Opinião

A arte moribunda do Tribunal do Júri

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11 de março de 2025, 17h16

Já escrevi bastante nesta ConJur sobre o Tribunal do Júri [1] e não escondo minha simpatia e admiração por ele: sou um fanático entusiasta desta forma de fazer justiça. Longe de mim, no entanto, procurar esconder alguns aspectos negativos que o Tribunal do Júri ostenta. Desses aspectos negativos, elenco um que para muitos tribunos seria supostamente uma das grandes virtudes do júri, aquilo que lhe dá a fisionomia única, aquilo que todos os tribunos, da acusação e da defesa, procuram desenvolver com esmero dentre as suas habilidades de tribuno: a oratória. Esta arte é tão cobiçada pelos tribunos, que é como se ela fosse um elemento integrante do próprio júri enquanto instituição. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. A oratória, tal como utilizada hoje, se tornou uma anacrônica e inoportuna arte para os fins da justiça, e a pouca utilidade que dela se poderia extrair fica neutralizada pelo seu mau uso.

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Sala do Tribunal do Júri vazia

No Egito antigo, os oradores eram desconhecidos. E não poderia ser de outra forma. Como registra Diodoro da Sicília [2], o legislador egípcio ordenou que as razões das partes fossem sempre escritas: fê-lo para proteger o santuário da Justiça dos feitiços da oratória. Os egípcios desconfiavam que a retórica da acusação e da defesa pudesse obscurecer os fatos da causa e perverter a capacidade de julgamento dos juízes. Daí que a origem desse fenômeno é indiscutível: foi na Grécia e em Roma onde ele floresceu e atingiu o seu ápice.

Mas aquilo que muitos tomam como o esplendor da democracia grega e da república romana foi na verdade o sintoma do período de mais severa decadência destas singulares nações. “Foi quando os negócios andavam pior, quando a tempestade das guerras civis abalava a cidade, que a eloquência floresceu em Roma”, registra Montaigne [3]. Quem eram os oradores, senão pessoas que, por meio da oratória mesma, alçavam voo na arena pública das repúblicas antigas para galgar posições políticas e/ou instigar o povo em algum tipo de querela pública? Os demagogos da Grécia e os facciosos de Roma não eram senão grandes oradores. A função da retórica para os antigos, em tendo nascido para subsidiar as arengas políticas, não poderia ser outra senão a de exagerar, inflamar, enganar, distrair, comover, obscurecer a razão, quando não simplesmente caluniar. Na cena forense não poderia ser diferente: os sicofantas gregos bem provam isso…

Filangieri era decididamente um opositor desse tipo de “arte” nos assuntos da Justiça. Para ele, a oratória é contrária à justiça e à verdade, pois ataca e destrói precisamente as duas qualidades que o juiz deve ter para julgar: a firmeza de ânimo e a insensibilidade do coração. Para o napolitano, a finalidade da oratória é substituir a frieza da razão pelo entusiasmo da imaginação; é falar ao coração quando não se pode seduzir o intelecto; comover o juiz quando não se pode persuadi-lo; é nisso o que para ele consiste a oratória, “arte perniciosa, arte destruttrice della giustizia, arte ch’espone l’innocenza e favorisce l’impunità.[4]

Oratória para comoção

De fato, os grandes oradores são não raros pessoas que, constatando que não tem a verdade ao seu lado, recorrem à oratória precisamente para provocar nos juízes algum sentimento que possa comovê-los à, conforme for a intenção do orador, condenar ou absolver o acusado. “O orador”, dizia Hume, “pela força de seu próprio gênio e eloquência, era o primeiro a deixar-se inflamar pela raiva, pela indignação, pela piedade e pela tristeza; e só então transmitia esses movimentos impetuosos à sua audiência”. [5]

Não se trata de persuadir o intelecto pela via da demonstração e da argumentação, mas tão somente de excitar no ouvinte sentimentos específicos, como ódio, emoção, compaixão, piedade, a depender do caso. Sexto Empírico também dizia que, “se os retóricos cressem na sua própria afirmação de possuir o poder de persuasão, eles não deveriam excitar piedade ou lamentação ou indignação, ou outros sentimentos desse tipo, coisas que não persuadem, mas pervertem as mentes dos juízes e obscurecem a justiça”. [6] Logo, trata-se realmente de uma arte cujo suposto proveito para a Justiça é no mínimo duvidoso.

Insistir nesse “morto-vivo” do Tribunal do Júri é inclusive deslocar o olhar das verdadeiras virtudes do júri para os seus aspectos mais negativos, dando então munição, por assim dizer, aos inimigos do júri, que costumam justamente desmerecer o júri por aspectos negativos que são muitos deles oriundos dessa oratória quase que “bufona” e “espalhafatosa”. Daí as críticas de que o júri seria um “teatro”, uma peça de museu, uma justiça de sorte etc. Todas elas críticas não à substância, mas à forma, ao aspecto exterior: e esse aspecto exterior é em boa parte ditado por essa mania de transformar o júri num palco para a vaidade de certos “aspirantes” a orador.

