O Decreto estadual de São Paulo nº 68.926, de 26 de setembro de 2024, regulamenta a destinação de bens, direitos e valores cuja perda foi declarada pelo Judiciário estadual em favor do Estado, como efeito da condenação pelos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, conforme o §1º do artigo 7º da Lei Federal nº 9.613, de 3 de março de 1998. Esse decreto estabelece que os recursos provenientes do confisco sejam direcionados ao Fundo de Incentivo à Segurança Pública, visando fortalecer as capacidades operacionais das forças policiais por meio de investimentos em equipamentos, tecnologias e infraestrutura.
A medida busca desburocratizar a obtenção desses bens e valores apreendidos, que anteriormente eram destinados a um fundo nacional, permitindo que os recursos sejam utilizados diretamente no estado de São Paulo para aprimorar a segurança pública. Além disso, o decreto institui o Comitê de Recuperação de Ativos do Estado de São Paulo, no âmbito da Secretaria da Segurança Pública, com a finalidade de coordenar os trabalhos de implementação e acompanhamento da destinação dos bens, valores e direitos oriundos de ilícitos penais.
O confisco de bens relacionados a atividades criminosas tem sido uma estratégia amplamente adotada por diversos países no combate ao crime organizado, e a iniciativa alinha-se a práticas internacionais que buscam desarticular financeiramente organizações criminosas, destinando os recursos confiscados para o fortalecimento das instituições de segurança e para benefícios diretos à sociedade. Contudo, tais medidas merecem ser analisas criticamente, contextualizando-as no cenário internacional e explorando seus potenciais impactos na segurança pública e na sociedade.
Historicamente, o confisco de bens tem sido utilizado como ferramenta para desarticular financeiramente organizações criminosas. Nos Estados Unidos, a prática ganhou destaque com o Comprehensive Crime Control Act, de 1984, que permitiu às agências de aplicação da lei confiscar bens sem a necessidade de uma condenação criminal prévia. Essa abordagem, conhecida como confisco civil, tem sido objeto de críticas devido ao potencial de abusos e à falta de salvaguardas adequadas para proteger os direitos dos cidadãos (Worrall, 2001).
No contexto europeu, a União Europeia adotou a Diretiva 2014/42/EU, que estabelece normas mínimas para o congelamento e confisco de bens relacionados a crimes graves. A diretiva busca equilibrar a eficácia no combate ao crime com a proteção dos direitos fundamentais, exigindo que o confisco seja precedido por uma condenação penal definitiva, salvo em circunstâncias excepcionais. Essa abordagem visa evitar os abusos observados em outras jurisdições e garantir maior transparência no processo (European Union, 2014).
No Reino Unido, o Proceeds of Crime Act, de 2002 introduziu medidas abrangentes para o confisco de bens provenientes de atividades criminosas. O ato permite o confisco tanto em processos criminais quanto civis, com mecanismos de supervisão judicial para garantir a proporcionalidade e a justiça do processo. Estudos indicam que, embora eficaz, a prática enfrenta desafios relacionados à aplicação consistente e à proteção dos direitos dos indivíduos afetados (Sproat, 2007).
Inovação
No Brasil, a Lei de Drogas (11.343/2006) e a Lei de Organizações Criminosas (12.850/2013) já previam mecanismos de confisco de bens relacionados a atividades ilícitas. O decreto dstadual de São Paulo de 2024 inovou ao direcionar os recursos provenientes do confisco diretamente para o Fundo de Incentivo à Segurança Pública, visando fortalecer as capacidades operacionais das forças policiais. No entanto, essa medida suscita preocupações sobre possíveis incentivos perversos e impactos negativos na atuação policial.
Estudos criminológicos apontam que a dependência financeira das agências de aplicação da lei em relação aos recursos provenientes do confisco pode distorcer as prioridades institucionais. Miller e Selva (1994) observaram que, nos Estados Unidos, as agências tendem a focar em crimes que possibilitam maior retorno financeiro, como o tráfico de drogas, em detrimento de crimes violentos ou mais complexos. Essa lógica pode comprometer a eficácia geral das políticas de segurança pública e minar a confiança da sociedade nas instituições.
