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'Não julgue o livro pela capa', nem o precedente pela ementa: modelo Irac

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  • é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

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  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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7 de março de 2025, 9h14

Se a decisão, a teor do artigo 489 do CPC e do artigo 381 do CPP, é composta por relatório, motivação/fundamentação e dispositivo, única parte que transita em julgado, aliás, então, qual é a função da ementa?

Spacca

No direito brasileiro, a ementa deveria representar o breve resumo do julgado, contendo a síntese da premissa fática, da premissa normativa, do raciocínio aplicado e da conclusão, favorecendo a transparência, a localização e a consulta das razões (ratio decidendi) do precedente (vinculante ou persuasivo).

Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Recomendação 154/2024 e o Manual de Padronização de Ementas (aqui), com a finalidade de “otimizar a utilização de precedentes nas decisões judiciais (…), facilitando a busca da jurisprudência, inclusive por meio de inteligência artificial. Para esse fim, é fundamental a padronização das ementas, em âmbito nacional”. A iniciativa assume, com ajustes, o modelo Irac (Issue, Rule, Application, Conclusion), amplamente utilizado nos EUA, orientando os membros do Poder Judiciário a produzirem ementas seguindo o protocolo:

“O cabeçalho deverá conter as seguintes informações sequenciais, preferencialmente com um máximo de quatro linhas e formatação com efeito versalete (small caps): área do direito; tipo de ação; tema geral; algum complemento necessário; solução do caso (ex: provimento, desprovimento). Os demais itens são autoexplicativos: I. Caso em exame: sumária descrição da hipótese (fato relevante e pedido); II. Questão em discussão: breve relato da questão ou questões controvertidas objeto da apreciação judicial; III. Razões de decidir: solução proposta e sucinta motivação; IV. Dispositivo e tese: conclusão do julgamento (provimento do recurso, desprovimento do recurso) e tese, quando for o caso

No entanto, diante da ausência de metodologia, treinamento ou coercitividade, prevalece ainda a ampla liberdade para elaboração de ementas, ocasionando divergências, ambiguidades e descolamento temático entre o caso decidido e o conteúdo da ementa. A ementa nem sempre reflete necessariamente a totalidade do raciocínio jurídico empregado pelo órgão julgador, nem cobre os pontos decididos, omitindo premissas, contextos, argumentos dominantes e dominados, prejudicando a identificação da ‘ratio decidendi’ (o núcleo da motivação e do fundamento adotado pelo Tribunal).

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

Nos Estados Unidos, os julgamentos não possuem “ementas” no mesmo formato utilizado no Brasil, por força das diferenças estruturais dos sistemas jurídicos common law (EUA) e civil law (Brasil), bem como às práticas culturais e técnicas de redação judicial (não estamos valorando; somente descrevendo). No sistema norte-americano, a força do direito está nos *precedentes vinculantes* (stare decisis), e as decisões judiciais são redigidas como ‘opiniões detalhadas’, cobrindo os fatos do caso, as regras, a aplicação ou raciocínio utilizado e a conclusão (em geral, votos concordantes e dissidentes em colegiados).

O precedente é o produto completo da deliberação, sem que haja a necessidade de uma “ementa” oficial, já que a íntegra do texto é o que importa para definir o holding (parte vinculante ou persuasiva da decisão), distinguindo o “obter dicta” ou “dicta” (argumentos ou comentários circunstanciais ou contingentes, sem efeito vinculante). A tradição do common law valoriza a descrição completa do raciocínio judicial que serve de orientação às futuras decisões em casos equivalentes.

O máximo que os operadores do Direito encontrarão são resumos temáticos (headnotes) produzidos por professores, profissionais ou empresas privadas que buscam sintetizar o conteúdo das decisões. Entretanto, não são oficiais. Em geral, o modelo assume o formato Irac (Issue, Rule, Application, Conclusion) que apresenta uma estrutura sistemática para analisar precedentes, por nós, apresentado em formato de tabela: 

Passo Descrição
Questão (I) A partir da premissa fática estabelecida, formula-se a Questão objeto da controvérsia (se mais de um ponto, cada qual terá sua própria análise IRAC)
Regra (R) O suporte normativo e os argumentos formulados pelas partes, com a definição da regra jurídica (premissa normativa) aplicável para responder à questão.
Análise (A) A aplicação da Regra aos Fatos do caso, por meio do raciocínio judicial, provido de motivação e fundamentação lógico-racional (inferência válida).
Conclusão (C) A resposta à Questão, baseada na análise das premissas fática e normativa, com a elaboração de uma proposição resolutiva.

