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CVM emite stop order sobre oferta irregular de tokens de renda fixa

12 de março de 2025, 13h17

Por Isac Costa

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Em 11 de março, a CVM publicou a Deliberação nº 896/2025, indicando que o Mercado Bitcoin [1] não possui autorização para atuar como intermediário do sistema de distribuição de valores mobiliários, e a CVM pode determinar a suspensão do exercício dessa atividade sem prévia autorização.

Neste texto, procuro explicar o que é uma stop order e seus desdobramentos, qual foi o contexto da emissão da referida deliberação e quais são as consequências para a criptoeconomia no Brasil.

O que é uma stop order

A CVM pode comunicar ao mercado e aos investidores a ocorrência de indícios de infração à regulação vigente, por meio de alertas de suspensão (as chamadas stop orders). Esses alertas são emitidos por deliberações do Colegiado da CVM ou por atos declaratórios das áreas técnicas e podem determinar que certo participante do mercado interrompa a atividade tida como irregular, seja a oferta ou a intermediação de valores mobiliários, sob pena de multa cominatória.

O fundamento legal destes alertas encontra-se no artigo 9º, § 1º, III e IV, da Lei nº 6.385/1976:

“Com o fim de prevenir ou corrigir situações anormais do mercado, a Comissão poderá (…) divulgar informações ou recomendações com o fim de esclarecer ou orientar os participantes do mercado” e “proibir aos participantes do mercado, sob cominação de multa, a prática de atos que especificar, prejudiciais ao seu funcionamento regular.”

A competência para a edição desses atos é do Colegiado da CVM, que, após reunião, elabora e publica uma deliberação contendo o alerta de suspensão, como esses já emitidos. Em certas hipóteses, a competência é delegada à área técnica, como a Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI), que edita um ato declaratório como esses já emitidos.

Conforme explicado no próprio site da CVM (destaquei):

“Os Atos Declaratórios têm o objetivo de declarar a existência de um direito, face ao poder da CVM de credenciar ou autorizar o exercício de atividades. Uma das modalidades de Atos Declaratórios é a dos que tem por objetivo alertar os participantes do Mercado de Valores Mobiliários e o público em geral acerca da inexistência de autorização para que determinada pessoa exerça a atividade de intermediação de valores mobiliários.”

Além de estipular uma obrigação de fazer e/ou de não fazer, esses atos administrativos têm a essência de uma admoestação pública, com repercussões reputacionais, mas não se confundem com a penalidade de advertência, prevista no artigo 11 da Lei 6.385/1976 como uma das penalidades aplicáveis após a instrução e julgamento de processo administrativo sancionador, com respeito à ampla defesa e contraditório.

Assim, a natureza dos alertas de suspensão é declaratória e cautelar. Por isso, um participante do mercado pode ser mencionado em uma stop order mesmo sem ter nunca recebido um Ofício da CVM solicitando esclarecimentos sobre certa atividade que exerça.

Contudo, não raro, a autarquia procura entender melhor o contexto da oferta ou intermediação de certos produtos antes de decidir sobre o tema, entrando em contato com as pessoas e empresas em questão. É o que ocorre em situações mais complexas, quando estamos diante de uma inovação como a oferta de tokens de recebíveis na forma de “renda fixa digital”.

Desdobramentos

Os alertas de suspensão também não se confundem com os chamados ofícios de alerta, considerados uma medida de supervisão alternativa às sanções previstas no artigo 11 da Lei 6.385/1976. Os ofícios de alerta são disciplinados pela Lei nº 13.506/2017, que reformulou a atuação sancionadora do Banco Central e da CVM. A disciplina infralegal do processo sancionador no mercado de valores mobiliários encontra-se na Resolução CVM nº 45/2021.

Spacca

Suponha que a CVM receba uma denúncia sobre a divulgação de um investimento (mercado primário, oferta) ou, então, a existência de um ambiente de negociação (mercado secundário, atividade de intermediação) e que o produto ofertado seja um valor mobiliário, conforme a definição do artigo 2º da Lei 6.385/1976.

