AMBIENTE JURÍDICO

As lições do último relatório da ONU sobre desastres para o RS

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8 de março de 2025, 12h00

O Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2024 enfrentou o maior desastre climático de sua história consubstanciado em enchentes que deixaram milhares de pessoas desalojadas, centenas de mortos, gerando um prejuízo ambiental, social e econômico calculado em bilhões de dólares.

O resultado, de acordo com o INPE, atingiu uma dimensão catastrófica, e o Estado teve 478 de seus 497 municípios afetados, com mais de 500.000 desalojados/desabrigados e quase 200 óbitos. Os acumulados de chuva em apenas 3 dias superaram 600 mm em alguns municípios e uma ampla área do Estado registrou precipitações superiores a 400 mm(INPE, 2024,p. 69).

Tal evento foi resultado de uma combinação de sistemas meteorológicos atuantes em diferentes escalas. Em maior escala, a atuação do El Niño, ainda segundo o corpo técnico do INPE, contribuiu para a intensificação do fluxo baroclínico na troposfera média e favoreceu episódios de precipitações acima da média no Sul do Brasil. Além disso, o Oceano Atlântico tropical também encontrava-se mais aquecido em relação a sua média climatológica, o que elevou o conteúdo de umidade disponível. Na escala sinótica, um bloqueio atmosférico estabelecido em latitudes médias no Oceano Pacífico colaborou para a manutenção de uma condição de elevada instabilidade atmosférica sobre o Rio Grande do Sul(INPE, 2024,p. 71).

Ao longo do período de chuvas intensas prevaleceu uma circulação intensa associada ao Jato de Baixos Níveis com transporte de ar quente e úmido da região amazônica direcionado principalmente para o Estado do Rio Grande do Sul. Em médios níveis, a presença de um cavado de onda longa favoreceu a formação de sistemas de baixa pressão na superfície. Por fim, o avanço e a interação de frentes frias com essa massa de ar mais quente e úmido contribuíram para episódios de tempestades severas, com registros de vendavais, tornados e de queda de granizo em várias localidades do Rio Grande do Sul(INPE, 2024,p. 72).

Foi publicado igualmente relatório conjunto produzido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),  pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e pelo Grupo Banco Mundial, em parceria com diversas entidades do Sistema das Nações Unidas que trouxe uma avaliação técnica dos prejuízos e  das perdas causadas pelas inundações. O relatório foi produzido por uma equipe técnica composta por mais de 40 profissionais, muitos deles in loco, para coletar dados, combinados com imagens captadas por satélites e outros materiais para compor um panorama independente e robusto para 13 setores (educação, saúde, cultura, habitação, população afetada, água potável, transportes, setor elétrico, agricultura, alojamento e restaurantes, comércio,  pecuária, indústria e meio ambiente) (CEPAL, BID, 2024, p. 86).

O estudo foi elaborado com base em uma metodologia internacionalmente consagrada para Avaliação de Perdas e Danos  (DaLA, na sigla em inglês) de desastres, desenvolvida pela CEPAL, e este estima em R$ 88,9 bilhões os prejuízos  causados pelas cheias no Rio Grande do Sul, dos quais 69% (R$ 61 bilhões) correspondem ao setor produtivo, 21% aos setores sociais (R$ 19 bilhões); 8% à infraestrutura (R$ 7 bilhões); e 1,8% ao meio ambiente (R$ 1,6 bilhão) (CEPAL, BID, 2024, p. 87).

Neste cenário, o GAR Special Report 2024: Forensic Insights for Future Resilience: Learning from Past Disasters, publicado recentemente pelo United Nations Office for Reduction Risk, tem muito a nos ensinar.  Este não aborda apenas a questão da ocorrência de fenômenos de perigo, daí o seu caráter inovador. Também não estabelece se os fenômenos de risco estão se tornando mais frequentes e extremos. Afinal, a comunidade científica está de acordo que as alterações climáticas irão agravar o cenário de emergência climática atual. Em vez de focar nesses assuntos, como é costumeiro em relatórios do estilo, os seus autores já focam os seus esforços intelectivos na possibilidade de limitação dos danos causados pelos  inevitáveis desastres.

O relatório assim adotou uma metodologia de análise forense de catástrofes, na análise de dez estudos de caso. O relatório GAR2024 analisa os principais elementos de perigo, vulnerabilidade e exposição, tanto das pessoas quanto dos sistemas de governança. Ele demonstra não apenas como esses elementos contribuiram para grandes catástrofes recentes, como por outro lado puderam reduzir riscos se observados em tempo. O texto indica também quais as medidas podem limitar os impactos dos desastres. Evidentemente, os cientistas, antes de mais nada, pretendem evitar originalmente a ocorrência das catástrofes. Todavia, em um cenário de riscos complexos e múltiplos como o atual, o passado deixa de ser um guia confiável para o futuro, embora existam lições importantes a aprender e assimilar.

