Reflexões sobre um 'novo obstruir parlamentar'
11 de março de 2025, 12h19
Este artigo pretende se debruçar sobre contemporâneas nuances da atuação parlamentar, com novas formas de “obstruir” o trâmite legislativo, em que trago três exemplos que servem para iluminar a compreensão dos novos tempos, e que apesar da distância geográfica, guardam semelhanças entre si.
Para tanto, exponho reflexões levantadas na tese de doutorado no programa de pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (2024), e apresento alguns outros questionamentos que permeiam os estudos para futuras incursões. Desde já agradeço a oportunidade e o convite para a escrita pelo amigo Victor Marcel.
Obstrução parlamentar é um tema que gradativamente tem sido de interesse em estudos acadêmico-científicos. Entretanto, a dificuldade em estudá-lo reside em diversos fatores, principalmente formas variadas de incidência e dinamismo nas práticas legislativas, muitas vezes não registradas ou mesmo conhecidas por quem se debruça sobre a sua (não) efetividade.
O primeiro óbice à pesquisa sobre práticas obstrucionistas é a sua própria definição. Bell (2017), uma das estudiosas que mais se debruça sobre o tema em um período recente, relata ser quase impossível chegar a uma definição que descreva exaustivamente todo tipo de manobra parlamentar que poderia ser usada por membros de parlamentos para impedir o progresso do trâmite legislativo.
Expõe, ainda, que Rutherford (1914), por exemplo, distinguiu entre formas conscientes e inconscientes de obstrução — a última, ele argumentou, era um subproduto de condições políticas nas quais o comportamento parlamentar normal inadvertidamente resultava no atraso da execução da agenda legislativa.
Em Bell, com referência a Bücker (1989, 231), encontramos uma concepção globalmente adotada: “a obstrução não consiste em uma violação formal das regras de procedimento; é uma conduta que, em termos formais, está em conformidade com as regras processuais, mas ainda constitui um abuso das formas. Como regra, tal abuso é projetado para atrasar ou impedir decisões parlamentares”.
Então, em suma, obstrução se trata de um instrumento formal e previsto regimentalmente em países como EUA e Brasil, do qual se valem, principalmente, as minorias parlamentares para prorrogar votações de determinadas proposições na tentativa de mudar a situação política sobre aquele tema em específico, visando, por exemplo, ganho de tempo, obtenção de novos votos contrários ou favoráveis etc., ressaltando o seu caráter legal e institucional.
Em sua autobiografia intitulada Uma Terra Prometida, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama reserva uma parte do livro à descrição de algumas obstruções no Congresso que sofrera durante seu mandato.
Reconhece tanto a institucionalização da prática quanto a dificuldade em se lidar com ela, ao mencionar que “também precisava enfrentar uma artimanha institucionalizada nos procedimentos — a obstrução no Senado — que, ao fim e ao cabo, se tornaria a dor de cabeça política mais crônica de meu governo” [1].
Há adeptos e opositores à obstrução parlamentar. Se por um lado se defende a possibilidade de minorias reagirem às maiorias decisórias, a fim de evitar eventual “ditadura da maioria”, por outro critica-se justamente que um pequeno grupo de parlamentares possa suspender importante processo político decisório, a desrespeitar, portanto, o princípio democrático, a constituir abuso de direito.
Sobre a utilização de táticas parlamentares específicas, Nascimento (2021) considera a obstrução como “todas as formas, regimentais ou não, de retardar a discussão parlamentar, notadamente com o propósito de impedir que o projeto de lei seja aprovado pelas maiorias”. Elenca para tanto algumas de suas principais formas no Brasil:
1) impedir a formação do quórum para a abertura da sessão através do não comparecimento ou o não registro da presença;
2) requerimento de verificação de quórum a fim de derrubar a sessão, ou mesmo protelar as votações em si;
3) requerimento de votação nominal;
4) a obstrução propriamente regimental (ou legítima) declarada pelo líder em processo de votação nominal;
Para além destas, cita inscrição para uso da palavra, apresentação de emendas, pedido de vista, destaque para votação em separado, requerimentos para adiar discussão e/ou votação, bem como para realização de audiências, em que o processo retornaria às comissões.

