Opinião

Tactus Holdings v Philip Mark e a cessão do 'mero direito de litigar'

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12 de março de 2025, 18h28

Em um país com ao menos 84 milhões de processos em tramitação e cujo índice de judicialização não para de crescer [1], quem busca celeridade na resolução de disputas judiciais acaba por vislumbrar soluções alternativas àquela que seria a natural em países não tão habituados com a cultura do litígio, qual seja a obtenção do ressarcimento por meio da efetiva conclusão da lide. No Direito brasileiro, o instituto da cessão de crédito, previsto nos artigos 286 a 298 do Código Civil, é quiçá a modalidade mais utilizada por quem possui um crédito, ou mesmo uma expectativa de crédito, para antecipar o recebimento de recursos que se tenha uma expectativa de recebimento, mas que por alguma razão não tenha ainda consumado tal recebimento.

A cessão de crédito é, portanto, plenamente aceita no ordenamento jurídico brasileiro, sendo sedimentado na doutrina que “assim como os bens são em regra alienáveis, o crédito (que é um bem imaterial) pode ser cedido, salvo se a isso se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a vontade das partes (credor e devedor avençam a inacessibilidade do crédito)” [2].

Ocorre que a cessão de um determinado direito creditório, por vezes, ainda não se tornou um crédito e, portanto, não se sujeitaria, ao menos até o momento, ao regramento dos artigos atinentes à cessão de crédito do Código Civil. É o caso do que o Código de Processo Civil brasileiro denominou, no artigo 109, de “direito litigioso”.

O artigo 109 do Código de Processo Civil aduz que “A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes”. É dizer: há no ordenamento jurídico pátrio previsão expressa acerca da possibilidade de se alienar um “direito litigioso”, que se tenha expectativa de se ver tornar-se um “crédito”, quando tal “direito” ainda remanesce mera expectativa creditícia.

No que diz respeito a tal artigo (e à possibilidade de cessão de um “direito litigioso”), José Rogério Tucci é taxativo: “Infere-se que a pendência do processo não é óbice – e nem poderia ser – à fluência normal do comércio jurídico, inclusive no que concerne ao bem ou ao direito litigioso” [3].

Ainda sobre referido dispositivo da lei processual, Tucci aduz que “pela ampla possibilidade de o adquirente intervir no processo e assumir, a partir do negócio celebrado com o transmitente, a posição de parte, não é ele, pois, considerado terceiro. Daí, porque o adquirente passa a ser titular da posição jurídica, uma vez que a transferência do direito no curso do processo desponta válida, existente e eficaz, e, por essa razão, não pode ser ele considerado terceiro, tanto que intervém no processo na qualidade de parte”. E conclui: “Decorre dessa conclusão que o adquirente do direito litigioso é considerado parte no sentido do artigo 506 do Código de Processo Civil, sujeito, portanto, a todas as consequências daí decorrentes”.

A partir de tal entendimento, chega-se à conclusão de que a consequência prática da cessão de crédito, à luz do artigo 286 e seguintes do Código Civil, é a mesma da alienação do direito litigioso do artigo 109 do Código de Processo Civil, qual seja: os cessionários em ambos os casos assumem todos os direitos e obrigações daquele que os cedeu.

Efeitos e riscos do negócio

E foi justamente nesse sentido que decidiu o STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.837.413-PR, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze [4], confirmando o entendimento no sentido de que aquele que sucede a parte originária no litígio está sujeito a todos os efeitos e riscos do negócio, ainda que se venha a descobrir ao longo da lide que o suposto “direito” litigioso é, na realidade, uma dívida.

Sendo assim, nos parece que o STJ pacificou o entendimento de que a possibilidade de cessão de direito litigioso do artigo 109 do Código de Processo Civil está em consonância com a necessidade de se possuir interesse e legitimidade do artigo 17 do mesmo dispositivo legal, bem como representa a autorização querida pelo artigo 18, também do CPC.

A relevância do tema se dá não apenas pelo sobrecarregamento do Judiciário, mas também pelo cenário macroeconômico do país, que vê a taxa básica de juros subir a patamares superiores a 13% ao ano, fazendo com que aqueles que contrataram dívidas passem a buscar soluções de liquidez mais criativas para honrá-las.

