Opinião

Contradição normativo-performativa dos discursos de ódio e limites da liberdade de expressão

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13 de março de 2025, 13h22

Discurso de ódio e liberdade de expressão são coisas totalmente distintas: onde há discurso de ódio não há liberdade de expressão, e onde há liberdade de expressão não pode existir discurso de ódio. Outro ponto é que discurso de ódio é uma contradição em termos (contradictio in terminis), posto que, no sentido de uma ética do discurso (Apel, 1998; Habermas, 1999, 2022), discurso pressupõe respeito, diálogo, tolerância, abertura ao outro e alteridade, jamais o ódio.

As primeiras décadas do século 21 têm enfrentado um grande desafio: tem se tornado cada vez mais comum em tempos de rede social e internet, enquanto espaços ainda não devidamente regulamentados, o aumento de ondas reacionárias extremistas que poluem o ethos social (o comportamento social dos indivíduos e grupos) de palavras odiosas que equivocadamente têm se convencionado chamar de discurso de ódio.

A armadilha daqueles que defendem o discurso de ódio consiste em dizer que ele é liberdade de expressão. Essa artimanha extremista faz parte de um álibi e de uma postura anti-iluminista de uma apologia à desrazão e à violência segundo a qual tudo cabe no rótulo liberdade de expressão, tais como: divulgar notícias falsas e conteúdos ofensivos nas redes sociais e em mídias digitais; defender atrocidades de ditaduras militares que deixaram seus estigmas na sociedade; ofensas de gênero, raça, cor, etnia, classe social; falas em defesa de violação dos direitos humanos; ataques às instituições democráticas etc.

Onde há violência, não há liberdade

É necessário dizer que onde há violência física, verbal e simbólica, não há liberdade e não há ordem legítima do ponto de vista jurídico. Como dizia Rousseau em O contrato social, “a força não faz o direito”. O discurso de ódio é de saída contraditório porque discurso pressupõe racionalidade, respeitabilidade e diálogo. O ódio é o avesso, o contrário, dessas premissas. Como diz Adela Cortina no seu livro Aporofobia: aversão ao pobre — um desafio para a democracia, “quem respeita os outros dificilmente pronunciará discursos intolerantes que possam causar danos a alguém”.

A tolerância e a alteridade são imperativos éticos contemporâneos imprescindíveis na ressignificação das relações humanas depois dos horrores causados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Sem tais imperativos, a sociedade é abandonada àquilo que Hobbes em Leviatã e em De Cive chamou de “uma guerra de todos contra todos” (bellum omnium contra omnes) em que vence aquele que tem mais força de impor arbitrariamente e por meio da violência a sua ideologia, a sua vontade e o seu modo de agir (modus operandi).

Fake news

É fato que os discursos de ódio têm sido um desafio à democracia e à convivência harmônica, razoável e respeitosa entre os indivíduos nas suas relações sociais. Eles têm se aprofundado, sobretudo, devido ao uso de redes sociais não regulamentadas e ao uso de notícias e informações falsas (fake news) na internet, seja por parte de cidadãos comuns ou de políticos.

No dia 28 de maio de 2024, o Parlamento brasileiro (Câmara e Senado) manteve o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que criminalizava a disseminação de fake news em eleições, com punição de um a cinco anos de reclusão. A manutenção do veto à criminalização das fake news, não apenas demonstra um rechaço da ética da esfera política, como também mostra a permissividade de um “vale-tudo” na busca por poder e prolongamento da dominação arbitrária (Beherrschung), para usar aqui uma expressão de Rainer Forst (2018) na sua proposta de justificação normativa enquanto crítica do poder arbitrário e das relações de dominação.

Spacca

Os defensores da supracitada não-regulamentação subscrevem a não criminalização das fake news argumentando a favor da irrestrita liberdade de expressão. Entretanto, é necessário contra-argumentar que, seguindo Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, liberdade não significa “licenciosidade” para fazer o que se quer e violar as regras de bem-estar social.

É preciso também contra-argumentar a partir de Kant que a liberdade de expressão e o uso público da razão devem ocorrer mediante os limites normativos do Estado de direito e da constituição republicana, o que eu chamo de “liberdade constitucionalmente regrada” como sendo um componente normativo imprescindível do republicanismo kantiano.

