Senso Incomum

O direito, a funerária e o reclame publicitário: 'venha morrer conosco'

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6 de março de 2025, 8h00

1. O que impacta e o que não impacta: já existe jus pagode para concursos

Em 2024 lancei o livro Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio contra a Simplificação, pela Editora Contracorrente  Embora esteja entre os quatro mais vendidos da editora, não viralizou nas redes sociais. Bom, redes é o lugar preferido do não-leitor. Afinal, por que impactaria escrever contra a simplificação do direito, que é essa commodity antiepistemológica que apaixona a comunidade jurídica? Por que alguém, como eu, arrisca-se a escrever contra a agnotologia jurídica?

Já escrevi isso por aqui, mas repito: o que gera meme e impacta é alguém lançar livro para concurso com músicas – sim, com mais de mil músicas – que servem para decoreba (no vídeo aparece o autor; por respeito, apenas coloco aqui o link – tem uns hits, como Interrupção da Prescrição art 202 CC – além de tudo, o cantor não é do ramo!). Pergunta o autor: já pensou em estudar ouvindo música? “Aprenda modalidades de licitação cantando” (em ritmo de pagode).

Alguém já havia pensado nisso?  Passar em concursos virou coisa fácil, diz o anúncio.

Vamos lá: sejamos claros. Vamos falar a sério. Estudar para concurso assim? Que concursos são esses? Para guarda municipal? Sabemos que o que possibilita isso tudo é o modelo de concursos públicos de Pindorama. Que é tão culpado quanto quem vende esse tipo de simplificação.

Aliás, qual é a diferença do que se faz no direito com o que se faz nas religiões? Vi agora um pastor pedindo Pix em nome de uma nova religião: Pregadores do Telhado. Pensei: esse cara está vendendo pregos e martelos? Não. Parece que “Pregadores do Telhado” quer dizer… sei lá. Gente que prega para fortalecer o telhado. Mas qual telhado, pelo amor de Deus? E ele tem imunidade tributária. Em nome “de o senhor Jesus” (sic).

Sigo. Outra coisa que “pega” é um manual desenhado-ilustrado, em que a publicidade mostra os livros tradicionais sendo descartados (num estalar de dedos – literalmente) e em seu lugar propõe um direito tão simplificado que qualquer pessoa entende (sic)… para quem duvida, eis uma amostra:

 

 

e outra amostra:

 

 

Incrível. Ou crível. Veja-se as platitudes do manual. Se não existir o crime, não faz sentido existir o direito penal. Que coisa, não? Como chegou a essa conclusão?  Algo como uma funerária que fez uma peça publicitária que dizia: uma funerária que nem parece funerária. Faltou o reclame: “venha morrer conosco”.

Pois é.

2. Einstein e a simplificação da teoria da relatividade

Como na anedota sobre Einstein. Contou a teoria da relatividade e ninguém entendeu. Pediram para simplificar. Ele o fez. Ninguém entendeu. Depois da décima vez, um gaiato finalmente entendeu. E Einstein respondeu: pois você não entendeu. Pela simples razão de que isso que acabei de contar não é mais a minha teoria.

Entendam como quiser a anedota sobre Einstein. A propósito, um néscio outro dia contestou minha anedota sobre Einstein. Disse: onde se viu comparar o direito à física? Realmente, a coisa vai mal.

Isso tudo vem na esteira do que venho criticando há décadas. No novo livro Ensino Jurídico mostro isso mais detidamente. Há mais de 25 anos denuncio que isso criaria o caos e a ignorância – eis a agnotologia. Um deliberado processo de ignorantização da malta jurídica.

3. Direito mastigado e Direito sem as partes chatas: viva a Lei Seca

Há livros que prometem um Direito sem as partes chatas ou partes difíceis; outros são os resumos dos resumos; outros mastigam o direito. Desenham. Há direito com sushi. Há plastificações para ler na praia e piscina. Há treinamento de “Lei Seca”. Acreditem.

Ou seja: existe mesmo, como já denunciei, uma agnotologia jurídica. Nas redes (as neocavernas denunciadas por Platão), diz-se: ah, Lenio Streck é contra simplificar; quer complicar; alguns dizem “ah, ele é a favor do juridiquês” (aliás, quero parabenizar a bela matéria – sobre o tema –  feita por Júlio Xavier no Instagram com seu interessante @tipografiajuridica).