O modelo Irac aceita ajustes (ampliações ou restrições) associadas ao contexto do caso (complexidade, nuances, detalhes), auxiliando a extração, a organização e o arquivamento da ratio decidendi e dos pontos principais do precedente (vinculante ou persuasivo), garantindo a aplicação futura em casos equivalentes, além de mitigar erros decorrentes da má-compreensão das premissas (fática e normativa) do precedente invocado.

Um exemplo concreto pode tornar mais precisa a abordagem. No julgamento do caso Brady v. United States, em 1970, pela Suprema Corte, o resumo no formato Irac seria:

Passo Descrição
Questão (I) A ameaça de pena de morte conforme previsto no 18 U.S.C. § 1201(a) [pena capital; morte por recomendação do júri] é coercitiva a ponto de invalidar uma confissão de culpa voluntária?
Regra (R) A Suprema Corte aplicou a 5ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos e avaliou o Federal Kidnapping Act (Lei Federal que criminaliza o sequestro interestadual, com possibilidade de pena de morte) no contexto da decisão prévia em United States v. Jackson (precedente em que a Suprema Corte declarou inconstitucional a aplicação da pena de morte unicamente por decisão do júri no Federal Kidnapping Act, devido ao efeito potencialmente coercitivo sobre os arguidos ao optarem por não enfrentar um julgamento). Guilty pleas (pleitos de culpados) devem ser feitos com total conhecimento informado (provas existentes; sem omissões) e voluntariedade, desprovida de coerção ou intimidação por fatores externos.
Análise (A) Robert Brady inicialmente se declarou inocente, mudando de posição após o corréu ter confessado e assumido o compromisso de testemunhar contra si (confessou o crime). O Tribunal considerou que a decisão de Brady foi feita de forma inteligente e voluntária, mesmo perante o risco de pena de morte sob o 18 U.S.C. § 1201(a). O Tribunal concluiu que a lei não o coagiu a se declarar culpado, porque a mudança no pleito se deu devido à estratégia jurídica e não por receio da pena de morte.
Conclusão (C) A Suprema Corte decidiu unanimemente que a ameaça de pena de morte no Federal Kidnapping Act não torna automaticamente todos os guilty pleas sob 18 U.S.C. § 1201(a) inválidos. O pleito de culpa de Brady foi considerado válido e voluntário.

Guardadas as devidas proporções, a ementa pode ser comparada à sinopse de um filme ou à orelha de um livro, apresentando uma visão geral do enredo, do pano de fundo e da sequência de fatos, embora não consiga capturar todos os detalhes, fatos, argumentos, razões, diálogos ou reviravoltas que somente podem ser aferidas se assistido o filme por completo.

Por outro lado, o ditado popular: “não julgue o livro pela capa” serve como uma analogia para explicar por que não se deve avaliar um julgamento apenas pela ementa. Assim como a capa de um livro pode ser atraente, mas não revelar a complexidade da narrativa, os personagens ou os temas profundos explorados na obra, a ementa de um julgamento, sem o formato Irac, é apenas uma visão sintética e parcial da decisão judicial. Daí que a ementa, embora útil para uma primeira aproximação, não representa, nem substitui a leitura integral da decisão judicial, na qual deveriam estar descritas as premissas fáticas, normativas, o raciocínio judicial e a conclusão, especificado no caso analisado.

A ementa é um resumo que, como todo resumo, tende a omitir detalhes essenciais. O direito é um domínio que depende do contexto (espaço; tempo; dinâmica), dos argumentos apresentados e debatidos e do raciocínio aplicado à solução do caso. Em consequência, a mera referência a uma ementa amplia o risco de se confundir as premissas, com o uso descontextualizado, impertinente ou irrelevante, às vezes, ainda, precedido de um genérico ‘mutatis mutandis’ que serve de álibi retórico para evitar o dever de apresentar as razões que justificam a aplicação do precedente ao caso concreto.

Por exemplo, uma ementa pode destacar a prevalência de um princípio jurídico, mas não explicar o raciocínio aplicado em relação a outros princípios (ponderação, proporcionalidade etc.), causando ambiguidade e risco de aplicação mecânica e equivocada em casos futuros.

A ratio decidendi é o núcleo do fundamento da decisão, aquilo que efetivamente vincula casos futuros. A ementa, porém, nem sempre reflete com precisão essa razão de decidir. O uso excessivo, indevido ou exclusivo da ementa, em detrimento da análise da ratio decidendi, pode gerar um “efeito cascata”, em que um erro inicial se propaga e se amplifica, levando a interpretações equivocadas e à cristalização de inferências inválidas, comprometendo a pretensão de coerência e integridade do sistema de precedentes em casos futuros.