Legitimidade da liberdade

Desse modo, perante o uso irrestrito, irresponsável e violento da liberdade de expressão visível em disseminação de fake news e em discursos de ódio, é preciso colocar em destaque a sua contradição normativa à medida que fere a dignidade humana e os princípios democráticos da vida pública harmônica. Trata-se aqui de evocar o princípio básico hobbesiano da “liberdade negativa”, segundo o qual o limite e a legitimidade da liberdade consistem em não causar dano a outrem.

Além da contradição normativa da liberdade de expressão violenta permeada de discurso de ódio, há também a sua contradição performativa: como bem pontua Adela Cortina no seu livro Aporofobia, referindo-se a Apel e a Habermas, o discurso de ódio é uma contradição em termos por três razões fundamentais:

  • é egocêntrico, isto é, o agressor fechado em si e em suas próprias convicções e no seu mundo não considera o outro como sujeito, mas como objeto, o que colapsa a possibilidade do discurso, da argumentação e do consenso em termos de práxis intersubjetiva;
  • o discurso de ódio é contradiscursivo, é violento, tendo inclusive o risco iminente de conduzir à violência e à morte;
  • o discurso de ódio é assimétrico, carrega consigo uma desigualdade radical entre o agressor e o agredido, de modo que aquele que profere as palavras e os atos odiosos, julga estar correto e legitimado a tal ação hostil.

Diante disso, a questão que se põe é a seguinte: como combater discurso de ódio e como limitar a liberdade de expressão patológica, doentia? Adela Cortina propõe duas saídas:

  • a penalidade jurídica que tem a função pedagógica de mostrar mediante a sanção que a ação é indevida para a construção de uma sociedade justa e estável;
  • a educação por meio da moralidade kantiana e da eticidade hegeliana, no sentido que na comunidade ética (Hegel) deve-se concretizar o pressuposto moral do igual respeito entre todos os seres humanos (Kant).

Contribuição da sociedade

Portanto, filósofos, juristas, cientistas sociais e políticos, a sociedade civil, as instituições, o Estado e a mídia por meio de campanhas educativas, as igrejas, entidades privadas, as escolas, as universidades, sindicatos, ONGs, dentre outros, têm a incumbência fundamental de intervir nessa discussão a fim de oferecer as suas contribuições em prol do devido enfrentamento do discurso de ódio. Prescindir desse enfrentamento significa fortalecer o recrudescimento às formas antidemocráticas da vida social e política, além de atestar o gradual aniquilamento das instituições.

No Brasil, especialmente por parte de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido elogiável as sucessivas advertências a fim de não se confundir discurso de ódio e fake news com liberdade de expressão, inclusive destacando a necessidade de responsabilização de grandes corporações digitais como a Meta e o X (antigo Twitter) no que diz respeito à checagem de fatos de postagens, de modo que a verdade e a soberania nacional não se curvem aos interesses econômicos e ao lucro de empresas de big data e de inteligência artificial que dominam o mercado global virtual.

Numa resposta à notificação extrajudicial da Advocacia Geral da União (AGU-Brasil), a Meta (dona do Facebook, Instagram, WhatsApp, Threads, Messenger, Oculus VR, Giphy e Mapillary) afirmou que parou de realizar o programa de verificação de fatos apenas nos EUA, e que isso foi feito em razão da defesa da liberdade de expressão. Mark Zuckerberg e Elon Musk, subsidiados por Donald Trump, tentam impor uma visão profundamente equivocada segundo a qual liberdade de expressão é um vale-tudo, um ringue em que tudo é permitido a fim de que o oponente seja nocauteado.

A determinação da suspensão imediata da plataforma Rumble Inc. no Brasil pelo ministro Alexandre de Moraes, ocorrida no dia 21 de fevereiro de 2025, destaca na sua relatoria acerca da Petição 9.935 do DF:

Reiterados, conscientes e voluntários descumprimentos das ordens judiciais, além da tentativa de não se submeter ao ordenamento jurídico e Poder Judiciário brasileiros, para instituir um ambiente de total impunidade e “terra sem lei” nas redes sociais brasileiras, bem como o periculum in mora – consistente na manutenção e ampliação da instrumentalização da RUMBLE INC., por meio da atuação de grupos extremistas e milícias digitais nas redes sociais, com massiva divulgação de discursos nazistas, racistas, fascistas, de ódio, antidemocráticos. (PET 9.935, p. 31).

