Novos precedentes em matéria de deserdação: o estado atual da arte
9 de março de 2025, 8h00
Em coluna anterior, abordei as propostas de alteração do Código Civil, trazidas com o PLS 4/2025, no que tange à deserdação. Hoje pretendo apresentar o estado atual da arte na jurisprudência brasileira.
Os tipos legais da deserdação costumam receber interpretação literal, de excessivo rigor, como que propositadamente engendrada a obstar o ato de autonomia privada do testador. Daí porque a deserdação vem sendo corriqueiramente afastada quando “não restou comprovado que a ré dirigiu as ofensas descritas do item 5 do testamento público, violando a dignidade e a honra da autora da herança”[1], ao passo que “ofensas verbais e ajuizamento de ações para apropriação indevida do patrimônio da autora da herança” não caracterizam “as hipóteses de deserdação insculpidas no artigo 1.962, do Código Civil, em especial, a injúria grave prevista no inciso II do aludido dispositivo”[2]. Nem mesmo, o “distanciamento da filha pelos motivos por ela alegados em contestação, por mau relacionamento com a irmã, em cuja residência foi morar, não se equipara a desamparo, como previsto na Lei, que é de abandono material do ascendente com alienação mental ou grave enfermidade, que é relegado à mendicância, severas privações materiais ou vem a necessitar do auxílio de entidades assistenciais ou de terceiros para a subsistência, o que não ocorreu com o morto. Inteligência do inciso IV do art. 1.962 do Código Civil”[3].
Exige-se, com a máxima rigidez, do herdeiro instituído, ou daquele a quem aproveite a deserdação, provar a veracidade do motivo alegado pelo testador. E ausente prova de que o filho tenha realizado injúria grave contra o genitor, nem que houve abandono na ocasião de doença grave a amparar a pretensão, afasta-se o reconhecimento da deserdação.[4]
A jurisprudência começa a mudar
Entretanto, a jurisprudência vem começando a sinalizar que essa postura restritiva da liberdade testamentária perdeu a atualidade. No julgamento do Recurso Especial 1.943.848 – PR, o STJ flexibilizou os tipos legais do art. 1.814 do CC, tratado como uma “cláusula geral com raiz ética, moral e jurídica”, para equiparar o “ato infracional” ao homicídio doloso, para fins de exclusão por indignidade. O acórdão, sem modificar a taxatividade das hipóteses de exclusão da sucessão por indignidade, foi ao cerne do problema, ressaltando que “o fato de o rol do art. 1.814 do CC/2002 ser taxativo não induz à necessidade de interpretação literal de seu conteúdo e alcance, uma vez que a taxatividade do rol é compatível com as interpretações lógica, histórico-evolutiva, sistemática, teleológica e sociológica das hipóteses taxativamente listadas”. E adverte que se tal regra fosse “interpretada literalmente, prima facie, de forma irreflexiva, não contextual e adstrita ao aspecto semântico ou sintático da língua, induziria ao resultado de que o uso da palavra homicídio possuiria um sentido único, técnico e importado diretamente da legislação penal para a civil, razão pela qual o ato infracional análogo ao homicídio praticado pelo filho contra os pais não poderia acarretar a exclusão da sucessão, pois, tecnicamente, homicídio não houve”.
O voto prolatado pela Ministra Nancy Andrighi alcança a mesma conclusão que estou propondo para a interpretação dos artigos 1.962 e 1.963, no sentido de que as hipóteses de exclusão do herdeiro constituem “cláusula geral com raiz ética, moral e jurídica” e que “a diferença técnico-jurídica entre o homicídio doloso e o ato análogo ao homicídio doloso, conquanto relevante para o âmbito penal diante das substanciais diferenças nas consequências e nas repercussões jurídicas do ato ilícito, não se reveste da mesma relevância no âmbito civil, sob pena de ofensa aos valores e às finalidades que nortearam a criação da norma e de completo esvaziamento de seu conteúdo”.
Seguindo essa orientação, o TJDF decidiu que as situações enumeradas nos artigos 1.814, 1.962 e 1.963 do Código Civil “não podem ser interpretadas de forma restritiva, porque o legislador deixou à margem crimes ou ações tão ou mais graves quanto as previstas, tais como a tortura psicológica e o abandono imaterial e material de filhos portadores de doenças graves”[5].
A estrada hermenêutica inaugurada pelo STJ nos permite concluir que outros delitos contra a vida do autor da herança, além do homicídio doloso, suportariam a exclusão por indignidade, não se podendo cogitar, v.g., que autores de crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122, CP) ou de infanticídio (art. 123, CP) recebam heranças de suas vítimas.