E nesse contexto de alto endividamento e busca por liquidez é que surgem (e crescem exponencialmente) os chamados fundos de investimento em direitos creditórios, comumente conhecidos como FIDCs [5]. Os FIDCs, como o próprio nome diz, adquirem os créditos e direitos litigiosos daqueles que possuem potenciais valores a receber, provendo liquidez que aqueles que lhes cedem necessitam.

Os FIDCs, por sua vez, não se limitam à aquisição de créditos já consumados do artigo 286 do CC. Tais veículos, na busca por retornos mais expressivos e descorrelacionados com o ambiente desafiador de economia real, adquirem, também, os “direitos litigiosos” do artigo 109 do CPC.

A questão que merece reflexão é se haveria algum impedimento à cessão de “direitos litigiosos” nos casos em que o cessionário, que não tem outro interesse na disputa que não o financeiro, busca receber parcela dos potenciais recursos oriundos do litígio.

Tactus Holdings v Philip Mark & Ors

Em relevante precedente das cortes inglesas, a High Court of Justice da Inglaterra e País de Gales se debruçou sobre disputa em que se discutiu, dentre outros pontos, se uma parte poderia ceder à outra os eventuais proveitos que receberia no âmbito do processo judicial, sem que detivesse um suposto “interesse legítimo” no caso.

Em Tactus Holdings v Philip Mark & Ors [6], a Tactus adquiriu ações de operadora de negócio de tecnologia, denominada Box Holdings (BHAM) Limited, por meio da celebração de um contrato de compra e venda de ações (SPA) com Philip Mark Jordan e outros. Após a aquisição, a Tactus passou a alegar que o valor do negócio adquirido, especificamente a métrica de EBITDA, estaria superestimado, o que ensejaria uma ação por violação da cláusula de declarações e garantias do SPA.

Paralelamente ao ajuizamento da ação, a Tactus celebrou com o Banco Santander e com companhia denominada Chillblast Ltd., instrumento intitulado “Deed of Assignment of Facility Agreement”, que, para efeito do presente artigo, denominar-se-á “Cessão Santander”. Por meio da Cessão Santander, o Banco Santander cedeu à Chillblast todos os direitos que o banco detinha face à Tactus pelo preço de £ 750 mil e um percentual do que as companhias do grupo Tactus viessem a receber na disputa referente às violações do SPA.

Dois meses depois, Tactus e Chillblast celebraram outra “Deed of Assignment”, a “Cessão Chillblast”, por meio da qual Tactus cedeu à Chillblast seus direitos oriundos do SPA pelo preço de £1 libra esterlina, bem como em troca de uma redução de endividamento, um earn-out em caso de manutenção da validade da cessão face a eventuais questionamentos, e um percentual dos recebíveis da disputa referente às violações do SPA.

Dez dias após a celebração da Cessão Chillblast, a Tactus entrou em chamado procedimento de administration, modalidade prevista no direito da insolvência inglês para companhias que não possuem liquidez para quitar suas obrigações financeiras.

Em virtude da cessão dos direitos no SPA, instrumentalizados por meio da Cessão Chillblast mencionada acima, Chillbast requereu a substituição do polo ativo da disputa, para que pudesse passar a figurar, no lugar de Tactus, como autora.

Spacca

O pleito de substituição do polo ativo foi lastreado no Civil Procedure Rules (código de processo civil inglês), especificamente no artigo 19.2(4), que dispõe que a corte pode determinar a substituição de uma parte na disputa, se o direito que deu azo à disputa foi transmitido pela parte que originalmente o detinha acabou por ser transferido a uma nova parte [7].

Como se pode depreender, o artigo 19.2(4) do Civil Procedure Rules inglês possui previsão similar ao artigo 109 do Código de Processo Civil brasileiro, que permite o ingresso de um terceiro originalmente estranho à lide no processo, caso haja cessão de direito litigioso a uma nova entidade.

Sendo assim, e considerando a similitude dos dispositivos legais e a tendência menos intervencionista do judiciário de países regidos pela common law, seria natural se esperar decisão na linha do que decidiu o STJ no Recurso Especial nº 1.837.413-PR, permitindo a validade da cessão, ainda que o terceiro adquirente não tivesse uma relação direta com o contexto fático da demanda originária.