A ementa, a teor do artigo 489 do CPC, não substitui a fundamentação detalhada da decisão. Assim como não se deve julgar um livro pela capa, não se deve avaliar um julgamento apenas pela ementa. Ao se contentar com a ementa, o operador do direito pode estar ignorando a obrigação de analisar a motivação completa do julgado, permitindo que a aparência da decisão prevaleça sobre o conteúdo deliberado, indo na contramão do que se espera de um sistema de precedentes (análise contextualizada, crítica e específica de casos; orientação futura).

A ementa é um ponto de partida, raramente o ponto de chegada (ressalvados, no limite, os instrumentos de fixação de precedentes vinculantes: Repercussão Geral, ADin, ADPFs, IRDR e AC).

Luis Alberto Warat dizia que os julgadores, em vez de construir argumentos a partir de uma análise lógica e contextualizada das premissas fáticas e normativas associadas ao raciocínio judicial aplicado ao caso, muitas vezes se limitam a “citar decisões anteriores” como se fossem autoridade suficiente para justificar suas conclusões, situação rejeitada pelos artigos 489 do CPC e 315 do CPP, aptas a criar um ciclo vicioso de anemia lógico-racional:

As decisões judiciais se baseiam em outras decisões, sem questionar a ratio decidendi associada às premissas, argumentos e raciocínio empregado no precedente original;
A autoridade do precedente é tomada como um dogma (axioma ou postulado), em vez de ser submetida a uma crítica racional e contextualizada ao caso concreto;
A retórica da autoridade substitui a racionalidade do argumento (citar é citar-se); e,
Ementas servem de suporte a casos dissociados de seus fundamentos de origem, produzindo decisões descontextualizadas.

Por consequência, quando o órgão julgador se limita a citar precedentes sem analisar o contexto original, corre o risco de aplicar inferências descontextualizadas, porque:

A ratio decidendi (razão de decidir) de um caso está diretamente associada à premissa fática da situação analisada, não necessariamente equivalente ao atual.
Ao transplantar uma decisão para um contexto diferente, sem prévia análise crítica, o órgão julgador pode distorcer, ainda que culposamente, o sentido original do precedente;
O efeito é a transformação da lógica de precedentes em um modelo mecânico de suposta coerência, com suporte em retórica de aparente solidez que impede o julgamento justo (fair trail) do caso concreto, inclusive por meio da efetiva participação das partes na construção do provimento judicial (a suposta autoridade do precedente é usada como um atalho para evitar o esforço da análise dos argumentos)

A racionalidade, que deveria ser o núcleo da decisão judicial, é substituída por uma retórica contundente e vazia, na qual a linguagem jurídica se torna um fim em si mesma, com citações de ementas que impressionam os mais desavisados, mas que não resistem ao olhar mais acurado (argumentos coerentes, consistente e aderentes ao caso concreto). O modelo decisório passa a funcionar como um sistema autopoiético (fechado), em que as decisões se referem umas às outras, sem conexão com a realidade do concreto) ou abertura crítica para o caso específico, de distinções ou de superações dos argumentos anteriores.

Em resumo, enquanto no Brasil a ementa é uma ferramenta de eficiência processual, nos EUA a integridade do precedente depende da leitura atenta da decisão completa, com primazia do texto integral sobre os resumos (“o diabo está nos detalhes”). Assim como a sinopse de um filme ou a orelha de um livro, a ementa serve como um guia inicial, mas nunca substitui a análise profunda e contextualizada do caso concreto.

O modelo Irac que serviu de inspiração ao CNJ pode melhorar a qualidade da transparência das decisões e qualidade da comunicação, desde que conte com a devida compreensão dos operadores jurídicos e a adesão efetiva, ainda tímida, dos órgãos julgadores (uma Resolução em vez de Recomendação do CNJ serviria de incentivo). Um sistema de precedentes efetivo demanda ajustes ao longo da implementação associada à coragem dos tomadores de decisão, contribuindo para que se realize, minimamente, as promessas de integridade e coerência. É o que esperamos.

*Na comunidade Criminal Player os modelos de linguagem (chats de jurisprudência e doutrina, equivalentes ao GPT4) resumem os precedentes no formato Irac, favorecendo a compreensão e se alinhando à diretriz da Recomendação 154/2024 materializada no Manual de Padronização de Ementas (aqui), com o fim de facilitar “busca da jurisprudência, inclusive por meio de inteligência artificial”. Confira gratuitamente como funciona aqui. O futuro chegou.

 

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  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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