundo jurídico”. Como o famoso corsário, “afundando e atirando, afundando e atirando”!

Também há o filme italiano Stanno tutti bene (1990), com Marcelo Mastroianni. Os filhos estavam todos “bem”: por exemplo, o que era maestro, na verdade apenas tocava um tambor!

É assim que vejo o avanço da IA no direito.  Tout va três bien? Bom, para quem substitui advogados por IA, pelo visto, de fato tout va três bien. Ou Stanno tutti bene!

Embora para mais de um milhão de causídicos apenas reste tocar tambor…!

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