O instituto do champerty

Todavia, não foi essa a decisão das cortes inglesas. Não obstante parte da fundamentação para negar a substituição do polo ativo tenha se lastreado na natureza da posição de cessionária de Chillblast, pelo fato de o SPA permitir cessões para credores e por Chillblast não ter sido considerada credora, o trecho de maior interesse para análise do caso sob uma perspectiva comparada fica por conta da suposta ausência de “interesse legítimo” do terceiro para se sub-rogar na posição do autor originário da causa.

A discussão diz respeito a conceito amplamente debatido na Inglaterra, qual seja o conceito de champerty [8], que significa a promoção ou suporte de determinado litígio, em troca e uma parcela dos recursos que dele podem se originar.

Apesar de a decisão reconhecer a abolição dos outrora crimes e violações cíveis de champerty e maintenance pelo Criminal Law Act de 1967, a High Court foi expressa no sentido de que aludida legislação não afeta a regra de que de que a lei não reconhecerá a cessão de um “mero direito de ação [9].

E como forma de sustentar a impossibilidade de cessão de um “mero direito de litigar”, a corte destaca a necessidade de o terceiro cessionário deter um “interesse legítimo” na causa, requisito esse que, s.m.j., também consta do artigo 17 do Código de Processo Civil brasileiro.

Em Tactus, a decisão destacou que, de maneira geral, um interesse “comercial” pode ser interpretado como “interesse legítimo”, especialmente se o direito de ação derivar de transação de cunho comercial. Todavia, expressou o decisum, no caso concreto a questão estava justamente na existência, per se, do interesse legítimo[10].

E por não ter Chillblast adquirido um chamado “direito de propriedade” relativo à Tactus, não ter de nenhuma forma se envolvido no SPA e ainda ter adquirido os direitos oriundos da ação tão somente após a violação da cláusula de declarações e garantias já haver se consumado, entendeu a corte inglesa pela impossibilidade da Cessão Tactus.

O entendimento, que se deu por suposta violação da ordem pública inglesa, derivou de análise do conceito de “interesse legítimo”.

Na fundamentação, considerou-se uma série de fatores, tais como a relação e interesse da cessionária com o objeto que deu causa ao litígio, o suposto interesse da cessionária de querer “inflar” os danos pleiteados, subornar testemunhas ou se valer de outras de minar os objetivos da ação para seu ganho pessoal, e ainda o fato de que a cessionária poderia fazer jus a lucros excessivos com a transação de aquisição do direito litigioso, excedendo os interesses genuínos de uma relação comercial.

Outro ponto interessante da decisão foi a diferenciação feita entre a cessão de um “crédito” e a cessão de um “direito de ação”, tratadas no início do artigo. A High Court foi clara no sentido de que a cessão de um “crédito” não seria normalmente tratada como champertous, ao passo que a cessão de um “direito de ação”, essa sim, violaria a ordem pública inglesa.

Ainda em relação a tal ponto, a diferenciação entre “crédito” e “direito de ação” apontada pela decisão baseou-se na liquidez e certeza do título. Enquanto no primeiro haveria uma dívida líquida e certa, podendo ser tratada como direito de propriedade capaz de ser negociado, no segundo estar-se-ia a tratar de objeto ainda a ser litigado, que como constou de Farrar v Miller [11] e Massai Aviation v The Attorney General [12], poderia ser visto como trafficking in litigation.

A decisão é de extrema relevância, não apenas por condicionar a legitimidade da transação à existência de um “interesse legítimo” da parte adquirente, em uma prova de que a liberdade transacional dos países de common law pode por vezes ser relativizada à luz de questões vistas como de ordem pública, mas também por ter sido proferida em jurisdição em que o litigation funding (financiamento de litígios) ganhou enorme robustez com a flexibilização do instituto de champerty.

Questionamentos

Se interpretado à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o julgado parece levantar dúvidas de grande relevância que merecem uma reflexão por parte da doutrina brasileira.