A compreensão exata dos componentes de riscos de catástrofes é, por conseguinte, crucial para evitar desastres no futuro. É necessário observar a mecânica dos riscos passados e presentes, bem como as suas variadas formas. A identificação dos perigos, por sua vez, expõe a vulnerabilidade existente demonstrada pelas interações entre as instituições, a economia e os ecossistemas.

Só através desta compreensão é que se pode identificar as opções técnicas e práticas a disposição dos tomadores de decisão para uma mais segura alocação dos  investimentos humanos e econômicos disponíveis capazes de tornar os sistemas mais resilientes.

Um único evento em um desastre pode gerar interações de fatores físicos, socioeconômicos e institucionais que, em conjunto, contribuem para o chamado risco sistêmico, ou risco catastrófico. Ao se observar as várias linhas de evidências e narrativas, a análise forense simplifica a tarefa de compreender, analisar e abordar esses fatores. Deste modo, o risco sistêmico torna-se passível de gestão. A referida análise deve se dar de modo transdisciplinar, não se fundamentando apenas em disciplinas acadêmicas tradicionais. Em vez disso, as percepções serão derivadas de uma variedade de parceiros públicos, privados e da sociedade civil em diversos setores, incluindo o planejamento espacial e o transporte, bem como a gestão pontual dos desastres. As autoridades governamentais, as comunidades e os cidadãos também devem estar envolvidos nesta séria e árdua tarefa.

De fato, os estudos forenses demonstram claramente a necessidade de governança multidisciplinar, especialmente quando os riscos globais ou regionais se manifestam em nível local.

Eles fornecem uma abrangência de evidências para a governança pública territorial, que é mais ampla do que a realizada por setores privados, abrangendo processos como o de planejamento, o de uso da terra, o de gestão de recursos naturais e o de construção de uma infraestrutura resiliente. A análise forense identifica oportunidades para alinhar a governança em várias jurisdições e interesses. O imperativo é compreender e atuar sobre os fatores de risco interdependentes e multidimensionais que incidem em escalas geográficas e temporais. Para tanto, destacam-se as recomendações principais do aludido relatório:

  1. Adoção de medidas para reduzir a vulnerabilidade e a exposição aos perigos com antecedência: Tal conduta auxilia na mitigação do impacto de eventos de risco mais intensos ou dos impactos cumulativos de eventos menores.
  2. Uso e análise forense para entender como os desastres afetam pessoas, territórios e a prosperidade, aproveitando esse conhecimento para orientar ações de redução de riscos: Assim, nos locais onde os serviços de infraestrutura natural estão presentes, embora estes sejam afetados por riscos mais intensos e em cascata, deve ser aumentada a resiliência, associando soluções baseadas na natureza.

É evidente, portanto, que a adoção de uma versão forte do princípio da precaução(WEDY, 2020, p. 170), com uma perspectiva antidesastre, em relação a todas as áreas verdes do Estado do Rio Grande do Sul (em especial na Grande Porto Alegre,  no Vale dos Sinos, no Vale do Taquari), às  áreas de proteção permanente, às bacias hidrográficas, às dunas, à vegetação litorânea (com a finalidade de conter o avanço do Oceano Atlântico e as mais frequentes e fortes ressacas) e aos licenciamentos ambientais realizados(em especial aqueles que podem ter reflexos direto sobre as populações mais vulneráveis) é medida que deve ser adotada com o máximo rigor. Além, é claro, adicionalmente,  são necessários substanciais investimentos em medidas para o fortalecimento de um conceito amplo e holístico de resiliência a ser adotado pelo Poder público (no âmbito dos três poderes), pela iniciativa privada e pela sociedade civil como um todo.

São exemplos destas ações precautórias e preventivas sugeridas, igualmente em um sentido conceitual e amplo: a- a prevenção das enchentes; b- a preservação de florestas costeiras para proteção contra tempestades e erosões; c- o aumento da  qualidade e a padronização das informações com a inclusão de dados que englobem fatores sociais e ambientais; d- a aplicação de metodologias eficazes no planejamento setorial e de uso da terra.

Todos esses são componentes essenciais para reduzir o risco de desastres. A qualidade das informações sobre riscos e desastres também é fundamental. Este estilo de informações melhorou consideravelmente nas últimas três décadas, com o avanço tecnológico e o emprego da inteligência artificial, mas ainda há muito a ser desenvolvido e incrementado para uma disseminação informacional dos riscos com uma qualidade de excelência (WEDY; HUPFFER; WEYERMÜLLER, 2024, p. 10).

