O ataque ao ministro Alexandre de Moraes: defesa da soberania e a razão oculta
11 de março de 2025, 8h00
“se é verdade que devemos saber o que é liberdade a fim de determinar quais partidos na história lutaram por ela, não é menos verdade que devemos conhecer o caráter desses partidos a fim de determinar o que é liberdade” [1].
Max Horkheimer, Eclipse da Razão.
Há alguns meses, escrevemos sobre as ameaças à soberania brasileira a partir de alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, destacamos que é equivocada a percepção de que a soberania seria um conceito vetusto e procuramos demonstrar de que modo alguns dos debates constitucionais brasileiros mais relevantes perpassam precisamente pela reespecificarão do conceito na atualidade.
Recentemente, vislumbramos novo ataque à soberania brasileira mediante tentativa de assédio processual a partir da ação movida pela Trump Media e pela Rumble nos Estados Unidos contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.
Em um primeiro momento, tivemos a expectativa de que numerosos artigos seriam elaborados para criticar esse tipo de tentativa de intimidação das instituições; contudo, para nossa surpresa, apareceram menos defesas doutrinárias de setores relevantes da advocacia do que esperávamos. Obviamente, diversas razões podem existir para tanto, todavia, parece haver uma razão oculta.
Vale, antes de mais nada, uma interessante metáfora: em termos gramaticais, o sujeito oculto pode ser identificado, ora ou outra. Diferente do indeterminado e do inexistente, ele se denuncia pelo contexto ou pelas desinências verbais. As razões e os sujeitos, mesmo quando não gramaticais, também o fazem. E é essa aposta que fazemos.
Os expedientes da Trump Media e da Rumble, agora voltado para atacar o ministro Alexandre de Moraes, têm sido utilizados – com o auxílio direto de operadores do Direito – para atacar companhias brasileiras mediante fabricação de processos em jurisdições estrangeiras. Embora absurdo, o movimento faz de tudo para tentar se esquivar do direito e da jurisdição brasileiros, em especial, do Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, é muito complicado criticar a ação proposta contra o ministro sem – de forma antecedente – aceitar que a defesa da soberania brasileira é um valor constitucional intransigível. Exatamente sobre essa razão oculta dedicamos esta coluna; para tanto, será fundamental retomar o conceito de soberania.
De fato, não se pode negar que, se antes as fronteiras de um Estado delimitavam também as fronteiras de seu poder [2], atualmente, o poder político já não está mais circunscrito ao poder estatal [3]. Outras figuras despontam como portadores desse poder, dentre os quais se destacam os atores privados, os quais acumulam tantos recursos financeiros e políticos que funcionam, na prática, como entidades tão ou mais poderosas que outros Estados.
Isso implica que, na atualidade, a soberania de um Estado não é ameaçada somente por outros Estados, como também por players privados, cujo acúmulo de capital, influência e conhecimento os interpõe no concerto das nações. Não à toa, temos observado como agentes privados poderosos têm se organizado para minar a soberania de países “clientes”, em especial, através da instrumentalização de jurisdições estrangeiras.

Por óbvio, ao serem dotados de poder político, a sua presença é potencialmente um fator de desbalanceamento do poder local, o que pode afetar a qualidade da própria autodeterminação política de uma população. Isso justifica a afirmação de que a legitimidade da atuação desses grandes players depende da mediação do direito – fato que envolve, ou deveria envolver, o respeito às leis e instituições locais.
Mas o que ocorre quando esses atores decidem não se sujeitar à soberania das democracias constitucionais? Esse questionamento foi o que nos levou, no texto anterior, a diagnosticar tal comportamento como uma verdadeira ameaça à soberania nacional e, portanto, à democracia e nos leva a apontar, mais uma vez, que hoje o maior desafio do Supremo é lidar com esses grandes atores privados que não querem se sujeitar ao direito brasileiro e à autoridade da nossa jurisdição constitucional.
O caso contra o Alexandre de Moraes
Uma situação recente não só confirmou o diagnóstico anterior, como também mostra em que medida o populismo autoritário vem avançando em direção às soberanias de outros países. O alvo da vez não é o Judiciário enquanto instituição ou poder de Estado, mas um juiz específico. Trata-se da ação movida pela Trump Media e pela Rumble nos Estados Unidos contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Embora os peticionários “acusem” o ministro de violação à Primeira Emenda da Constituição dos EUA, no que se refere à liberdade de expressão, e de extrapolar sua autoridade legal, a ação tem natureza declaratória e pede a emissão de uma declaração de que a “ordem de silenciar” (gag order) um usuário, expedida por Alexandre de Moraes, não seja executável nos Estados Unidos.
