Opinião

Valoração da prova: o papel do juiz humano na era da inteligência artificial

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8 de março de 2025, 6h08

No clássico da ficção científica “Blade Runner” (1983), uma empresa chamada Tyrrel fabrica humanoides tão perfeitos que se tornam quase indistinguíveis dos seres humanos. Para diferenciar esses “replicantes” dos humanos genuínos, é utilizado o teste Voight-Kampff, que mede respostas emocionais a perguntas provocativas. Este teste baseia-se em uma premissa fundamental: a capacidade de sentir empatia é o que nos define como humanos.

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Esta metáfora cinematográfica nos leva a uma questão atual e pertinente: na era da inteligência artificial generativa, que produz textos cada vez mais sofisticados e aparentemente “humanos”, qual seria o equivalente jurídico do teste Voight-Kampff? O que separa fundamentalmente o raciocínio jurídico humano daquele produzido por máquinas?

A resposta está em um elemento essencial da atividade jurisdicional: a valoração. As IAs generativas, como o ChatGPT, produzem textos a partir de unidades básicas chamadas “tokens”, utilizando modelos treinados para prever e selecionar o próximo termo com base no contexto precedente [1]. Seu raciocínio é probabilístico, posicionando termos em uma nuvem de palavras para oferecer um texto coerente. Porém, não há consciência nem valoração na significação do mundo.

Do ponto de vista formal, valorar é qualificar uma possibilidade de escolha de acordo com a finalidade envolvida. A valoração sempre implica a adjetivação daquilo que se está valorando: positivo ou negativo, adequado ou inadequado, bom ou ruim. Quando analisamos a valoração de forma mais profunda, percebemos que ela possui uma dimensão subjetiva e outra objetiva. A dimensão subjetiva relaciona-se com as emoções, sentimentos, desejos e crenças individuais do sujeito que valora, enquanto a dimensão objetiva vincula-se a critérios compartilhados socialmente, presentes nos referenciais culturais e sistemas de referência científicos. É precisamente a dimensão subjetiva da valoração que mais caracteriza o ser humano, pois reflete a singularidade de cada indivíduo, sua história pessoal e suas experiências únicas [2]. Esta capacidade de valorar subjetivamente, conectando emoções e racionalidade, é o que distingue fundamentalmente o juízo humano da análise probabilística realizada por inteligências artificiais.

Esta distinção é crucial quando pensamos na atividade jurisdicional de valoração da prova, um processo fundamentalmente humano que envolve não apenas lógica, mas também intuição, experiência vivida e consciência moral.

O que são provas e como as valoramos?

Provas são meios materiais que presentam ou representam coisas e acontecimentos. Presentar é trazer à presença a própria coisa; representar é apresentar meios materiais que simbolizam ou retratam coisas e acontecimentos. Mas não basta apresentar evidências. É preciso demonstrar que elas são ou foram de determinada maneira, o que demanda valoração.

As provas possuem dois objetivos fundamentais: demonstrar que os acontecimentos ocorreram ou que as coisas existem; e demonstrar que ocorreram ou existem de determinada maneira. Para atender ao primeiro objetivo, utilizamos três categorias de provas: material (quando a própria coisa é trazida à presença), evidências (representações da coisa) e indícios (outras coisas admitidas que permitem deduzir sobre o objeto da questão) [3].

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Quanto ao segundo objetivo, é necessário fazer com que o intérprete adira aos conceitos propostos por quem formula a prova. É neste ponto que entra a valoração — um processo genuinamente humano de atribuir significado e peso às evidências apresentadas, sempre influenciado tanto por elementos subjetivos (a história pessoal do julgador, suas crenças e emoções) quanto por aspectos objetivos (os referenciais culturais e sistemas compartilhados).

Imagine um caso em que um documento assinado é apresentado como prova da existência de um contrato de empréstimo. O documento, por si só, comprova a existência física do contrato (primeiro objetivo da prova). Contudo, para demonstrar que este contrato representa efetivamente um empréstimo e não uma doação dissimulada (segundo objetivo), o advogado precisa fazer com que o juiz adira ao conceito de “empréstimo” como uma transação que pressupõe obrigação de devolução. Para isso, apresenta extratos bancários mostrando pagamentos parciais, e-mails trocados entre as partes mencionando “parcelas” e “quitação”, além de testemunhas que confirmam as conversas sobre devolução do valor. Ao valorar esse conjunto probatório, o juiz conectará sua experiência pessoal sobre relações de empréstimo (dimensão subjetiva) com os critérios jurídicos que diferenciam empréstimos de doações (dimensão objetiva), atribuindo significado e peso a cada evidência para concluir se o documento representa realmente um contrato de empréstimo ou se encobre uma doação.

