Garantias do Consumo

Os limões sicilianos de Minas: a polêmica do caso Tânia Bulhões sob a ótica do Direito do Consumidor

Autores

  • é advogado sócio do escritório de advocacia Malatesta & Sales Sociedade de Advogados membro diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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  • é professora adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF - Campus de Macaé) doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université de Savoie-Mont Blanc/UFRGS líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Vulnerabilidades no Novo Direito Privado” e diretora do Instituto de Direitos Humanos ‘José do Nascimento’.

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12 de março de 2025, 15h23

“Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto se todos andassem de carruagem.” [*]

Uma polêmica envolvendo a empresária Tânia Bulhões e sua marca de produtos de luxo chamou a atenção de parte do noticiário. Isso porque uma influenciadora, em viagem à Tailândia, foi a um restaurante, onde foi servido café em uma xícara idêntica a um item vendido no site da empresária brasileira.

Entretanto, o restaurante não pareceu um local que compraria xícaras que custassem os mais de R$ 200 cobrados no Brasil. Essa situação gerou polêmica, discussões, pronunciamento da marca, medidas de reparação de consumidores e uma crise de imagem.

Os produtos da marca Tânia Bulhões são vendidos a preços que não são acessíveis a toda a população: as xícaras custam a partir de R$ 200, um sabonete líquido pode custar R$ 120, guardanapos que podem custar R$ 480, aromatizadores de ambiente por R$ 300 e uma bandeja que chega a custar mais de R$ 15 mil. [1]

Seus produtos são anunciados como exclusivos, brasileiros e sofisticados, inspirados “nas memórias afetivas de sua infância [da proprietária da marca] em Minas Gerais, onde cresceu entre a cidade e o campo”, com estampas criadas à mão e criações autorais. [2]

A partir da experiência da influenciadora, surgiram teorias a respeito do ocorrido. Algumas pessoas suscitam a possibilidade de que tenha havido cópia das produções brasileiras, enquanto outras creem se tratar de publicidade enganosa, que vende produtos fabricados no exterior como brasileiros, especialmente porque existem produtos similares vendidos em outras plataformas, como a AliExpress. [3]

Outra consumidora, após ter um de seus itens acidentalmente quebrados, raspou o local onde se encontra a marca brasileira e encontrou os escritos “Made in Turkey”, o que reforça a segunda hipótese [4]. Outro argumento que reforça a teoria e levanta dúvidas a respeito das práticas da marca é o fato de que o site da fabricante informa que suas produções são inspiradas em suas vivências no estado de Minas Gerais, mas a coleção alvo da polêmica, por exemplo, apresenta limões sicilianos na estampa, e essa variedade é pouco comum no Brasil, tendo sua origem na Ásia. [5]

Direito do Consumidor

Sob a perspectiva do Direito do Consumidor, a prática (se for tomada como verdadeira a hipótese de fabricação fora do país e importação pela empresária) pode se enquadrar no conceito de white label (ou white labelling), em que um produto é desenvolvido e produzido por uma empresa, mas é comercializado por outra. Nesse caso, surge a dúvida a respeito de sua conformidade com o Direito do Consumidor brasileiro.

Isso porque a justificativa para os preços pouco populares dos produtos comercializados pela marca situa-se em sua exclusividade, produção autoral e design próprios. Entretanto, se os mesmos produtos são fabricados fora do país e vendidos por preços muito mais baixos, ou se são distribuídos livremente em outros países, essa justificativa não se sustenta. Além disso, quem paga um preço altíssimo esperando que poucas pessoas possuam o mesmo produto certamente ficará decepcionado ao saber que na Tailândia ou no AliExpress é possível encontrar esses itens a um preço muito menor e vendidos no varejo.

Sobre esta problemática, a empresa Tânia Bulhões, no último dia 7 de fevereiro, apresentou o que chamou de “Decisão sobre as coleções Marquesa, Mediterrâneo, Entre Rios e Lírio” [6], ocasião em que, em suma, após acusar um cenário em que “não há mais segurança para prosseguir executando a produção” [7], decidiu por: (i) descontinuar as coleções Marquesa, Mediterrâneo, Entre Rios e Lírio, “até que nossa própria fábrica de porcelana, atualmente em construção em Uberaba, MG, esteja apta a produzi-las” [8]; (ii) pedir desculpas por toda a insegurança gerada.

E quanto a consumidores que se sentiram lesados ao saber da notícia da não exclusividade? Registrou a empresa, na referida decisão, que “para quem preferir, será possível trocar ou devolver os produtos das coleções afetadas. As solicitações e esclarecimentos devem ser encaminhados para nosso time de Experiência do Cliente, no e-mail (…)” [9].

Pois bem.

Começando-se pelo final: embora a fornecedora tenha anotado que o consumidor lesado pode exercer troca ou devolução de produtos das mencionadas coleções, fato é que o caminho pelo Time Experiência ao Cliente não pode ser o único para acesso do consumidor a seus direitos, e uma rápida olhada, por exemplo, no portal Reclame Aqui, demonstra que há consumidores que: pretendem devolver produtos (Louça Marquesa [10]); questionam sobre a exclusividade e a qualidade de outras coleções (Dúvida sobre fabricação de produto que adquiri [11] e Xícaras Colmeia Tânia Bulhões [12]); e igualmente alegam terem sido bloqueados de perfil da marca Tânia Bulhões no Instagram após tecerem comentários críticos sobre a produção das ditas coleções (Block no Instagram [13]). Até a data de finalização deste artigo (17.02.2025) nenhum consumidor teve sequer resposta quanto aos seus pleitos.

