Processo Tributário

Busca da verdade material e preclusão na etapa recursal no Carf

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9 de março de 2025, 8h00

No regular desempenho de suas atividades de fiscalização, a Receita Federal produz atos administrativos que têm repercussão no patrimônio do contribuinte, como é o caso de despacho decisório indeferindo pedidos de restituição/ressarcimento e/ou não homologando compensações declaradas, bem como autos de infração lavrados para formalizar a constituição de créditos tributários e aplicação de penalidades.

Regularmente notificado do despacho decisório ou do auto de infração, o contribuinte pode não impugnar o ato administrativo da Receita Federal, partindo para o pagamento ou parcelamento na hipótese de exigência de crédito tributário, ou apresentar defesa administrativa, cujo rito no âmbito federal é disciplinado pelo Decreto nº 70.235/1972, ou manter-se inerte e assumir os riscos decorrentes da inadimplência.

Com a apresentação da defesa administrativa, inicia-se o contencioso administrativo tributário no âmbito da administração pública federal, sendo assegurado ao contribuinte o direito à ampla defesa, compreendendo, evidentemente, a produção de prova documental, nos termos do inciso LV do artigo 5º da Constituição de 1988 [1] e do artigo 2º da Lei nº 9.784/1999 [2].

Em relação à produção de prova pelo contribuinte, o § 4º do artigo 16 do Decreto nº 70.235/1972 estabelece que “a prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual”, contudo, por motivos dos mais variados, pode ocorrer de o contribuinte não instruir a sua defesa administrativa com todos os documentos necessários e suficientes para comprovar, de plano, a improcedência da exigência fiscal.

Por isso assume importância o debate acerca da possibilidade de o contribuinte apresentar prova documental após a impugnação, a partir da etapa recursal ao Carf [3].

No âmbito do Carf, a preclusão é matéria controvertida, existindo entendimento que admite a apresentação de novos documentos após o protocolo da defesa administrativa, desde que a infração fiscal tenha sido impugnada pelo contribuinte [4], com o qual concordamos, pois, a rigor, a prova apresentada a posteriori objetiva justamente complementar o acervo probatório e corroborar as alegações de defesa; e posições [5], a nosso ver, muito restritivas, que permite a apresentação de novos documentos após a impugnação, desde que o contribuinte comprove a ocorrência de uma das situações previstas nas alíneas “a”, b” e “c” do §4º do artigo 16 do Decreto nº 70.235/1972 [6].

Contudo, a partir de uma interpretação sistemática da Constituição de 1988 e da legislação de regência, somada ao objetivo do processo administrativo tributário federal (busca da verdade material [7]) e à própria função desempenhada pelo Carf (resolução de conflitos e controle de legalidade do crédito tributário), entendemos razoável sustentar que os documentos apresentados pelo contribuinte após o protocolo da impugnação devem ser analisados na instância recursal, independentemente dos critérios fixados no artigo 16 do Decreto nº 70.225/1972, mas desde que a infração fiscal tenha sido refutada na defesa administrativa.

É importante destacar que a própria legislação prevê hipótese de produção de prova após o protocolo da impugnação, pois o artigo 18 do Decreto nº 70.235/1972 [8] reconhece a possiblidade de juntada de novos elementos de prova no processo administrativo em diligências ou perícias determinadas de ofício pela autoridade julgadora de 1ª instância ou a requerimento do contribuinte.

Ainda que não houvesse tal autorização normativa, a nosso ver, os princípios da ampla defesa e da busca da verdade material asseguram o direito do contribuinte de, voluntariamente, apresentar novos documentos após o protocolo da sua impugnação. Mesmo que estes documentos não sejam analisados pela decisão de primeira instância administrativa, eles permanecerão nos autos e serão remetidos para apreciação pelo órgão de julgamento de segunda instância administrativa (Carf), consoante o § 6º do artigo 16 do Decreto nº 70.235/1972 [9], reconhecendo que o recurso devolve ao tribunal ad quem todas as provas dos autos.