A valoração da prova é um juízo de adequação entre a imagem produzida pela significação da prova e o fato contido na hipótese fática da norma. Ao valorar, o juiz dá peso à prova, determinando se ela é capaz de provar a verdade além de qualquer dúvida razoável, de forma clara e convincente, de maneira indiciária, ou se não é capaz de falar sobre a verdade do mundo.

Esse processo de valoração, contudo, não é uniforme. Ele varia conforme diferentes concepções filosóficas [4] sobre a verdade que, mesmo inconscientemente, orientam o raciocínio do julgador.

Três visões filosóficas sobre a verdade e a prova

  • O realismo: a verdade está nas coisas

Na concepção realista, a verdade está nas coisas e nos acontecimentos, não na mente humana. Os conceitos apenas refletem a essência natural dos objetos e eventos. A verdade é descoberta por correspondência, adequando as provas aos conceitos que naturalmente emergem delas.

Para um juiz realista, a melhor prova é aquela que “fala por si mesma”. A confissão do criminoso, as mãos calejadas do trabalhador rural, uma minuta de decreto declarando estado de sítio encontrada na residência de um acusado de conspiração. Todas são provas que, intuitivamente, revelam uma verdade considerada auto-evidente. O processo de valoração é predominantemente intuitivo, baseado no senso comum e nas crenças compartilhadas socialmente.

Quando um juiz associa automaticamente características físicas ou comportamentais a determinados papéis sociais (“mãos calejadas = trabalhador rural”, “comportamento nervoso = culpado”), ele está operando dentro de uma lógica realista, onde os significados são considerados inerentes às coisas observadas. Esta abordagem, embora objetiva em sua pretensão, é profundamente influenciada por elementos subjetivos que o julgador frequentemente não reconhece como tal.

  • O racionalismo: a verdade está na mente

Para os racionalistas, embora a verdade continue sendo resultado da subsunção entre realidade e conceitos, estes não são projeções das essências das coisas, mas construções humanas elaboradas metodicamente. O foco desloca-se das coisas para a mente humana e sua capacidade de produzir conceitos racionais.

Um juiz racionalista valoriza mais a demonstração racional e metodológica do que a intuição. Para ele, não basta que as provas “falem por si”. É preciso que sejam analisadas à luz de conceitos cientificamente estabelecidos. Um laudo pericial bem fundamentado tem mais peso que uma confissão, um exame toxicológico é indispensável para comprovar a natureza de uma substância entorpecente.

A valoração racionalista busca objetividade através do método, privilegiando conceitos formulados cientificamente sobre aqueles derivados do senso comum. Contudo, mesmo essa abordagem aparentemente objetiva não escapa da dimensão subjetiva da valoração, pois a própria escolha dos métodos e teorias científicas a serem aplicados já envolve um juízo de valor influenciado pela formação, experiências e preferências do julgador.

  • A filosofia da linguagem: a verdade está no discurso

Na perspectiva da filosofia da linguagem, a verdade não se encontra nem nas coisas nem na mente isoladamente, mas no discurso que constrói a realidade. Provas são fragmentos de narrativas compostas por proposições, e estas são formuladas através da linguagem para falar sobre linguagem, já que toda realidade é, em última análise, linguística.

Esta visão reconhece que a valoração probatória ocorre em várias camadas de linguagem, cada uma com sua verdade hermenêutica (processo de significação) e argumentativa (construção do discurso). O “relato vencedor” é aquele que prevalece pelo consenso ou pelo poder de convencimento.

Um juiz que opera nessa visão está consciente de que a verdade judicial é construída através de disputas narrativas. Ele reconhece que a forma como um perito descreve seu achado técnico, como uma testemunha narra os fatos ou como um advogado articula sua tese são todas camadas de linguagem que constroem, mais do que revelam, a verdade. Esta abordagem reconhece explicitamente a intersubjetividade inerente ao processo jurídico e como os elementos subjetivos de todos os participantes — inclusive do juiz — contribuem para a construção do que será considerado “verdadeiro” no processo.

O standard de prova como conceito filosófico

Quando se fala em “standard de prova”, estamos abordando a qualidade da prova segundo sua aptidão para demonstrar a verdade [5]. Porém, este conceito ganha contornos muito diferentes conforme a visão filosófica adotada.

Para os realistas, o standard de prova está associado a verdades essenciais que devem ser descobertas intuitivamente. “Fatos notórios não precisam ser provados” é um exemplo de standard realista, pois assume que certas verdades são auto-evidentes, embora essa suposta objetividade frequentemente mascare preferências e valores subjetivos.

Para os racionalistas, o standard depende do grau de racionalidade na formulação dos conceitos utilizados. “A prova técnica é indispensável quando a matéria demandar conhecimento especializado” exemplifica essa visão, ao priorizar o conhecimento científico sobre o senso comum. Mesmo aqui, a escolha de quais métodos científicos são válidos e quais não são revela a dimensão subjetiva operante.

