A materialidade na decisão de pronúncia (parte 1 – standard probatório)
8 de março de 2025, 8h00
Em diversos artigos desta coluna já discutimos sobre o standard de prova na decisão de pronúncia em relação à autoria delitiva [1]. No presente artigo, apresentado em duas partes, analisaremos o standard probatório do outro requisito da decisão de pronúncia, a materialidade, a fim de compreender a regra probatória (objeto do texto de hoje), bem como explorar as suas formas de comprovação (que será investigado na parte 2, na próxima semana).
De início, impende ressaltar que a decisão de pronúncia representa uma fase bastante relevante no procedimento escalonado do rito especial para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tratando-se de um juízo de admissibilidade realizado pelo juiz togado. A decisão de pronúncia deve se correlacionar com a denúncia e, posteriormente, servirá de limite para atuação da acusação em plenário, além de embasar a redação dos quesitos.
O artigo 413 do CPP disciplina a matéria e estabelece que, nesta fase, é imprescindível que o juiz esteja convencido da materialidade do crime e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação.
A materialidade delitiva, elemento essencial para a pronúncia, refere-se à prova de que o crime efetivamente ocorreu, sendo o conjunto de elementos objetivos que demonstra que a ação criminosa se externalizou [2]. A materialidade, direta ou indireta, nada mais representa que a própria existência do crime.
Na fase decisória da pronúncia, é exigido que o magistrado esteja convencido da existência dos fatos, o que implica uma análise crítica das provas apresentadas. Desse modo, o magistrado não pode se basear em meras suposições ou em evidências frágeis, pois isso comprometeria a integridade do processo penal e a proteção dos direitos do acusado.
Diante dessa condição em relação à existência do crime, discute-se o standard de prova neste momento processual, comparando a regra probatória da pronúncia com a da sentença condenatória, por exemplo.
Inicialmente, vale destacar que o standard probatório corresponde aos parâmetros utilizados para avaliar a suficiência da prova, determinando a quantidade necessária para embasar uma decisão e o nível de confirmação da hipótese acusatória. É o atendimento a esse requisito que confere legitimidade à decisão. Desse modo, é o marco que define “o grau mínimo de prova” [3] exigido para considerar-se provado um fato.
A partir da análise do artigo 413 do CPP, pode-se identificar que os requisitos da decisão de pronúncia possuem dois standards probatórios diferentes. No julgamento do REsp 2.091.647/DF, o ministro Rogerio Schietti Cruz, ao tratar do artigo 413 do CPP, pontuou que “A leitura do referido dispositivo legal permite extrair dois standards probatórios distintos: um para a materialidade, outro para a autoria e a participação. Ao usar a expressão ‘convencido da materialidade’, o legislador impôs, nesse ponto, a certeza de que o fato existiu; já em relação à autoria e à participação, esse convencimento diz respeito apenas à presença de indícios suficientes, não à sua demonstração plena, exame que competirá somente aos jurados” [4].

A doutrina também compreende desta forma. Eugênio Pacelli [5] leciona que “a materialidade não comporta dúvidas na pronúncia, devendo estar demonstrada de forma cabal, ainda que os indícios de autoria sejam menos robustos”. Gustavo Badaró [6] destaca que o artigo 413 estabelece um critério de certeza: “o juiz se convencer da existência do crime. Assim, se houver dúvida sobre se há ou não prova da existência do crime, o acusado deve ser impronunciado. Já com relação à autoria, o requisito legal não exige a certeza, mas sim a probabilidade da autoria delitiva: deve haver indícios suficientes de autoria”.
Desse modo, ao contrário da autoria, que pode ser evidenciada por indícios suficientes, em relação à materialidade delitiva, o juiz deverá demonstrar em sua fundamentação que o fato existiu e que ele constitui uma infração penal, sendo este um elemento fundamental para a pronúncia. Logo, trata-se de um juízo de certeza sobre a existência do crime [7].
Sob essa perspectiva, exige-se que o juiz tenha plena convicção quanto à materialidade do fato, o que implica em um grau mais elevado de exigência probatória. Isso significa que a existência do crime deve estar comprovada, não bastando meros indícios ou mesmo a presença de dúvida razoável.
Em decisão recente, no julgamento do AREsp nº 2.466.564/GO, a 5ª Turma do STJ confirmou que: “Para a pronúncia do réu, exige-se juízo de certeza acerca da materialidade delitiva, com prova da existência do crime doloso contra a vida, não bastando o mero apontamento de indícios quanto ao elemento subjetivo do tipo penal” [8].
Assim, se houver dúvida em relação à existência material do crime, a pronúncia é inadmissível. Nesse sentido, a invocação do brocardo in dubio pro societate (na dúvida, em favor da sociedade) não se aplica [9], pois não apenas a dúvida deve favorecer o acusado, conforme o princípio in dubio pro reo [10], como está a se falar de um elemento objeto que precisa estar presente.