É preciso construir alianças e parcerias entre setores, incluir os  públicos e privados neste debate, e não realizar exclusões arbitrárias e não justificadas sob o aspecto científico e moral. É importante treinar indivíduos para atuar em alianças e na sociedade civil, incluindo organizações não governamentais, bem como outros grupos ou redes organizadas. A sociedade civil  reúne  desde profissionais de diversos setores, até comunidades, grupos indígenas, mulheres, migrantes, pessoas com deficiência e outros grupos vulneráveis. É possível que governo e sociedade promovam  o gerenciamento proativo e prospectivo de riscos, bem como de atividades vitais pós-desastre.

Em relação aos chamados sistemas de alerta antecipado, estes devem se concentrar nas prováveis falhas dos principais nós e amortecedores do sistema (lato senso) para uma efetiva e não fictícia proteção contra possíveis desastres. Para isto mister é utilizar ciclos de aprendizagem contínuos, deliberativos e acelerados, que são fundamentais para a redução eficaz do risco sistêmico. Isso requer colaboração com especialistas e comunidades locais, ouvindo-os e trabalhando em conjunto, jamais os excluindo.

É preciso implementar sistemas que meçam e aprendam com os desastres (com o auxílio da inteligência artificial e da ciência da atribuição), para que as lições do passado possam ser observadas de modo proativo no futuro. É importante haver agilidade e mobilidade no processo de tomada de decisão que não pode ser realizado de modo pobre e retórico, os players devem alterar a direção à medida que surgirem novos conhecimentos,  tecnologias e parceiros capacitados e com expertise. A resiliência será vital para que as gerações futuras sustentem seu desenvolvimento e bem-estar. Trata-se a resiliência de  um conceito central para a engenharia, para as economias, para os ecossistemas,  para o desenvolvimento social e para o bem-estar, e ela precisa ser internalizada.

Talvez seja tão importante quanto isso o fato de que uma grande quantidade de infraestrutura e serviços está sendo (re)construída no momento no Estado do Rio Grande do Sul, oferecendo uma boa oportunidade para desenvolver a resiliência e reduzir riscos presentes e futuros. É essencial que o Estado e a iniciativa privada estejam preparados para a construção do futuro (até a curto prazo em um horizonte histórico, como 2100, marco no qual os objetivos do Acordo de Paris devem ser alcançados), aproveitando a tecnologia e os dados para haver a necessária antecipação não apenas aos riscos de desastre, mas também de catástrofe. Outrossim,  as boas oportunidades para a desacarbonização da economia e para a edificação de uma sociedade marcada por um ambiente limpo e um sistema climático estável, que bem gerencie as incertezas, se faz fundamental e é um imperativo imposto pela nossa Gaia, nossa mãe Terra.

O relatório GAR2024, elementar para um debate preliminar para quem pretende tratar sobre o tema desastre e catástrofe climática nos dias atuais, bem analisa o presente e as tendências atuais e futuras. Mostra como a análise forense pode permitir uma redução de riscos mais eficaz e direcionada O relatório incentiva, portanto, a aplicação de abordagens semelhantes pelos responsáveis pela gestão de riscos que são justamente os gestores, tomadores de decisão, os profissionais de desenvolvimento e os pesquisadores.  Todos devem aprender com os desastres nos próprios contextos locais para reduzir os riscos imediatos e sistêmicos. É de se esperar que os governos e a iniciativa privada observem o aludido relatório com sabedoria e humildade, e vejam que este momento é oportuno para incorporar a resiliência em atuais e futuras cidades e comunidades (UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION, 2024).

BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. BID, CEPAL e Grupo Banco Mundial estimam que atuação tempestiva evitou impacto de 1,1 ponto percentual do PIB no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://www.iadb.org/pt-br/noticias/bid-cepal-e-grupo-banco-mundial-estimam-que-atuacao-tempestiva-evitou-impacto-de-11-ponto. Acesso em: 20.02.2025.

Disponível em: https://www.iadb.org/pt-br/noticias/bid-cepal-e-grupo-banco-mundial-estimam-que-atuacao-tempestiva-evitou-impacto-de-11-ponto. Acesso em: 20.02.2025.

DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos Desastres e Compensação Climática no Brasil. São Paulo: Lumen Juris, 2019.

ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REDUÇÃO DO RISCO DE DESASTRES. Estrutura de Sendai para Redução do Risco de Desastres. Disponível em: https://www.unisdr.org/we/coordinate/sendai-framework. Acesso em: 10.01.2020.

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WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres). 3a. ed. revista, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

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WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023.

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WEDY, Gabriel; HUPFFER, Haide Maria; WEYERMÜLLER, André Rafael (org.). Direito e inteligência artificial: perspectivas para um direito ecologicamente sustentável. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024.

Autores

  • é juiz federal, professor do PPG e Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Escola Superior da Magistratura Federal. Pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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