Vale destacar que a Trump Media & Technology Group (TMTG), uma das autoras da ação, que opera a plataforma Truth Social, sequer foi alvo, até o momento, de qualquer ordem do ministro do STF, e tenta justificar sua legitimidade a partir do impacto indireto que poderia vir a sofrer em decorrência das decisões do Judiciário brasileiro em relação à Rumble.
Poder-se-ia dizer, a princípio, que se trata de mais uma tentativa de blindar empresas estratégia em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal, colocando em xeque a sua autoridade, o que evidentemente é verdadeiro. Ocorre que a gravidade da situação reside no fato de, sob o pretexto de atingir decisões relacionadas ao cargo de ministro do STF, a ação, conjuntamente com uma série orquestrada de ataques de que participam inclusive personalidades brasileiras, passa pelo descrédito e violência da própria pessoa do ministro em sua esfera individual.
Uma estratégia frequente
Na qualidade de Estado soberano, os EUA têm a prerrogativa de não executar em seu território ordens emitidas por jurisdição estrangeira, o que não é o caso. Trata-se antes de uma tentativa de alçar um grupo extremado de nacionais e estrangeiros a “corregedores-gerais” da liberdade de expressão no mundo, como se um punhado de valores pudesse ser uniformemente exportado, e isso para não falarmos nos interesses de mercado subjacentes a essa estratégia, que não é propriamente nova.
Tentar burlar o Supremo Tribunal Federal fazendo o uso da jurisdição estrangeira tem sido uma tendência seguida em outros precedentes. Nesse sentido, já destacamos a tentativa de uma empresa estrangeira de desviar-se da provável validação da exigência de autorização do Incra e do Congresso Nacional, em atendimento aos ditames da Constituição e das leis nacionais, para adquirir terras rurais em território brasileiro através da provocação à jurisdição internacional. A mesma estratégia foi utilizada também no processo contra a mineradora brasileira por fatos ocorridos e solucionados – mediante acordo constitucional – no Brasil, sucedida por uma série de processos pulverizados em jurisdições estrangeiras ajuizados por municípios nacionais em evidente desprestígio da soberania nacional.
Eis o busílis, a razão oculta de não haver a contundência crítica merecida contra a ação proposta em face do ministro Alexandre de Moraes. A ação movida nos EUA pelas empresas Trump Media e Rumble, assim como nesses outros casos, é uma tentativa de violentar a soberania brasileira, de modo que o ministro Alexandre de Moraes é vítima do mesmo sistema de captura que outros grandes grupos de empresa costumam fazer com o Poder Judiciário brasileiro, ajuizando ações no exterior. O Brasil é um país que reconhecidamente possui um sistema jurisdicional dotado de mecanismos de auxílio e de cooperação internacionais, bem como de homologação de decisões estrangeiras. No entanto, o Poder Judiciário brasileiro, em especial, o Supremo Tribunal Federal, não pode admitir internamente a instrumentalização da jurisdição estrangeira no sentido de torná-la subterfúgio habitual para fugir de decisões judiciais brasileiras, negando sua autoridade, muito menos submetê-las ao “controle de constitucionalidade” que toma como parâmetro a Constituição alheia e as interpretações que a ela são emprestadas.
Aceitar esses subterfúgios significaria, em outras palavras, golpear a própria Constituição brasileira, que estabelece como fundamento da República, a soberania por excelência (artigo 1º, I, CF). Se considerarmos, com Dieter Grimm, que a função mais importante desempenhada pela soberania, atualmente, consiste em “proteger a autodeterminação democrática de uma sociedade politicamente unida no que diz respeito à ordem que melhor lhe convém” [4], facilmente chegaremos à conclusão de que é a soberania quem protege o regime democrático como um todo, e isso inclui quaisquer formas de intervenção estrangeira na política local, algo que só pode ser minimamente equacionado se o player estrangeiro se submeter às leis do lugar em que pretende se fixar e respeitar as decisões judiciais proferidas pelo Poder Judiciário desse local.