Além disso, há evidências de que o confisco de bens pode impactar desproporcionalmente comunidades marginalizadas. Nos Estados Unidos, estudos indicam que minorias raciais são mais frequentemente alvo de operações de confisco, exacerbando desigualdades sociais e alimentando desconfiança em relação às forças policiais (Carpenter et al., 2015). No Brasil, é fundamental que medidas sejam implementadas para evitar que práticas semelhantes ocorram, garantindo que o confisco seja aplicado de forma justa e equitativa.
Supervisão e cooperação
A transparência e a supervisão judicial são elementos cruciais para a legitimidade do confisco de bens. No Reino Unido, a supervisão judicial tem sido eficaz na garantia de que os processos de confisco sejam conduzidos de maneira justa e proporcional (Sproat, 2007). No Brasil, é imperativo que o decreto paulista seja acompanhado de mecanismos robustos de fiscalização e prestação de contas, assegurando que os recursos sejam utilizados de forma adequada e que os direitos dos cidadãos sejam respeitados.

A experiência italiana no combate à máfia oferece lições valiosas sobre o uso social dos bens confiscados. Na Itália, propriedades confiscadas são frequentemente convertidas em utilidades públicas, como escolas ou centros comunitários, promovendo benefícios diretos para a sociedade e reforçando a legitimidade das ações de confisco (Riccardi, 2014). O Brasil poderia considerar a adoção de práticas semelhantes, garantindo que os recursos confiscados sejam revertidos em prol da comunidade.
A implementação do decreto estadual de São Paulo requer cautela para evitar os erros observados em outras jurisdições. É essencial que sejam estabelecidos critérios claros para a aplicação do confisco, assegurando que a medida seja utilizada de forma proporcional e que não se torne uma fonte de financiamento indiscriminado para as agências de aplicação da lei. A literatura criminológica destaca a importância de salvaguardas processuais para proteger os direitos dos indivíduos e evitar abusos (Worrall, 2001).
A participação da sociedade civil na supervisão dos processos de confisco pode contribuir para a transparência e a legitimidade das ações. No Brasil, a criação de conselhos ou comitês com representantes da sociedade civil, do Ministério Público e do Judiciário poderia atuar na fiscalização da destinação dos bens confiscados, garantindo que os recursos sejam utilizados de forma ética e eficiente.
A formação e capacitação dos agentes envolvidos nos processos de confisco são fundamentais para a aplicação justa e eficaz da medida. Programas de treinamento que enfatizem os direitos humanos, a proporcionalidade e a ética podem contribuir para a redução de abusos e para a construção de uma cultura institucional que valorize a justiça e a transparência.
A adoção de tecnologias de informação para monitorar e divulgar os processos de confisco pode aumentar a transparência e a confiança pública. Plataformas online que permitam o acompanhamento em tempo real dos bens confiscados e de sua destinação podem servir como ferramentas eficazes de prestação de contas e controle social. Essa transparência não apenas aumenta a confiança da população nas políticas de segurança pública, mas também dificulta desvios ou usos indevidos dos recursos confiscados.
A cooperação internacional no combate ao crime organizado e na gestão de bens confiscados é outro aspecto importante a ser considerado. Experiências bem-sucedidas, como a da Itália e do Reino Unido, demonstram que parcerias entre países podem facilitar a recuperação de ativos localizados no exterior e garantir que os recursos sejam efetivamente destinados ao combate ao crime e à promoção de políticas sociais (Riccardi, 2014; Sproat, 2007). Para o Brasil, fortalecer acordos bilaterais e multilaterais nesse campo é essencial para otimizar os resultados das medidas de confisco.