Li um comentário feito por uma advogada ou estudante chamada FrancieliR sobre um texto parecido com este sobre “simplificação”. Ela diz: “A questão é que o mundo mudou; não temos mais feudos em que os doutores da palavra eram os únicos que podiam dar sua opinião”. Faz crítica à minha linguagem rebuscada etc. Respondo: aí é que está FrancieliR. Hoje qualquer um pode dar a sua opinião. Como a FrancieliR. Diz o que quer. Por não saber que não sabe.

Só o bizarro vence. Só o patético salva.

O que “pega” hoje em dia é vender commodities – a simplificação.

Tudo isso apenas me dá razão: a agnotologização chegou para ficar. Acachapante.

Spacca

4. E o direito se aproxima das igrejas na TV ou as igrejas na TV se aproximam dos coaches jurídicos?

Olhando um padre fazer propaganda de ora pro nobis (ou um remédio para enxergar melhor !!! – sim, isso existe!) antes da reza do terço e um pastor evangélico “curando” joelhos de senhoras fragilizadas pela artrose (nem falo da cura do Covid, “alcançada” mais de 100 mil vezes por um missionário muitíssimo bem sucedido), não parece haver muita diferença com a cena de um dos vídeos vendendo livro ilustrado, quando livros de direito são derrubados e em seu lugar entra o “ora pro nobis jurídico” (placebo epistemológico, por assim dizer).

Cura milagrosa da ignorância jurídica – eis o lema. Fracassamos?

5. E depois nos queixamos da resposta aos embargos?

Depois nos queixamos quando nossos embargos de declaração nem são examinados, são rejeitados, são chutados para escanteio. Ficamos brabinhos quando é aplicada multa no processo penal por analogia in malam partem. O dispositivo mais descumprido do processo é o artigo 489 do CPC (e o artigo 315 do CPP) que determina fundamentação. E a comunidade jurídica se preocupa com questões periféricas.

Um dos símbolos do estado da arte é a aplicação da ponderação, em que o ator jurídico “pega” um princípio em cada mão e faz um “balanceamento”. Afinal, simplificam tanto Alexy que ele sumiu do mapa. A ponderação ficou tão simplificada que ela já não é.

6. Os deuses devem ter enlouquecido

E assim a nave vai. Rumo ao abismo. Afinal, a terra jurídica é plana. Como no filme Os Deuses Devem Estar Loucos, um nativo foi encarregado de carregar as sofisticações para fora do mundo. Está correndo até hoje. Há vinte anos ou mais eu avisei.

Efetivamente, há uma produção deliberada da ignorância jurídica. Isso está em tudo. Em todos os lugares. Mas no direito isso pega mais fácil.

7. De há muito chove na serra – era uma coceira e hoje gangrenou

Agora mesmo foi anulado mais um processo feito por ChatGPT – o advogado, preguiçosamente pediu ao robô que buscasse precedentes… que foram inventados. Esse caso é de Santa Catarina. Mas parcela da comunidade jurídica pega carona nessa pós-modernidade. Estão destruindo a doutrina.

Me chama(ra)m de alarmista. Diziam – e dizem: ah, não implica com isso; o resumo é para ajudar; qual é o problema de escrever simplificações? E hoje piorou, por causa da IA (ignorância artificial). A IA vitaminou o fenômeno agnotológico.

Pois é. Temos, então, mais o livro Manual tão fácil que qualquer um entende – nem precisa ser do direito… Qualquer um “entende”.  Se qualquer um entende, para que o livro?

Daqui a pouco será o quê?

Será o resumo do desenho?

Onde vamos parar?

Emburrecemos?

Não respondam.

Por isso a importância da agnotologia jurídica que lancei há semanas: para estudar o processo deliberado de “ignorantização” da malta.

Insisto para que leiam Swift, quem, em 1748, já denunciava todo isso, com muito sarcasmo.

Por falar em arte e literatura, que grande feito o do filme Ainda Estou Aqui. Cumprimentos ao elenco. E ao diretor. A escrita é a garantia contra o fracasso da memória. As pessoas ou não sabem ou esquecem o golpe militar e a ditadura que durou mais de 20 anos. O filme é um texto. E textos põem um selo de garantia contra o esquecimento.

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