Neste sentido, em um julgado paradigmático [11], o STF já decidiu que o in dubio pro societate não incide sobre a materialidade delitiva, estabelecendo que a dúvida sobre a existência do crime de homicídio não pode acarretar na submissão do acusado à júri [12]. O standard probatório da materialidade na pronúncia possui, portanto, “o mesmo nível de exigência que se faz para uma sentença condenatória, de que é preciso prova forte, robusta e inequívoca da existência do fato. Havendo dúvida em relação à materialidade, aplica-se o in dubio pro reo” [13]. Nessa esteira, Aquino [14] sustenta que a pronúncia exige “o pleno conhecimento do crime pelo Juiz, devendo haver sobre ela [materialidade] certeza, uma vez que a dúvida impõe a impronúncia”.
Enfim, a ausência de materialidade ou sua falta de comprovação inequívoca impede, portanto, a continuidade da persecução penal [15] e, no caso dos crimes dolosos contra a vida, representa o fim do procedimento antes mesmo do início da 2ª fase do rito (judicium causae), acarretando na absolvição sumária ou na impronúncia [16] do acusado.
Superada a análise sobre o standard de prova, elemento necessário para comprovação da materialidade, precisamos verificar como se comprova a própria materialidade, até mesmo porque tal discussão é de extrema relevância prática atualmente. É o que faremos na próxima semana com a parte 2 do artigo.
[1] Como exemplos: Em busca de maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte 1); Em busca de maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte 2); Em busca de uma maior racionalidade na pronúncia: evolução jurisprudencial (parte final); A decisão de pronúncia como garantia e os elementos colhidos no inquérito policial.
[2] FAUCZ, Rodrigo; AVELAR, Daniel. Manual do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 273.
[3] VÁZQUEZ, Carmen. A modo de presentación. In: Vázquez, Carmen (org.). Estándares de prueba y prueba científica: ensayos de epistemología jurídica. Madrid, Marcial Pons, 2013, p. 14.
[4] STJ, REsp n. 2.091.647/DF, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, j. em 26/9/2023.
[5] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo, Atlas: 2021, p. 564.
[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 677.
[7] Nesse sentido: “Quanto à materialidade, o art. 413 do CPP exige da pronúncia e da sentença o mesmo nível de segurança, de modo que ambas devem seguir, nesse ponto, o mais alto standard do processo penal” (STJ, AREsp 2236994/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 21/11/2023).
[8] STJ, AREsp n. 2.466.564/GO, relatora ministra Daniela Teixeira, 4ª Turma, julgado em 27/11/2024, DJEN de 6/12/2024.
[9] Defendemos que o brocardo “in dubio pro societate” não possui qualquer fundamento jurídico, nem para análise da admissibilidade da autoria e, muito menos, para a verificação da materialidade.
[10] Nesse sentido: Rangel, Direito processual penal, 2009, p. 586-587; Aury Lopes Jr., Direito processual penal e a sua conformidade constitucional, v. 2, p. 262; Badaró, Processo Penal, p. 677. Recentemente, o STJ decidiu que: “havendo dúvida quanto à materialidade delitiva ou em relação à existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, deve prevalecer a presunção constitucional de inocência.” (STJ, AgRg no HC 729.002/RS, j. em 21/06/2022).
[11] Ementa: “1. Não é questão de prova, mas de direito probatório – que comporta deslinde em habeas-corpus -, a de saber se é admissível a pronúncia fundada em dúvida declarada com relação à existência material do crime. II. Pronúncia: inadmissibilidade: invocação descabida do in dubio pro societate na dúvida quanto à existência do crime. 2. O aforismo in dubio pro societate que – malgrado as críticas procedentes à sua consistência lógica, tem sido reputada adequada a exprimir a inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia -, jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime, em relação a qual se reclama esteja o juiz convencido. 3. O convencimento do juiz, exigido na lei, não é obviamente a convicção íntima do jurado, que os princípios repeliriam, mas convencimento fundado na prova: donde, a exigência – que aí cobre tanto a da existência do crime, quanto da ocorrência de indícios de autoria, de que o juiz decline, na decisão, “os motivos do seu convencimento”. 4. Caso em que, à frustração da prova pericial – que concluiu pela impossibilidade de determinar a causa da morte investigada -, somou-se a contradição invencível entre a versão do acusado e a da irmã da vítima: conseqüente e confessada dúvida do juiz acerca da existência de homicídio, que, não obstante, pronunciou o réu sob o pálio da invocação do in dubio pro societate, descabido no ponto. 5. Habeas-corpus deferido por falta de justa causa para a pronúncia.” (STF. HC 81.646, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 04/06/2002).
[12] No mesmo sentido são os seguintes julgados: STF, ARE 1.067.392/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 26/03/2019; STF, HC 180.144/GO, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 10/10/2020; STJ, HC 175.639, Rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 20/03/2012.
[13] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª ed., São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 957.
[14] AQUINO, Álvaro Antônio Sagulo Borges de. A Função Garantidora da pronúncia. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 116.
[15] Nesse sentido: STJ, AgRg no AREsp n. 2.483.853/BA; STJ, AgRg no AgRg no REsp n. 1.991.574/SP.
[16] Sobre a impronúncia, vale a leitura do artigo “Tribunal do Júri: a decisão de impronúncia é compatível com o Estado de Direito?” de 8 de abril de 2022.
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