Spacca

A oratória hoje não forja Demóstenes e Cíceros por aí: ao contrário, muitos dos que pretendem revigorar essa moribunda arte acabam por engendrar uma desengonçada e insossa oratória, que em nada se aproxima do que ouvimos falar dos antigos. Longe de ser algo natural, espontâneo e apreciável, demonstram uma maneira de falar forçada, pseudo-eloquente e muitas vezes ininteligível, quando não irritante. E não apenas na forma, mas no conteúdo: não é apenas como falam, mas o que falam é também inoportuno e irrelevante.

Portanto, a oratória é, no seu aspecto intrínseco, negativa: é, com raríssimas exceções, uma arte de demagogos e falsários. É somente esta, no entanto, a crítica que se possa dirigir a ela? Na verdade, a verdadeira crítica que se deve endereçar a oratória não é nem tanto ao seu aspecto intrínseco. O que muitos deixam de reconhecer — e que é a crítica mais decisiva e certeira — é o aspecto temporal: a oratória foi a arte dos antigos, e somente deles. Não é para o nosso tempo. A oratória hoje não cumpre o papel que a justiça hoje reclama dos bons tribunos. A justiça de hoje, diz muito bem Giuriati, não é a da oratória: é a da simplicidade, vale dizer, hoje a arte forense mais apreciada e realmente útil para a justiça é “l’arte di dire bene tuttociò ch’è strettamente necessario” [7]. Quintiliano dizia ser ela “a ciência de se expressar bem”. [8]

Eloquência tem papel fundamental no tribunal

Aliás, em sendo o júri um juízo por juízes leigos, não deveria ser esse o verdadeiro papel do tribuno do júri: dizer o estritamente necessário em palavras simples para que esses simples e humildes — mas profundamente sábios e humanos — juízes possam fazer justiça? Não há como negar que a eloquência do tribuno exerce um papel fundamental e muitas vezes decisivo na transmissão dos fatos da causa para o jurado. E a palavra precisa ser penetrante e incisiva para gerar esse efeito no jurado. Penso, assim, que há ainda algo na oratória que pode ser útil e residualmente aproveitado. Trata-se de uma virtude específica da eloquência honesta.

Como lembra Jonathan Swift, ao discorrer sobre Demóstenes e Cícero, as duas grandes figuras imortalizadas pela arte da oratória, “o traço principal a ser lembrado é que o constante desígnio de ambos os oradores, em todos os seus discursos, era pugnar por algum ponto específico; fosse a condenação ou a absolvição de uma pessoa acusada, uma exortação à guerra, a observância de uma lei e outras coisas do gênero, que se determinava no ato, conforme o lado cujo orador predominasse”. [9] Schopenhauer tem a mesma percepção: “eloquência é a capacidade de despertar a nossa visão de uma coisa, ou a nossa disposição em face dela, também nas outras pessoas, de acender nelas o nosso sentimento sobre essa coisa e assim colocá-las num estado de simpatia conosco; tudo isso fazendo penetrar, por intermédio de palavras, a corrente dos nossos pensamentos em suas cabeças, com uma tal força que esta desvia o curso dos pensamentos próprios que as pessoas já haviam tomado e assim as faz seguir o curso dos nossos pensamentos.” [10]

Esta forma particular de oratória, que se distancia da retórica política e traiçoeira, a eloquência sincera, esta sim é um sinal distintivo de um bom tribuno. Se pensarmos que existem fatos, no júri, cuja percepção e entendimento pelos jurados se torna fundamental para a real compreensão do caso, fatos que precisam penetrar na alma do julgador para que ele possa julgar o caso com a profundidade que o caso merece, não posso senão admitir que a eloquência de um advogado ou de um promotor utilizada para fixar a atenção dos jurados a esses fatos é uma das melhores armas que acusação e defesa têm a seu dispor na arena judiciária. Essa utilidade da eloquência eu admito sem reservas.

Persuasão não é o objetivo

Mas é preciso uma correção: persuadir não é propriamente o objetivo da eloquência honesta, porque a persuasão pode ser obtida através de meios desonestos. Como ensina Carnelutti, a eloquência é mais precisamente “a arte de fazer compreender, o que é bem diferente da arte de persuadir” [11]. Muitos dirão: e qual é a diferença? Fazer compreender tem em vista o destinatário: quer-se que a ideia, correta e justa, que se encontra clara e viva em nossa mente seja transmitida e recebida da mesma maneira, clara e viva, para que o destinatário tome posse do que realmente existe de verdadeiro na causa; persuadir tem em vista o interesse exclusivo do orador, que é de seduzir para enganar, e não convencer, propriamente; busca-se atingir o destinatário com discursos sedutores e comoventes, para dar à razões fracas uma aparência imponente, apresentar aquilo que é incerto e talvez falso como algo comprovado, e obter a adesão do ouvinte através da fraude.

