Opinião

Emendas parlamentares e acordo do ministro Dino: vitória do status quo

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  • é graduando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) com dupla titulação pela Université Lumière Lyon II e estagiário da Laguz Opportunities.

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  • é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP foi pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e na Universidade de Oxford (Inglaterra) e é autor de Inovações Constitucionais: direitos e poderes (Casa do Direito 2018).

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11 de março de 2025, 11h24

“Mais do mesmo.” É em uma frase que podem ser resumidas as dezenas de artigos de opinião, editoriais e outras cartas de lamentação pública que se seguiram à troca de comando na Câmara e no Senado no início de fevereiro. Não pretendemos nos ocupar com a veracidade dessa lamentação, mas sim com o seu cerne: “mais do mesmo” por quê? A melhor resposta que podemos encontrar quando refletimos sobre a questão é que a troca não parece ter alterado, em uma vírgula sequer, a notória e crescente avidez do Congresso por verbas públicas. Ao que se soma, ainda, o fato de os novos incumbentes terem chegado ao comando das respectivas casas com a óbvia missão de desatar o nó entre Executivo, Legislativo e Judiciário a respeito das emendas parlamentares (existem as individuais, de bancadas estaduais e de comissão).

Rosinei Coutinho/STF
Ministro Flávio Dino se manifestou pela repercussão geral do julgamento

O nó em questão foi gestado pelo próprio Legislativo. De um lado, durante todo o período pós-88 as negociações entre Congresso e Executivo deram-se (entre outros instrumentos, lícitos e ilícitos) por emendas parlamentares de execução discricionária pelo Executivo (se o orçamento é de execução discricionária ou impositiva, é um dos assuntos mais controversos do Direito Financeiro). Em 2015, entretanto, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 86, que criou a figura das emendas parlamentares individuais impositivas. Assim, na prática, cada parlamentar ganhou uma “cotinha” do orçamento para investir em sua base eleitoral — “cotinha” esta que não depende do Executivo para ser liberada (para 2024, foi estimado pelo Executivo que cada deputado teria um valor disponível de quase R$ 38 milhões; senadores, quase R$ 70 milhões) [1].

Como o sistema funciona muito bem para o parlamentar, com o tempo ele foi sendo aperfeiçoado — entre outros mecanismos, com o aumento de percentual da receita comprometida pelas emendas, a criação das emendas de bancada dos estados e as chamadas “emendas pix”, que são transferidas aos estados e municípios independente de maiores formalidades e, em regra, sem vinculação clara a projetos específicos.

Entretanto, o sistema teve um rebote. Como as emendas parlamentares individuais se tornaram impositivas, os parlamentares perderam um dos instrumentos de barganha de que dispunham para negociar com o Executivo. O “orçamento secreto” surgiu para corrigir essa falha. Isto é, apesar de alguma divergência inicial entre Executivo e Legislativo (manifestada por uma sucessão de vetos na lei de diretrizes orçamentárias e no orçamento), as verbas do orçamento secreto (emendas de relator) jamais foram impositivas — e, ainda que se adote uma interpretação divergente, jamais o foram com o mesmo status constitucional das emendas individuais genuinamente impositivas.

Como as despesas do orçamento secreto eram discricionárias, elas reabriram, novamente, a barganha entre Executivo e Legislativo por meio de emendas parlamentares. De quebra, como toda a alocação era feita em nome do relator-geral do orçamento, esse sistema ainda era menos transparente, permitindo barganhas ainda maiores, além de outros abusos que extrapolam a legalidade. Isso tudo levou à declaração de inconstitucionalidade do sistema de emendas do relator pelo STF [2], que agora avança também sobre as emendas de comissão, também discricionárias, e que chegaram a sofrer bloqueios por conta de sua opacidade; e sobre as emendas Pix, impositivas, mas igualmente de difícil rastreabilidade.

O problema é que, apesar de o sistema das emendas impositivas ser obviamente infeliz, na medida em que limita a negociação entre Congresso e Executivo, ele facilita — e muito — a gestão de bases eleitorais; além de dar aos parlamentares o controle sobre um recurso do qual não há por que, voluntariamente, um agente político racional abrir mão (hoje, o próprio sistema de emendas parlamentares impositivas tem problemas de transparência e gestão, por exemplo, com as emendas pix). Além de tudo, a criação do zero de um novo instrumento de barganha (o orçamento secreto), por meio de uma legislação financeira de difícil compreensão, sem o respeito pelos ditames mínimos da transparência e tampouco de volume financeiro, criou um mecanismo mais eficiente de barganha (pelo menos do lado do Legislativo) do que aqueles que até então existiam.

Tudo iria “bem” para os congressistas se o Supremo não tivesse declarado o orçamento secreto inconstitucional. Como se não bastasse, ainda que não de forma explícita, há óbvia má vontade do Executivo com o sistema vigente — seria muito mais fácil para o governo lidar com deputados e senadores de pires na mão do que com agentes que já dispõem de recursos e estão ávidos por mais.