Globalmente, várias práticas são conhecidas como essencialmente obstrucionistas, como o Filibustering (filibusterismo), em que os senadores nos EUA discursam por horas a fio a fim de retardar o processo legislativo, ou mesmo a prática de gyuho, no Japão, que permite aos legisladores se moverem o mais lentamente possível para dar seus votos, atrasando assim o processo legislativo.
Mas vamos à análise de alguns casos atuais a que me referi no início.
Três exemplos
Recentemente foram noticiados momentos de tensão no parlamento sérvio, quando deputados da oposição lançaram bombas de fumaça e sinalizadores a fim de interromper os trabalhos legislativos e que o governo aprovasse novas leis momentos antes de deixar o poder.
“Acreditamos que um governo de saída não pode propor leis”, disse Radomir Lazović, da Frente Verde-Esquerda, em um discurso antes que os oposionistas jogassem bombas de gás e granadas de fumaça no parlamento sérvio [2].
O ocorrido se deu em concomitância a várias outras manifestações populares e parlamentares em razão da crise política vivenciada pelo primeiro-ministro sérvio, cuja renúncia estava pendente de aprovação pelo parlamento.
O que se viu não foi a utilização procedimental e institucional para o atraso do trâmite legislativo, mas sim a deturpação na utilização de prerrogativas parlamentares para a declaração de insatisfação e instauração do caos, como definido em alguns meios de imprensa.
Ainda, recentemente [3] na Câmara dos Deputados brasileira, houve suspensão da sessão em razão de manifestações veementes por parlamentares de esquerda e direita que se valeram de cartazes e gritos, xingamentos e interrupções à fala de deputados(as) contrários, com prorrogação do tempo de fala por sucessivas vezes ao então deputado orador.
No mesmo sentido deste ocorrido, relata-se a ocupação da Presidência da Mesa por parlamentar sem competência e atribuições para tal, para se posicionar contra a votação de requerimento de urgência do projeto de lei que aprovara a reforma trabalhista em 2017. Famosa a frase: “Com a palavra o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator dessa desgraça!”
E por último, o exemplo do parlamento da Nova Zelândia, quando os trabalhos legislativos foram temporariamente interrompidos por parlamentares que realizavam a dança haka, em meio à indignação com um projeto de lei controverso que buscava reinterpretar o tratado de fundação do país com o povo maori.
À ocasião, a deputada oposicionista Hana-Rawhiti Maipi-Clarke deu início à tradicional dança após ser questionada se seu partido apoiava o projeto de lei, claramente contrários aos interesses do seu povo, reconfigurando antigo tratado com a corte britânica. Assista aqui.
Nos três exemplos acima, a obstrução e posicionamentos políticos não se deram através de falas intermináveis, esvaziamento de sessão ou mesmo apresentação de requerimentos. O denominador comum de todos os casos relatados é a utilização de práticas comportamentais para a delonga do trâmite legislativo, e não votação de proposições específicas, ou mesmo manifestações de contrariedade entre grupos parlamentares opostos.
Em tempos de transmissões simultâneas na mídia especializada, inclusive com canais institucionais como a TV Câmara, e larga utilização das redes sociais por parlamentares, mesmo durante as sessões, com resposta simultânea do público-alvo, fiquemos atentos e de olho em novas práticas de obstrução e interatividade parlamentares, para muito além das previstas constitucional, legal e regimentalmente nas Casas Legislativas.
Referências
BELL, Lauren (2010). Filibustering in the U.S. Senate. Amherst: Cambria Press. Edição do Kindle.
BELL, L. C. (2018). Obstruction in parliaments: a cross-national perspective. The Journal of Legislative Studies, 24(4), 499–525.
NASCIMENTO, Roberta Simões (2021). 13 táticas parlamentares para aprovação das leis. Revista Bonijuris, Curitiba, ano 33, n. 670, p. 54–82, jun./jul.. Disponível em: https://www.editorabonijuris.com.br/revista/revista-bonijuris/670/
OBAMA, Barack (2020). Uma terra prometida. São Paulo: Companhia das Letras. Edição do Kindle.
[1] Obama, 2020, pp. 409-410.
[2] Disponível em: https://www.politico.eu/article/serbian-parliament-chaos-opposition-hurl-smoke-bombs-flares-protests/. Acesso em: 10 de março de 2025.
[3] https://www.camara.leg.br/noticias/1134978-discursos-sobre-denuncia-contra-bolsonaro-geram-tumulto-no-plenario-motta-cobra-melhor-conduta-de-deputados
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