Se a área técnica entender que há urgência na comunicação ao mercado sobre a potencial infração, pode emitir um ato declaratório (como faz a SMI) ou propor a edição de uma deliberação ao colegiado da CVM, que irá discutir o tema. Assim, o resultado pode ser a emissão de alerta de suspensão (a stop order), que informa ao público em geral sobre a inexistência de autorização para a atividade em questão ou registro da oferta e determina a cessação da conduta, sob pena de multa cominatória.

O alerta de suspensão tem natureza de ato administrativo e pode ser impugnado por pedido de reconsideração (ao superintendente ou ao colegiado da CVM) ou recurso ao colegiado da CVM (se expedido por área técnica).

Independente da edição de uma stop order, a área técnica pode aprofundar a investigação no bojo de um processo administrativo (não sancionador), solicitando esclarecimentos e, então, decidir pela instauração ou não de um processo administrativo sancionador (PAS). De acordo com o artigo 9º, § 4º da Lei 6.385/1976:

Na apuração de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, a Comissão priorizará as infrações de natureza grave, cuja apenação proporcione maior efeito educativo e preventivo para os participantes do mercado, e poderá deixar de instaurar o processo administrativo sancionador, consideradas a pouca relevância da conduta, a baixa expressividade da lesão ao bem jurídico tutelado e a utilização de outros instrumentos e medidas de supervisão que julgar mais efetivos.

Então, com ou sem stop order, após a sequência das investigações, a CVM pode arquivar o processo, usar uma medida de supervisão alternativa ou instaurar um PAS. Essa possibilidade foi introduzida pela Lei nº 13.506/2017 como forma de garantir economia processual e eficiência da atuação sancionadora do Banco Central (artigo 19, § 1º da referida lei) e da CVM (artigo 35 da referida lei).

O ofício de alerta é, assim, uma destas medidas de supervisão, devendo “deve indicar claramente o desvio de conduta verificado e assinalar prazo razoável para a devida correção, se aplicável” (artigo 4º, § 3º da RCVM 45/2021)

A impugnação desta decisão se dá por recurso ao Colegiado previsto nos §§ 3º e seguintes do artigo 4º da RCVM 45/2021, com requisitos de admissibilidade bastante restritos.

Se o PAS for instaurado, será elaborada uma peça acusatória, que pode ser um termo de acusação ou, para casos mais complexos, um relatório de inquérito administrativo, quando a investigação é conduzida pela Superintendência de Processos Sancionadores (SPS). Após o curso do rito previsto na RCVM 45/2021, apresentada a defesa, o processo é julgado pelo Colegiado da CVM. Então, o acusado pode ser absolvido ou sofrer uma das penalidades previstas no artigo 11 da Lei nº 6.385/1976, dentre as quais a mais branda é a advertência.

Eventual recurso contra decisão em sede de PAS é direcionado ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), segundo o rito do artigo 70 e seguintes da RCVM 45/2021.

Desse modo, a depender do momento processual, temos consequências jurídicas e meios de impugnação distintos para os alertas de suspensão (stop order, ato administrativo declaratório e cautelar), ofício de alerta (medida de supervisão alternativa se não for instaurado PAS) e advertência (penalidade no julgamento de PAS).

Você pode ver informações sobre diversas stop orders emitidas para pessoas e empresas envolvendo criptoativos, assim como julgamentos de processos sancionadores correlatos neste artigo de minha autoria. O caso mais recente de processo sancionador envolveu o token DYN da Dynasty.

Tokens de renda fixa

A Deliberação nº 896/2025 informou que o Mercado Bitcoin “ofertou e vem intermediando (…) oportunidades de investimentos em ativos digitais (tokens) lastreados em fluxos financeiros, oriundos de direitos creditórios, cedidos por Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não Padronizados (FIDC NP), utilizando-se de apelo ao público para celebração de contratos que se enquadram no conceito legal de valor mobiliário”.

O MB Tokens tem sido um dos principais estruturadores de operações de tokenização de ativos diversos, tais como direitos do mecanismo de solidariedade da Fifa, cotas de consórcios, precatórios e outros.