Mas existe algo mais por detrás desta briga de poder?

Apesar de as emendas favorecerem vários supostos vícios brasileiros como clientelismo, paternalismo e a perpetuação de certos grupos no poder — e é bom lembrar que escolher partidos e parlamentares “prestadores de serviços” pode ser considerada uma opção eleitoral legítima [3] — o mecanismo de emendas impositivas tem a evidente virtude de garantir que as bases da oposição também recebam alguma verba por meio de seus parlamentares — caso contrário, manter-se intransigente na oposição poderia perfeitamente significar quatro anos de penúria. Em outras palavras: como a oposição consegue algo para lidar com a sua base, ela fica dependendo menos da liberação de recursos por meio de acordos e transações, podendo manter uma posição ideologicamente mais coerente.

Spacca

Então, com efeito, quando discutimos o sistema de emendas parlamentares estamos, ao menos de forma subjacente, discutindo, na verdade, a concepção de democracia vigente e a sua interação com a estrutura jurídico-orçamentária. Antes do acordo do ministro Dino [4], podíamos vislumbrar três caminhos para o desfecho da crise:

A primeira via possível era a do arranjo minoritário e ideologicamente forte. Cada parlamentar manteria a sua “cotinha” (nos moldes que existem hoje com as emendas impositivas), mas perderia a possibilidade de usar emendas discricionárias como forma de barganha, o que forçaria outras formas de negociação entre Congresso e Executivo. O sistema teria a virtude de garantir a prestação de serviços a comunidades eleitoras da oposição e, por conseguinte, em tese, a manutenção de padrões ideologicamente mais fortes e coerentes de atuação parlamentar.

A segunda alternativa seria a da formação de um arranjo majoritário e ideologicamente fraco. Os parlamentares perderiam as suas respectivas “cotinhas” do orçamento (as emendas impositivas), mas se manteria a possibilidade de emendas de liberação discricionária (semelhante ao mecanismo das emendas do relator fulminado pelo Supremo, mas, de preferência, com mais transparência). Este padrão favoreceria uma visão majoritária de democracia, afinal, aumentaria o controle do Executivo, mas colocaria um ônus maior a padrões ideologicamente coerentes de atuação parlamentar — que, em algum momento, teriam que ceder para dar lugar a acordos para liberação de recursos em prol das bases eleitorais (e, em última análise, do sucesso eleitoral subsequente).

A terceira opção que poderíamos vislumbrar era a manutenção do status quo. É a solução dada pelo acordo homologado pelo ministro Dino. Cada parlamentar mantém sua “cotinha” do orçamento, com a possibilidade de utilização de um mecanismo subjacente de negociação por meio de emendas discricionárias. O mérito dessa solução é a conciliação (se alguém viu mérito na ideia de “arte pela arte”, por que não pode haver na conciliação pela conciliação?). Bonita, a solução tem um problema nevrálgico: ela não resolve a questão de fundo, transversal à crise, que é avidez, aparentemente irrefreável, do Congresso pelo controle de cada vez mais recursos orçamentários.

Além disso, a via eleita para a solução da crise merece desconfiança. Uma boa parte da legitimidade do controle de constitucionalidade advém da justificativa de que ele teria uma função contramajoritária. É possível questionar — e muito — se esse argumento faz sentido, se tem adesão factual  [5], etc. Inobstante, na prática, o liame argumentativo é inexorável. Mas é difícil — na verdade: muito difícil — vislumbrar como a conciliação em questões de controle de constitucionalidade se justifica nos termos de uma função contramajoritária das cortes constitucionais [6].

Se a conciliação parece ser, em si, uma solução meritória, é fácil ela se transformar em mero compromisso dilatório diante do equilíbrio relativo de forças políticas e, no caso específico das emendas, mais do que isso: uma homenagem à crônica incapacidade nacional de tomar decisões políticas resolutas diante das opções que se apresentam na condução dos negócios públicos.

 


[1] Congresso Nacional, Manual de Emendas Orçamento da União para 2024 PLN no 29/2023, p. 6.

[2] ADPF 850, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 19-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 27-04-2023  PUBLIC 28-04-2023.

[3] SANTOS, Wanderley Guilherme dos; GUIMARÃES, Fabrícia Corrêa, A Difusão Parlamentar do Sistema Partidário: exposição do caso brasileiro, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018.

[4] Dino homologa acordo proposto pelo Congresso e libera execução de emendas, Consultor Jurídico, 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-26/dino-homologa-acordo-proposto-pelo-congresso-para-liberacao-de-emendas/

[5] E.g., DAHL, Robert A., A Preface to Democratic Theory, Chicago: University of Chicago Press, 2006, cap. 1, 4.

[6] Poder-se-ia, é claro, vislumbrar uma distinção entre a conciliação no caso do controle de constitucionalidade da omissão para o controle de constitucionalidade “regular”, mas essa teoria ainda está por ser escrita.

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