A criminologia também enfatiza a necessidade de avaliar continuamente os impactos das políticas de confisco sobre as dinâmicas criminais e sociais. Estudos longitudinais podem fornecer insights valiosos sobre como essas medidas afetam o comportamento das organizações criminosas, as taxas de reincidência e a percepção pública sobre a justiça e a segurança (Carpenter et al., 2015). Essas avaliações são essenciais para garantir que as políticas de confisco de bens sejam ajustadas conforme necessário, assegurando que cumpram seus objetivos de maneira eficaz, justa e proporcional. No Brasil, embora o Decreto Estadual de São Paulo seja uma inovação, ainda há muito a avançar no monitoramento e na avaliação dos impactos dessas medidas.
É necessário também considerar que a implementação de políticas de confisco deve ser acompanhada de esforços para melhorar a gestão e a destinação dos bens confiscados. Experiências em países como a Itália mostram que, ao transformar propriedades confiscadas em escolas, centros de saúde ou outras utilidades públicas, é possível criar benefícios diretos e visíveis para a sociedade (Riccardi, 2014). Isso fortalece a legitimidade das políticas de confisco e reduz a percepção de que os recursos são mal utilizados ou desviados.
Risco
Outra questão crucial é a integração dessas medidas em estratégias mais amplas de combate ao crime organizado. O confisco de bens é uma ferramenta valiosa, mas não pode ser utilizada isoladamente. Deve ser acompanhado de políticas públicas que enfrentem as causas estruturais do crime, como a desigualdade social, a falta de oportunidades econômicas e o déficit educacional. No Brasil, essas estratégias integradas são especialmente relevantes, considerando a complexidade e a capilaridade das organizações criminosas.
É importante reconhecer que o sucesso de qualquer política pública depende de sua aceitação e legitimidade perante a sociedade. Isso exige um compromisso com a transparência, a prestação de contas e a participação social. No caso do confisco de bens, a criação de mecanismos que permitam à população acompanhar a destinação dos recursos é essencial para construir confiança e assegurar que a medida seja percebida como justa e benéfica.
O decreto do estado de São Paulo insere-se na lógica expansionista do sistema penal, apostando no confisco de bens como ferramenta de combate ao crime. No entanto, sua implementação deve ser observada com cautela, pois a história recente já demonstrou como políticas repressivas podem ser instrumentalizadas para finalidades outras que não a justiça. O risco de transformar essa medida em um mecanismo de arrecadação estatal, sem os devidos controles e garantias processuais, é real. Se não houver transparência e fiscalização rigorosa, o confisco de bens pode se tornar um atalho para a ampliação do poder punitivo, deslocando o foco das verdadeiras causas da criminalidade. No limite, corre-se o risco de criar mais um dispositivo seletivo, afetando desproporcionalmente grupos socialmente vulneráveis, ao invés de desarticular, de fato, as economias do crime organizado.
Referências
Carpenter, Dick M. II; Knepper, Lisa; Erickson, Angela C.; McDonald, Jennifer. Policing for Profit: The Abuse of Civil Asset Forfeiture. Arlington: Institute for Justice, 2015.
European Union. Directive 2014/42/EU on the Freezing and Confiscation of Instrumentalities and Proceeds of Crime in the European Union. Official Journal of the European Union, 2014.
Hickman, Matthew J.; Reaves, Brian A. Local Police Departments 2003. Washington, DC: Bureau of Justice Statistics, 2006.
Miller, J. M.; Selva, L. H. “Drug Enforcement’s Double-Edged Sword: An Assessment of Asset Forfeiture Programs.” Justice Quarterly, v. 11, n. 2, p. 313-335, 1994.
Moores, Eric. “Reforming the Civil Asset Forfeiture Reform Act.” Arizona Law Review, v. 51, n. 3, p. 777-807, 2009.
Riccardi, Michele. “Confiscated Assets and Social Reuse in Italy: A Cultural Approach.” European Journal of Criminology, v. 11, n. 4, p. 459-475, 2014.
Sproat, Peter. “The Development of Asset Forfeiture Regimes.” European Journal on Criminal Policy and Research, v. 13, p. 15-37, 2007.
Worrall, John L. Problem-Oriented Guides for Police Response Guides Series No. 7: Asset Forfeiture. Washington, DC: Office of Community Oriented Policing Services, US Dept. of Justice, 2008.