O interesse escuso que subjaz às covardes tentativas de intimidar o ministro Alexandre de Moraes integra um conjunto já bem conhecido de estratégias que buscam a completa politização do Direito. Hannah Arendt anotou em seu Origens do Totalitarismo de forma quase profética que “[o] sujeito ideal do regime totalitário não é o nazista ou o comunista convicto, mas sim as pessoas para quem a distinção entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (isto é, os padrões do pensamento) já não existem” [5]. Os modelos totalitários tentam obscurecer essa distinção, torná-la fugidia. Assim, faz-se o súdito ideal, pronto para acreditar em tudo o que vê e ouve nas redes sociais e a aceitar de bom grado a eleição de um inimigo público que, como bode expiatório, represente todos as mazelas da sociedade.
É espúria a tentativa de criar um espetáculo judicial que tem o ministro Alexandre de Moraes como protagonista, como se o que estivesse em jogo na ação da Rumble fosse a liberdade de expressão no mundo todo. Lembremos, uma vez mais, de Arendt: “[u]m julgamento-espetáculo precisa, ainda mais do que um julgamento comum, de um contorno limitado e bem definido sobre o que foi feito e como foi feito. No centro do julgamento só pode estar aquele que agiu – nesse sentido, ele se assemelha ao herói de uma peça teatral – e, se ele sofrer, deve ser pelo que fez, não pelo sofrimento que causou a outros” [6].
Não nos enganemos. O que está em jogo não é a liberdade de expressão, até mesmo porque ela não existe como valor abstrato, dissociado temporal e geograficamente dos Estados que a internalizaram em seus direitos pátrios através de mediações que consideram o ethos político de um povo e seus respectivos modos de vida [7]. Se esta ou aquela decisão de qualquer juiz brasileiro eventualmente tiver que ser contestada, que o seja por intermédio dos recursos legais postos à disposição pelo ordenamento jurídico nacional.
Os mesmos atores que agora tentam, com expressivo apoio nacional, “mandar um recado” aos povos de todo o mundo por intermédio das ações vis que tomam contra um ministro da Suprema Corte brasileira não têm se envergonhado de apoiar publicamente – partidos de extrema-direita no mundo todo, como foi o caso do Alternative für Deutschland (AfD) nas eleições parlamentares alemãs de 2025 [8], que tem em seus quadros membros que já afirmaram ser a “a face amistosa” do nazismo (Matthias Helferich) ou que “nem todos os membros da SS eram criminosos” (Maximilian Krah) [9].
A resistência aos ataques recorrentes ao STF e ao ministro Alexandre de Moraes é um imperativo da defesa dos conteúdos legítimos da liberdade de expressão e da soberania nacional, que significa primordialmente nos dias de hoje a obrigação de qualquer pessoa ou empresa respeitar as leis nacionais e as decisões judiciais emitidas por autoridades brasileiras. Assim se protege a autodeterminação política que funda a modernidade política. Por fim, podemos afirmar que talvez nem a razão, tampouco o sujeito sejam tão ocultos assim…
[1] Max Horkheimer. Eclipse da Razão, trad. Carlos Henrique Pissardo, São Paulo: UNESP, 2015, p. 185.
[2] Jacques Commaille. À quoi nous sert le droit?, Gallimard, 2015, p. 205.
[3] Dieter Grimm. Constitutionalism: Past, Present, and Future, Oxford University Press, 2016, p. 32.
[4] Dieter Grimm. Constitutionalism: Past, Present, and Future, Oxford University Press, 2016, p. 128. Tradução livre.
[5] Hannah Arendt. The Origins of Totalitarianism, Harcourt, 1973, p. 474. Tradução livre.
[6] Hannah Arendt. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, Penguin Classics, 2022, p. 7. Tradução livre.
[7] Cf. Jürgen Habermas. O Ocidente Dividido: Pequenos Escritos Políticos X, trad. Bianca Tavolari, São Paulo: Editora UNESP, 2016, p. 64 e 120.
[8] Ver https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/elon-musk-discursa-em-comicio-de-partido-de-ultradireita-da-alemanha/; e https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/vice-dos-eua-se-reune-com-chefe-do-partido-de-ultradireita-da-alemanha/.
[9] https://www.dw.com/pt-br/nova-bancada-da-afd-reabilita-nomes-associados-ao-nazismo/a-71762230.
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