De acordo com o portal CoinTelegraph, R$ 542 milhões em ativos foram tokenizados no Brasil em 2023, pelas empresas MB Tokens (R$228 milhões; 42%), Vórtx QR Tokenizadora (R$ 212 milhões; 39,1%), Liqi (R$ 62 milhões; 11,4%) e AmFi (R$ 40 milhões; 7,5%).

Adicionalmente, segundo levantamento da InfoMoney, entre 2019 e o final de 2023, o volume de tokens ofertados ao público alcançou R$ 1 bilhão, com cerca de 6 mil projetos no período, de diversas naturezas — a PeerBR realizou 5 mil projetos, a Liqi realizou 857 projetos e, em conjunto, MB, Vórtx QR Tokenizadora, Liqi, Bee4 e Estar Finance conduziram 194 projetos.

Dada a dimensão e popularidade desse mercado nascente, a CVM editou os Ofícios Circulares CVM/SSE nº 4 e 6 de 2023, sinalizando que certos tokens de recebíveis podem ser enquadrados como valores mobiliários e, por isso, sua oferta exige registro prévio ou dispensa de registro e sua intermediação só pode ser realizada por integrantes autorizados do sistema de distribuição. A autarquia facultou a utilização do rito flexível das plataformas de crowdfunding, previsto na Resolução CVM nº 88/2021 a fim de acomodar essas ofertas enquanto discute a adaptação do marco regulatório para esse setor.

Especificamente com relação a ofertas de certificados de recebíveis por meio de plataformas de crowdfunding, conforme dados da Uqbar, foram distribuídas 25 ofertas no segundo semestre de 2023, com captação de R$ 71,72 milhões. Em 2024, houve aumento expressivo: R$ 359,90 milhões captados em 148 operações encerradas — com protagonismo do MB com 33% do montante ofertado, 30% para PeerBR/GCB e 25% para a Hurst — e R$ 290,88 milhões de valor-alvo de ofertas em andamento.

Considerando o mercado de crowdfunding como um todo, segundo a Uqbar, foi observado um salto de R$ 0,26 bilhão em 2022 em 134 operações, para R$ 1,6 bilhão em 341 operações em 2024 até outubro.

A deliberação não traz informações específicas sobre quais tokens teriam extrapolado o entendimento dos referidos ofícios circulares, então não há como discutir o tema com maior profundidade diante dos dados disponíveis. Ao que tudo indica, a autarquia pode ter concluído pela existência de não conformidade em ofertas entendidas como privadas pelo MB ou, então, por ofertas anteriores à edição dos Ofícios Circulares ou, ainda, a ofertas posteriores que não foram realizadas por meio de crowdfunding.

Consequências para a criptoeconomia brasileira

A stop order da CVM vem logo após a decisão de não enquadramento do token DYN como valor mobiliário, que sugeria um entendimento mais flexível da autarquia sobre os limites de sua competência, e em um momento no qual a atuação do regulador norte-americano se distancia de um enforcement rigoroso e vários processos são arquivados.

Para além da stop order em si, seria importante que a CVM fornecesse esclarecimentos adicionais sobre a conduta considerada irregular, a fim de evitar que os demais emissores de tokens não sejam alvo de alertas semelhantes, gerando insegurança jurídica em um mercado que começa a convergir de forma cada vez mais assertiva com as finanças tradicionais, aguardando sua regulação pelo Banco Central.

Em paralelo, o mercado aguarda a adaptação da RCVM 88/2021 para permitir maior flexibilidade nas ofertas de tokens e o desenvolvimento de um mercado secundário, hoje inviável diante das restrições existentes. O salto nas captações via crowdfunding em 2024 é um sinal de que esse mercado pode decolar, ainda que com certos limites para proteger investidores e seu regular funcionamento.

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[1] O autor do texto declara que já prestou serviços ao Mercado Bitcoin e ao seu controlador, o Grupo 2TM, e atesta o compromisso da empresa com a conformidade regulatória desde o início de suas atividades, mesmo antes de manifestações ou exigências por parte da CVM ou do Banco Central. O texto procura evitar juízos de valor sobre o caso específico e sobre o teor da Deliberação da CVM, tentando informar os leitores acerca dos debates jurídicos relevantes em torno do ocorrido.