Nos termos do inciso II do artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972 [10] e do artigo 1º da Portaria MF nº 1.634/2023 [11], o Carf é o órgão de julgamento do contencioso tributário federal que desempenha a função de analisar os recursos interpostos contra decisões proferidas no ambiente do processo administrativo federal, realizando o controle de legalidade do crédito tributário em discussão. Nesse aspecto, e como também reconhecido pela doutrina [12], atipicamente, o Carf exerce a função estatal de aplicar o direito positivo e resolver o conflito de interesses submetido à sua apreciação.

No desempenho dessas funções, tendo em vista o efeito devolutivo do recurso e a necessária busca pela verdade material no processo administrativo, as provas do contribuinte devem ser apreciadas pelo Carf, mesmo que apresentadas após a impugnação. É o que está posto na legislação de regência do processo administrativo tributário federal.

Solução incompatível com a eficiência

O não conhecimento de provas apresentadas pelo contribuinte após a impugnação, especialmente quando a sua apreciação pode influir na formação de convicção dos julgadores e conduzir a um julgamento mais próximo da realidade factual no Carf, é medida que atenta contra os princípios da ampla defesa e da verdade material, mitigando o controle de legalidade do crédito tributário, quiçá a solução do conflito com efetividade.

Ora, o artigo 37 da Constituição de 1988 determina a observância do princípio da eficiência pela administração pública na produção de seus atos. Assim, a não apreciação de provas pelo Carf, simplesmente porque não foram apresentadas na primeira etapa do processo administrativo, é solução incompatível com a eficiência esperada de um órgão jurisdicional, pois tal postura pode resultar na manutenção de um crédito tributário desprovido de validade, com a consequente imposição de ônus tributário indevido sobre o contribuinte e a necessidade de judicialização de questão que poderia ter sido resolvida no ambiente administrativo.

Dessa forma, não temos dúvida em afirmar que o instituto da preclusão não pode representar um óbice para o amplo debate no Carf acerca das provas dos autos e o efetivo controle de legalidade do crédito tributário, de modo que na etapa de julgamento de recurso todas as provas devem ser analisadas.

 


[1] Art. 5º. (…)

LV- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[2] Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

[3] Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

[4] Processo Administrativo nº 16327.000819/2004-66, v. Acórdão nº 9101-005.998, 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, Redatora Designada Conselheira Edeli Pereira Bessa, sessão de julgamentos de 11/02/2022, acesso em 17/01/2025 no site https://carf.economia.gov.br)

[5] Processo Administrativo nº 10805.002315/2004-11, v. Acórdão nº 9303-012.868, 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, Relator Conselheiro Jorge Olmiro Lock Freire, sessão de julgamentos de 16/02/2022, acesso em 17/01/2025 no site https://carf.economia.gov.br)

[6] Art. 16. A impugnação mencionará:

(…)

§ 4º A prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual, a menos que:

a) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior;

b) refira-se a fato ou a direito superveniente;

c) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos.

[7] “A busca pela verdade material é princípio de observância indeclinável da Administração tributária no âmbito de suas atividades procedimentais e processuais. Deve fiscalizar em busca da verdade material; deve apurar e lançar com base na verdade material. (…) no procedimento e no Processo Administrativo Tributário a autoridade administrativa pode e deve promover as diligências averiguatórias e probatórias que contribuam para a aproximação com a verdade objetiva ou material.” – MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro: administrativo e judicial. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 11ª edição, 2018, p. 180-181.

[8] Art. 18. A autoridade julgadora de primeira instância determinará, de ofício ou a requerimento do impugnante, a realização de diligências ou perícias, quando entendê-las necessárias, indeferindo as que considerar prescindíveis ou impraticáveis, observando o disposto no art. 28, in fine.

[9] Art. 16. (…)

§ 6º Caso já tenha sido proferida a decisão, os documentos apresentados permanecerão nos autos para, se for interposto recurso, serem apreciados pela autoridade julgadora de segunda instância.

[10] Art. 25.  O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:

(…)

II – em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial.

[11] Art. 1º O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda (RFB).

[12] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. 1ª edição. São Paulo: Editora Noeses, 2020, p. 41.

MUSSOLINI JÚNIOR, Luis Fernando. Processo Administrativo Tributário – Das Decisões Terminativas Contrárias à Fazenda Pública. São Paulo: Editora Manole, 2004, pp. 11-12.

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