Muitos dirão: mas como se distingue um do outro, se os fenômenos são semelhantes, afinal, tanto um retórico sicofanta como um eloquente defensor/acusador se valem da oratória, da palavra falada, para se comunicar? Há um método infalível: veja se o tribuno em questão se utiliza de uma palavra mais rebuscada para dizer algo que poderia muito bem ser dito com a mais simples e precisa palavra. “Quanto mais dominardes a realidade de que falais”, diz muito bem Carnelutti, “tanto mais sereis capazes de exprimi-la claramente. A frase corpulenta serve para esconder, não para mostrar a verdade”. [12]

Poder das palavras

Um exemplo: se uma criança foi realmente jogada pela janela, aquele que diz a verdade proclama, mesmo apaixonadamente: “A criança foi jogada pela janela!” Jogada pela janela: qualquer um entende o que aconteceu. Agora se o cidadão em questão, nas entrevistas, no plenário e até por escrito, ao invés de usar desta simplicidade, se vale da expressão “A criança foi defenestrada pela janela…”, você pode estar seguro de que você está sendo enganado. A utilização de uma palavra totalmente desconhecida, no lugar de outra que absolutamente todos entenderiam, lhe confere um poder quase que místico, como diz Le Bon: “O poder das palavras está ligado às imagens que evocam e é completamente independente de seu significado real. Aquelas cujo sentido está mais mal definido possuem às vezes maior eficácia. (…). Elas evocam nas almas imagens grandiosas e vagas, mas a própria vaguidão que as torna imprecisas aumenta seu misterioso poder.” [13]

E assim o ouvinte incauto se “convence” de que a criança foi de fato “defenestrada” pela janela, mesmo que nem saiba o que a bendita palavra signifique… Por outro lado, aquele que é um eloquente transmissor da verdade, transmite-a com paixão, o que não significa transmiti-la elegante ou misteriosamente, mas simplesmente transmiti-la, e para isso a palavra mais simples se apresenta de imediato, como já alertava Jonathan Swift: “Quando as ideias de um homem são claras, as palavras mais adequadas geralmente se oferecem logo; e há de o próprio juízo dele orientá-lo sobre a ordem na qual as colocar, para que possam ser melhor entendidas.” [14]

Assim, se um tribuno não conseguir, ou melhor, não quiser transmitir os fatos da causa com simplicidade para os jurados, é porque talvez a simplicidade que os autos os revelam não o favoreça, e por isso ele se refugia na oratória para atingir os jurados por uma outra via.

O Tribunal do Júri precisa, mais do que nunca, potencializar as virtudes que ele carrega e, simultaneamente, se desfazer de usos e tradições que não apenas não o engrandecem mas o expõem à contínua pecha de tribunal anacrônico. Anacrônico ele jamais será; certos usos e costumes que ainda o impregnam talvez. Conservemos o valor residual da eloquência forense: a arte de se expressar bem, para o bem. A simplicidade, eterno e infalível sinal da verdade (simplex sigilum veri), é a arte por nascer no Tribunal do Júri, e o seu nascimento está subordinado ao tão esperado e tardio sepultamento de uma arte que teima em não se retirar desta para outra melhor…

 


[1] Ver: Fundamentos políticos do Tribunal do Júri: https://www.conjur.com.br/2021-mar-14/nadir-mazloum-fundamentos-politicos-tribunal-juri/; Irrecorribilidade da absolvição fundada no quesito genérico: https://www.conjur.com.br/2024-out-01/irrecorribilidade-da-absolvicao-fundada-no-quesito-generico/.

[2] SICILE, Diodore de. Bibliothèque historique, Tome premier, Troisième édition, Traduite de grec par Ferd. Hoefer, Paris: Hachette et Cie., 1912, p. 88.

[3] MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, Trad. Sérgio Milliet, São Paulo: Editora 34, 2016, p. 328.

[4] FILANGIERI, Gaetano. La scienza della legislazione, Volume terzo, Milano: Dalla società tipogr. de classici italiani, 1822, p. 275.

[5] HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários, Trad. Luciano Trigo, Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 216

[6] EMPÍRICO, Sexto. Contra os retóricos, Trad. Rafael Huguenin e Rodrigo Pinto de Brito, São Paulo: Unesp, 2013, p. 35.

[7] GIURIATI, Domenico. Come si fa l’avvocato, Livorno: Tipografia Di Raff. Giusti, 1897, p. 338.

[8] QUINTILIANO, Marcos Fábio. Instituição oratória, Tomo I, Trad. Bruno Fregni Bassetto, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015, p. 341.

[9] SWIFT, Jonathan. Panfletos satíricos, Trad. Leonardo Fróes, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 447.

[10] SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Segundo Tomo, Trad. Jair Barboza, São Paulo: Unesp, 2015, p. 143.

[11] CARNELUTTI, Francesco. Discursos sobre o Direito, Trad. Francisco José Galvão Bruno, São Paulo: Habermann Editora, 2009, p. 65. (itálico no original)

[12] Op. cit., p. 67.

[13] LE BON, Gustave. Psicologia das multidões, Trad. Mariana Sérvulo da Cunha, São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 98) (sem itálico no original)

[14] Panfletos satíricos…, p. 446.

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