Intimidação da Justiça

Tentativas de retaliação, intimidação e silenciamento do ministro Alexandre de Moraes, por meio de acusações segundo as quais ele estaria censurando a liberdade de expressão, significam um álibi para colocar a opinião pública contra o STF e abrir um portal de permissividade de fake news, discurso de ódio e negacionismo institucional nas pautas políticas, além de fazer parte de uma estratégia de desresponsabilização das mídias sociais quanto ao controle e ao filtro de postagens nas redes. Não se pode esquecer que os governos autoritários e totalitários se mantêm no poder através da cooptação e de estratégicas de silenciamento dos “inimigos”. As democracias morrem à medida que as instituições e as suas “grades de proteção” são arruinadas.

É assim que os autocratas eleitos subvertem a democracia — aparelhando tribunais e outras agências neutras e usando-os como armas, comprando a mídia e o setor privado (ou intimidando-os para que se calem) e reescrevendo as regras da política para mudar o mando de campo e virar o jogo contra os oponentes. O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia — gradual, sutil e mesmo legalmente — para matá-la. (Levitsky; Ziblatt, 2018, p. 20).

Vale ressaltar que a Suprema Corte é a suprema guardiã da Constituição e do esteio normativo que ampara o Estado de direito (Rawls, 2004). Destarte, é legítima a interferência do STF a fim de garantir a fruição normativa da liberdade de expressão. Como bem destaca Kant em sua Doutrina do Direito, a coerção jurídica é necessária para garantir a livre e salutar fruição da liberdade, de modo que liberdade e direito não estão numa relação de oposição, mas de complementaridade, no sentido que sem o limite da lei o uso errôneo e desrespeitoso da liberdade pode resultar em expressões de extrema violência, e sem liberdade o direito pode perder o seu fundamento normativo e se transformar em despotismo. Conforme frisa Honneth em O direito da liberdade, a liberdade é a pedra normativa da modernidade, resultado de conquistas e lutas históricas. A meu ver, isso implica resguardá-la mediante o império da lei.

Responsabilização de empresas

Diante desse quadro, é preciso defender que o ônus da vigilância de fake news e de discursos de ódio em espaços digitais não recaia apenas aos usuários que por falta de conhecimento ou livre arbítrio podem transgredir as regras de uso, mas em primeira mão deve ser incumbido às empresas que armazenam e veiculam esses dados. Em tempos de inteligência artificial ultra potente, deve ser responsabilidade de cada empresa a criação de travas à luz de legislações (Lei Geral de Proteção de Dados, no caso do Brasil) e do direito à privacidade tendo em vista o uso salutar e normativo de todas as mídias.

Coibir e punir o discurso de ódio significa salvaguardar aquilo que Kant em Über den Gemeinspruch chamou de um paládio (garantia) dos direitos dos povos: a liberdade de expressão. Discurso de ódio e liberdade de expressão são coisas totalmente distintas: onde há discurso de ódio não há liberdade de expressão, e onde há liberdade de expressão não pode existir discurso de ódio. Liberdade de expressão não é um vale-tudo, mas a manifestação da maturidade institucional, ética, cultural e política de um povo.

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Referências

APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Norberto Smilg. Introducción de Adela Cortina. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998.

CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Contracorrente, 2020.

FORST, Rainer. Justificação e crítica: perspectivas de uma teoria crítica da política. Trad. Denilson Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

HABERMAS, Jürgen. Teoria da ação comunicativa. Trad. Paulo A. Luiz Repa. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

HEGEL, G.W.F. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses [et al.]. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010. HOBBES, Thomas. “Leviathan”. New York: Oxford University Press, 1998.

KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

KANT, Immanuel. Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (TP). In: Gesammelte Schriften, Vol. VIII. Königlich preussischen Akademie der Wissenschaft. Berlin: De Gruyter, 1980.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RAWLS, John. O Direito dos Povos; seguida de “Ideia de razão pública revista”. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: princípios do direito político. Tradução de Antônio P. Danesi. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Site consultado

Supremo Tribunal Federal. STF determina suspensão da plataforma Rumble em todo o país. Acesso em 01 de março de 2025. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-determina-suspensao-da-plataforma-rumble-em-todo-o-pais/

PETIÇÃO 9.935 DISTRITO FEDERAL https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/02/21194805/PET9935.pdf

Congresso mantém veto a dispositivo que criminalizava a disseminação de fake news em eleições Fonte: Agência Câmara de Notícias. Acesso em 09 de março de 2025. https://www.camara.leg.br/noticias/1067068-congresso-mantem-veto-a-dispositivo-que-criminalizava-a-disseminacao-de-fake-news-em-eleicoes/

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