No julgamento da Apelação Cível nº 1019208-41.2017.8.26.0071, por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo(TJSP) admitiu a deserdação de descendente por ascendente, em que foi apontada como causa deserdativa a negativa de prestação de assistência material. No caso, a ação de deserdação foi ajuizada pela irmã em face do irmão, com base em testamento público deixado pela genitora, em que foi mencionado o “desamparo emocional e constantes xingamentos ao longo dos anos e a falta de amparo (material) em momento de extrema necessidade em razão de grave enfermidade (câncer e metástase)”.
O desemparo foi comprovado pelo ajuizamento de ação de alimentos pela mãe contra o filho, havendo este contestado o pedido, questionando a dignidade e índole de sua própria mãe[6]. O TJSP, entre os fundamentos adotados, também destacou a ausência do deserdado no velório da genitora, o que evidencia o “seu desprezo por ela, o que é mais grave ainda quando se considera a origem nipônica do apelante, que inclusive morou no Japão, cuja cultura é mundialmente conhecida pelo respeito aos ancestrais, fato notório e que dispensa prova, desprezo este que justifica a violação do dever de solidariedade, que informa as relações familiares. Em suma, a respeitável sentença evidencia que a genitora estava gravemente enferma e em precárias condições financeiras, do que tinha plena ciência o apelante, o qual, mesmo contando com expressivos ganhos salariais, virou-lhe as costas, em lamentável conduta de desamor e desumanidade, em inequívoco desamparo material, bastante para a deserdação adequadamente reconhecida em primeiro grau”.
Em situação assemelhada, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da apelação nº 0318086-77.2016.8.21.7000, considerou possível o testador deserdar herdeiro necessário, pelo desamparo do ascendente por mais de 12 anos, que estava com enfermidade que lhe impossibilitava a locomoção. O deserdado havia contestado o pedido alegando que “não houve abandono e que sua genitora não estava em grave estado de alienação mental ou grave enfermidade, pois, do contrário, seria incapaz para testar”. No entanto, o TJRS validou como elementos probantes do desamparo, aptos a justificar a deserdação, colhidos a partir da farta prova testemunhal produzida ao longo do processo, os seguintes fatos: a) o deserdado “bebia e dizia palavras de calão para sua mãe”; b) mesmo quando a mãe ficou doente, o filho não a visitou; c) uma testemunha que estava no velório da testadora disse que o filho “soltou rojão no local”; d) “havia desavenças entre mãe e filho, e que este não visitava a mãe há 12 anos”. A conclusão da corte gaudéria foi a de que “de fato, houve abandono por parte de Osmar, que não mais teve contato com a mãe. Ilse, por sua vez, embora lúcida até a morte, estava doente, não podia mais caminhar”, ao passo que a autora da ação logrou comprovar “a existência de causa capaz de justificar o reconhecimento da deserdação levada a efeito pela de cujus”.
As decisões acima representam novos ventos a soprar na direção de privilegiar a autonomia privada do autor da herança, conferindo maior concretude ao seu direito fundamental de herança. E mais: a mudança de rumos na jurisprudência, ainda que insipiente, somente confirma que a atualização das hipóteses legais que autorizam a deserdação, tal como sugerido no PLS n. 4/2025, são tanto necessárias, como prementes, notadamente no que tange à inclusão do “abandono afetivo” como justificativa para que ascendentes e descendentes se excluam reciprocamente da sucessão, por meio do testamento. A aprovação do projeto, além de compatibilizar a legislação com o protagonismo atribuído ao afeto pelo Direito das Famílias, permitirá que o testador exclua da sua própria sucessão aqueles sujeitos cujos atos e ações denotem a inexistência de afetividade para com o autor da herança.
[1] . TJSP; AC 1005721-39.2016.8.26.0297; Ac. 12653409; Jales; Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto; Julg. 02.07.2019; DJESP 11.07.2019.
[2] . TJSP; AC 1007151-26.2016.8.26.0297; Ac. 12776097; Jales; Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto; Julg. 13.08.2019; DJESP 19.08.2019.
[3] TJSP; AC 1006541-98.2022.8.26.0248; Indaiatuba; Quarta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Alcides Leopoldo; Julg. 02/08/2024.
[4] TJRS; AC 0318086-77.2016.8.21.7000; Carazinho; Sétima Câmara Cível; Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnol; Julg. 09.11.2016; DJERS 14.11.2016.
[5] TJDF; APC 07212.99-22.2020.8.07.0001; Ac. 143.6925; Terceira Turma Cível; Relª Desª Fátima Rafael; Julg. 07/07/2022; Publ. PJe 28/07/2022.
[6] . Trecho do voto: “ (…) no momento em que poderia ter escolhido baixar a guarda, fazer as pazes com sua mãe e colocar de lado o tormento de seus traumas, optou o requerido por atacá-la, mesmo estando ela fragilizadíssima e estendendo-lhe a mão pedindo ajuda no momento agudo de seu câncer. Portanto, a contestação naqueles autos de alimentos é a prova, produzida pelo próprio requerido, de que ele desamparou sua genitora em grave enfermidade, completando os requisitos legais ( CC 1.962, IV)”.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!