No mérito propriamente, não é demais lembrar que o Código de Defesa do Consumidor é explícito ao classificar como enganosa toda publicidade “inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.” [14] Como consequência dessa enganosidade, o mesmo Código impõe a proibição da prática, considerada abusiva, eis que extrapola os limites da boa-fé e pune a confiança do consumidor com descrédito e decepção.

A proteção contra a publicidade enganosa é inclusive um direito básico do consumidor, previsto no artigo 6º, IV do CDC, o que demonstra a essencialidade de garantir que o consumidor, parte vulnerável das relações de consumo, possa estar seguro dentro do mercado, sabendo que as alegações feitas por seus fornecedores são condizentes com a sua prática.

Já acerca do trecho do comunicado da empresa que afirma existir exclusividade em seus produtos, mas que estes frequentemente são copiados de modo que sua identidade visual é reproduzida sem autorização, aqui, afora a questão da propriedade intelectual (que não é objeto deste estudo), relativamente aos direitos dos consumidores que acreditaram na publicidade de exclusividade, é preciso registrar que empresas possuem dever de diligência quanto à marca e igualmente sobre produtos colocados no mercado.

Assim é que, mutatis mutandis, a quebra do dever de diligência quanto ao cuidado com sua marca, permitindo reproduções e mesmo fraude a consumidores têm causado condenações diversas em desfavor de empresas que, por exemplo, permitem que seus canais de comunicação ou seus sites sejam “clonados” para fins de ludibriar o consumidor. De mais a mais: o Código de Defesa do Consumidor impõe não só a existência, senão a convivência — em harmonia — dos princípios da confiança e da veracidade da oferta em relações jurídicas de consumo.

Imperioso relembrar que a confiança do consumidor — e mesmo seu encantamento[15] —, nomeadamente no mercado do luxo, da exclusividade, do detalhe, não se conquista ou não se mantém por meio de desrespeito a direitos básicos dos consumidores.

Aqui vale para Tânia Bulhões a assertiva (alerta!) de Karl Larenz: “confiança significa que cada um deve guardar fidelidade com a palavra dada e não frustrar a confiança ou abusar dela, já que esta forma a base indispensável de todas as relações humanas.” [16]

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[1] Preços de acordo com os valores apresentados no site da loja, disponível em https://www.taniabulhoes.com.br/ e consultado em 16 de fevereiro de 2025.

[2] Informações do site da loja, disponível em https://www.taniabulhoes.com.br/lp/historia-da-marca e consultado em 16 de fevereiro de 2025.

[3] QUEM é Tania Bulhões, dona de império de luxo alvo de polêmica nas redes. Uol, 13 fev. 2025. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/02/13/tania-bulhoes-quem-e-a-milionaria-por-tras-do-polemico-jogo-de-xicaras.htm. Acesso em: 16 fev. 2025.

[4] LEÃO, Luan. Tânia Bulhões: cliente encontra “Made in Turkey” em peça da marca. CNN Brasil, 14 fev. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/tania-bulhoes-cliente-encontra-made-in-turkey-em-peca-da-marca/. Acesso em: 16 fev. 2025.

[5] QUEM é Tania Bulhões, dona de império de luxo alvo de polêmica nas redes. Uol, 13 fev. 2025. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/02/13/tania-bulhoes-quem-e-a-milionaria-por-tras-do-polemico-jogo-de-xicaras.htm. Acesso em: 16 fev. 2025.

[6] Decisão sobre as coleções Marquesa, Mediterrâneo, Entre Rios e Lírio. Disponível em: https://www.instagram.com/p/DFyEtmqy3U9/?img_index=1. Acesso em: 16 fev. 2025.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Louça Marquesa. Disponível em: https://www.reclameaqui.com.br/tania-bulhoes/louca-marquesa_vH-VS55gfjzloQFz/. Acesso: 16 fev. 2025.

[11] Dúvida sobre produtos que adquiri. Disponível em: https://www.reclameaqui.com.br/tania-bulhoes/duvida-sobre-fabricacao-de-produto-que-adquiri_1EKt_jhInwsQl2hW/. Acesso: 16 fev. 2025.

[12] Xícaras Colmeia Tânia Bulhões. Disponível em: https://www.reclameaqui.com.br/tania-bulhoes/xicaras-colmeia-tania-bulhoes_eCDfWh4G8Q7w124h/. Acesso: 16 fev. 2025.

[13] Block no Instagram. Disponível em: https://www.reclameaqui.com.br/tania-bulhoes/block-no-instagram_k6f0cuPhCSDFDM4v/. Acesso: 16 fev. 2025.

[14] BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/02/13/tania-bulhoes-quem-e-a-milionaria-por-tras-do-polemico-jogo-de-xicaras.htm. Acesso em: 16 fev. 2025.

[15] SALES, Jonas. Filosofia do encantamento não se sustenta em cenário de desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor. Migalhas, 22 nov. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/377381/cenario-de-desrespeito-ao-codigo-de-defesa-do-consumidor. Acesso em: 16 fev. 2025.

[16] LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958. p. 142.

[*] ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Lafonte, 2019. p. 155.

Autores

  • é professora adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF - Campus de Macaé), doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université de Savoie-Mont Blanc/UFRGS, líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Vulnerabilidades no Novo Direito Privado” e diretora do Instituto de Direitos Humanos ‘José do Nascimento’.

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