A primeira delas seria a já mencionada necessidade (ou não) de existência de “interesse” e “legitimidade”, como previsto no artigo 17 do CPC, para que um cessionário adquira “direito litigioso” ainda não consumado em “crédito”, como entendeu a corte inglesa em Tactus.

Outro ponto interessante a se debater é se a cessão de “direito litigioso” depender de fato de “interesse legítimo” para a sua consumação, em que momento tal “direito litigioso” passa a poder ser interpretado como um “crédito”, à luz do artigo 286 do CC, e, portanto, não mais necessitaria do requisito do “interesse legítimo”?

Ainda, o que seria “interesse legítimo” para os tribunais brasileiros, se entendimento similar viesse a ser aplicado no Brasil? Poderia o detentor de direito “ainda não litigioso”, mas que detivesse “interesse legítimo” na causa, ceder tal direito a terceiro para que esse terceiro iniciasse a disputa e litigasse em seu lugar?

Não são poucos os questionamentos que o precedente provoca, em especial em jurisdição em que a prática de formas alternativas de investimentos em litígios, tais como o litigation funding, é extremamente sedimentada e difundida.

O Brasil, inobstante nunca tenha tido vedação expressa a doutrinas como champerty e maintenance, possui em sua legislação processual disposições quanto a requisitos postulatórios. Por outro lado, ao interpretar a legislação atinente ao tema, o STJ entendeu pela possibilidade de cessão do “direito litigioso”, destacando que a parte que o faz deve assumir também os riscos inerentes à tal transação.

Como defendido, é imperativo que se debata o tema de forma aprofundada. A combinação de um mercado constantemente mais sofisticado, criativo e exponencialmente crescente como o dos FIDCs, aliado a um país com a terceira maior taxa de juro real do mundo [13] e números avassaladores de demandas judiciais, demanda um maior entendimento e segurança jurídica sobre o que se pode ou não fazer no mercado de transação de ativos judiciais.

 


[1] Justiça em Números 2024 – [https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2024-barroso-destaca-aumento-de-95-em-novos-processos/] (acesso em 4.3.2025)

[2] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência / Anderson Schreiber, Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marco Aurélio Bezerra de Melo e Mário Luiz Delgado. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.

[3] Alienação do direito litigioso num recente precedente do STJ – [https://www.conjur.com.br/2020-mai-26/paradoxo-corte-alienacao-direito-litigioso-num-recente-precedente-stj/] (acesso em 4.3.2025)

[4] STJ – REsp: 1837413 PR 2018/0046908-1, Relator.: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 10/03/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/03/2020

[5] A explosão dos FIDCs: Mercado cresce R$ 128 bi com busca por mais retorno no crédito – link – [https://exame.com/invest/mercados/a-explosao-dos-fidcs-mercado-cresce-r-128-bi-com-busca-por-mais-retorno-no-credito/?utm_source=copiaecola&utm_medium=compartilhamento] (acesso em 4.3.2025)

[6] Tactus Holdings Limited (in admin) v Philip Mark Jordan & Ors [2025] EWHC 133 (Comm) – link – [https://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Comm/2025/133.html] (acesso em 5.3.2025)

[7] 19.2 – (4) The court may order a new party to be substituted for an existing one if – (a) the existing party’s interest or liability has passed to the new party;

[8] The promotion or support of litigation by a third party who has no legitimate interest in the proceedings (maintenance) and the support of litigation by a third party in return for a share of the proceeds (champerty, an aggravated form of maintenance). – link – [https://www.oxfordreference.com/display/10.1093/oi/authority.20110803100127336] (acesso em 5.3.2025)

[9] § 67 Tactus Holdings Limited (in admin) v Philip Mark Jordan & Ors [2025] EWHC 133 (Comm)

[10] § 69 Tactus Holdings Limited (in admin) v Philip Mark Jordan & Ors [2025] EWHC 133 (Comm)

[11] Farrar v Miller [2022] EWCA Civ 295, at para. 22

[12] Massai Aviation Services v The Attorney General [2007] UKPC 12, at para. 18

[13] The World Bank Group – link – [https://data.worldbank.org/indicator/FR.INR.RINR?locations=K&most_recent_value_desc=true]

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