Em 1995, a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, marcou um ponto de inflexão na luta pelos direitos das mulheres. Dela emergiu a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, um compromisso internacional que estabeleceu parâmetros essenciais para a promoção da igualdade de gênero. Três décadas depois, a reflexão sobre sua implementação revela avanços, mas, sobretudo, evidencia desafios persistentes, especialmente no que diz respeito à influência midiática na construção das narrativas sobre gênero.

O documento de Pequim identificou a mídia como um dos 12 temas estratégicos a serem monitorados, reconhecendo seu poder na consolidação de estereótipos e na disseminação de discursos que reforçam desigualdades. A recomendação era clara: os estados deveriam incentivar uma cobertura jornalística responsável, promover maior presença feminina nos espaços de comunicação e combater conteúdos que perpetuassem violências simbólicas. Mas o que se vê, após 30 anos, é um cenário paradoxal.
Se, por um lado, houve avanços na visibilidade das questões de gênero — com campanhas globais e maior espaço para denúncias de violência —, por outro, a mídia tradicional e digital continuam sendo ambientes de propagação de misoginia. O crescimento das redes sociais potencializou discursos antifeministas e impulsionou a desinformação, dificultando o avanço de pautas que já enfrentavam resistência. Além disso, a presença de mulheres no jornalismo e em espaços de tomada de decisão midiática segue aquém do ideal. A sub-representação feminina, combinada com o controle narrativo ainda dominado por homens, limita a pluralidade de perspectivas.
A Declaração de Pequim também previa o monitoramento da violência midiática, incluindo a objetificação da mulher na publicidade e a representação distorcida de sua atuação na sociedade. No entanto, com a massificação da internet, essas questões se tornaram ainda mais complexas. O aumento da exposição a conteúdos degradantes, o assédio virtual e a perseguição a ativistas feministas se tornaram desafios contemporâneos que ultrapassam as diretrizes estabelecidas em 1995.
Diante desse cenário, é preciso questionar a efetividade do monitoramento proposto há 30 anos. Os organismos internacionais que se comprometeram com a implementação da Plataforma de Pequim enfrentam dificuldades para adaptar suas estratégias a um ambiente digital dinâmico, onde algoritmos amplificam discursos de ódio e fake news. A falta de regulamentação eficaz para conter essas práticas acentua o problema, deixando um vácuo de responsabilização.
Outro aspecto relevante é o papel do direito na consolidação dessas diretrizes. Se a Declaração de Pequim não tem força vinculante, os países signatários deveriam, ao menos, harmonizar suas legislações internas com seus compromissos internacionais. No entanto, a ascensão de governos conservadores em diversas partes do mundo tem resultado em retrocessos, minando políticas públicas voltadas para a equidade de gênero e flexibilizando normas que deveriam coibir a violência midiática contra mulheres.
Três décadas depois, a pergunta que se impõe é: o que ainda falta para que os compromissos assumidos em Pequim saiam do papel e se convertam em mudanças estruturais? A resistência institucional, o enfraquecimento de mecanismos de proteção e o avanço de discursos reacionários são entraves evidentes. No entanto, o cenário digital ampliou a necessidade de estratégias que contemplem novas dinâmicas, sem perder de vista a responsabilidade estatal e corporativa.
2025
A Comissão sobre a Situação da Mulher das Nações Unidas (CSW), principal órgão global dedicado à promoção da igualdade de gênero, terá em 2025 uma edição crucial. O tema central será a revisão dos 30 anos da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, um momento estratégico para avaliar os avanços, os retrocessos e, principalmente, as lacunas na implementação das diretrizes estabelecidas em 1995.
A CSW69, ao revisitar Pequim, terá o desafio de enfrentar o impacto das novas dinâmicas sociais e tecnológicas na vida das mulheres. A desinformação, a violência digital, a ascensão de discursos antifeministas e o enfraquecimento de políticas públicas em diversos países são fatores que comprometem a efetivação dos compromissos assumidos há três décadas. O reconhecimento do papel da mídia nesse cenário será um dos aspectos centrais da revisão, evidenciando como a manipulação narrativa pode reforçar desigualdades ou servir como ferramenta de transformação.
Para o direito, a revisão de Pequim na CSW69 representa uma oportunidade de reforçar a necessidade de mecanismos normativos mais eficazes, capazes de enfrentar as novas formas de violação de direitos das mulheres. Questões como regulamentação das plataformas digitais, responsabilização da mídia na disseminação de discursos misóginos e fortalecimento de políticas contra a violência simbólica precisam ser tratadas com urgência. Além disso, a pressão internacional sobre os países signatários deve ser intensificada, evitando que o compromisso assumido em 1995 siga sendo apenas um conjunto de diretrizes sem aplicação concreta.
O que está em jogo na CSW69 não é apenas um balanço histórico, mas o futuro da proteção dos direitos das mulheres em um contexto global cada vez mais desafiador. A revisão da Declaração de Pequim deve servir como um chamado para que Estados, sociedade civil e organismos internacionais ampliem sua vigilância e reforcem medidas que garantam a igualdade de gênero não apenas como um compromisso político, mas como uma realidade jurídica e social efetiva.