Já na filosofia da linguagem, o standard de prova é compreendido como mais um argumento retórico — uma construção discursiva que busca legitimar determinada valoração probatória. Não é algo objetivo a ser descoberto, mas um elemento constitutivo da narrativa judicial, profundamente influenciado pela intersubjetividade dos participantes do processo.

A subjetividade inevitável e suas armadilhas

Em todas as abordagens, há espaço para a subjetividade moldar o processo de valoração. No realismo, os conceitos do senso comum são vulneráveis a vieses pessoais; no racionalismo, mesmo o método científico pode ser permeado por ideologias e interesses; na filosofia da linguagem, o próprio discurso pode ser manipulado retoricamente.

Essa subjetividade é inerentemente humana e se manifesta através de interesses, emoções, sentimentos, paixões e vieses cognitivos. Ela tanto enriquece quanto complexifica o processo de valoração probatória, sendo simultaneamente uma vulnerabilidade e uma fortaleza da atividade judicial. É precisamente esta subjetividade inerente que dá ao julgamento humano sua riqueza e profundidade, permitindo considerações que vão além da mera aplicação mecânica de regras.

IA e valoração: uma impossibilidade epistêmica?

Retornando à nossa metáfora inicial, podemos agora compreender melhor o abismo que separa o raciocínio jurídico humano daquele produzido por máquinas. A IA generativa, por mais sofisticada que seja, opera exclusivamente no âmbito da probabilidade linguística, sem verdadeira capacidade valorativa.

A construção da verdade judicial, seja no realismo, racionalismo ou na filosofia da linguagem, envolve sempre um intenso processo de valoração e interpretação que é inerente ao trabalho humano. A IA, embora possa auxiliar na organização e análise de dados, não possui capacidade intuitiva nem valorativa para justificar as opções de significação do mundo.

Essa incapacidade não se deve apenas a limitações técnicas atuais, mas a uma impossibilidade epistêmica mais profunda: as IAs não possuem experiências vividas, emoções genuínas ou história pessoal que possam informar um processo de valoração autenticamente subjetivo. Elas podem simular valorações baseadas em padrões identificados, mas não podem realmente valorar no sentido humano do termo.

Como diz o slogan da Tyrrel Corporation em Blade Runner: “More human than human is our motto” (Mais humano que humano é nosso lema). Porém, por mais perfeita que seja a emulação, sem a capacidade valorativa que caracteriza o raciocínio jurídico humano, teríamos apenas um “iudicium ex machina” — um julgamento pela máquina, desprovido da essência que fundamenta a função jurisdicional.

Conclusão: o valor do juízo humano

A valoração da prova, embora sujeita a subjetividades e imperfeições, representa um processo fundamentalmente humano de atribuição de significado ao mundo. Este processo ocorre de maneira diferente conforme a visão filosófica adotada, mas sempre demanda uma capacidade intuitiva e valorativa que as IAs simplesmente não possuem.

O juiz humano, ao contrário da máquina, não apenas analisa probabilidades linguísticas, mas compreende o significado profundo das narrativas apresentadas, valora as provas conforme sua experiência e intuição, e pode justificar suas escolhas interpretativas para além da mera coerência textual. Esta valoração, em sua dimensão subjetiva, é o que permite a empatia, a consideração de circunstâncias únicas, e a aplicação de princípios de justiça que transcendem a literalidade das normas.

É nesta capacidade valorativa, neste “teste Voight-Kampff” do raciocínio jurídico, que reside a distinção fundamental entre o juízo humano e o processamento de dados por inteligência artificial. Por mais que as máquinas possam produzir textos elegantes e logicamente coerentes, a valoração da prova — este processo essencialmente intuitivo, experiencial e moral — permanece uma atividade inescapavelmente humana.

Afinal, como nos lembra Blade Runner, não é a aparência de humanidade que define o ser humano, mas sua capacidade de empatia e valoração moral — justamente aquilo que, no âmbito jurídico, se traduz na valoração da prova e na construção humana, demasiado humana, da verdade judicial.

 


[1] MOLLICK, Ethan. Co-Intelligence: living and working with AI. New York: Penguim, 2024.

[2] BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define uma decisão judicial e quais os limites do juiz? São Paulo: Noeses, 2017.

[3] Na doutrina tradicional, é comum falar em prova direta e indireta. Acerca do tema, consultar Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário: São Paulo, Noeses, 2015, Capítulo 4. Ela faz referência à classificação de Moacyr Amaral Santos, Magalhães Noronha, Arruda Alvim e Francesco Carnelutti.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2018.

[5] DAMASCENO, Fernando Braga. Direito probatório. São Paulo: Tirant lo blanch, 2023.

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