Opinião

Superveniência de lei nova sobre requerimento de RIFs e Tema 990 do STF

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2 de março de 2025, 6h34

A controvérsia sobre o requerimento direto de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) pelo Ministério Público e pela polícia ao Coaf sem autorização judicial tem ocupado um espaço significativo no debate jurídico. Já tivemos a oportunidade de falar sobre o assunto em dois outros artigos publicados aqui nesta ConJur (“Elaboração de relatório de inteligência financeira pelo Coaf sob encomenda”, de 6 de dezembro de 2023, e “Sigilo bancário e fiscal: dois pesos e duas medidas”, de 28 de agosto de 2024).

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coaf

Também, a matéria tem sido objeto de frequentes decisões divergentes nas cortes superiores. Colegiadamente, a 1ª Turma do STF, no julgamento do AgRg na RCL 61.944, entendeu que o julgamento que deu origem ao Tema nº 990 de Repercussão Geral autorizou o requerimento direto dos RIFs sem ordem judicial (j. 2/4/2024). Já a 2ª Turma, mais recentemente, entendeu ser ilegal a requisição direta de dados fiscais pelo MP ao órgão fiscal e, durante o julgamento, o ministro Dias Toffoli (Relator do Tema 990) concordou com e complementou os apontamentos feitos pelo ministro Nunes Marques sobre a ilegalidade também do requerimento direto de RIFs ao Coaf (AgRg no HC 200.569, j. 29/10/2024).

No STJ, a situação é igual. A 5ª Turma autoriza o requerimento direto (AgRg no HC 193.492, j. 16/4/2024) e, como já noticiou esta ConJur (“Provas decorrentes de relatório do Coaf obtido ‘por encomenda’ devem ser anuladas, reafirma STJ”), a 6ª Turma, em julgamento mais recente, em dois casos vedou o requerimento direto dos RIFs (HC 943.710 e RHC 203.373, j. 17/12/2024).

O imbróglio jurídico parece encontrar resposta no artigo 2º, § 1º, da Lindb e na Lei nº 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime” e que instituiu o juiz das garantias no ordenamento pátrio.

Inspirado em modelos estrangeiros que buscam assegurar a imparcialidade na fase investigativa, o juiz das garantias foi concebido como um magistrado cuja atuação se restringe ao controle da legalidade da investigação e à salvaguarda dos direitos fundamentais do investigado, sem qualquer participação na fase de julgamento.

Essa separação de funções justifica-se pela necessidade de evitar que o mesmo juiz que autoriza medidas cautelares, como interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e prisões temporárias — e, portanto, forma juízo sobre a existência de materialidade e indícios de autoria —, seja posteriormente responsável por julgar a causa, impedindo, assim, que eventuais pré-julgamentos e o viés de confirmação tido por todo ser humano, amplamente estudado na neurociência, contaminem a imparcialidade da decisão final e que o juiz do processo esteja influenciado por atos praticados na fase de inquérito.

Essa reestruturação processual tem implicações diretas na questão envolvendo o requerimento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) pelo Ministério Público e pela Polícia ao Coaf:

O artigo 3º-B, XI, ‘d’ e ‘e’ do Código de Processo Penal, introduzido pelo Pacote Anticrime, estabelece que o juiz das garantias é “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”, estando reservado à sua competência o poder de “decidir sobre os requerimentos de:” “acesso a informações sigilosas” e “outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado” (artigo 3º-B, XI, ‘d’, ‘e’, CPP).

O dispositivo tem, pois, importância central na discussão sobre a legalidade do requerimento direto de RIFs pelo Ministério Público e pela polícia, pois estabelece expressamente a necessidade do controle jurisdicional sobre medidas que impliquem em acesso a informações sigilosas e restrição ao direito à privacidade, ao sigilo de dados e à proteção de informações pessoais, garantidos pelo artigo 5º, X, XII e LXXIX da Constituição.

É inegável que as informações detidas pelo Coaf e que compõem os RIFs inserem-se no âmbito da privacidade e intimidade do cidadão: isso consta do próprio relatório, tarjado como sigiloso pelo próprio Coaf, que também veicula no rodapé de todos os RIFs o alerta de que “este relatório de inteligência financeira é sigiloso. Constitui crime divulgar seu teor à margem das hipóteses legais. (LC 105, de 2001, artigo 10 e Código Penal, artigos 153, § 1º-A, 154 e 325)”.

E isso não poderia mesmo ser diferente, afinal o documento veicula transações financeiras, inclusive movimentação bancária, sigilosas por natureza, que foram consideradas anormais pelos setores obrigados a reportar ao Coaf (bancos, cartórios, seguradoras, joalherias etc.). Dito isso, é fácil concluir que o acesso a esses dados pelas autoridades públicas implica em flexibilização a garantia constitucional à privacidade e à intimidade e, bem por isso, se submete às regras introduzidas pelo Pacote Anticrime no artigo 3º do CPP, inclusive e especialmente a necessidade de autorização judicial.

O argumento de que o artigo 15 da Lei nº 9.613/98 autorizaria o requerimento direto de RIFs sem necessidade de intermediação judicial não resiste à análise mais detida e sistêmica da legislação.

Além de se tratar de interpretação excessivamente ampliativa do dispositivo — que se limita a tratar da difusão espontânea dos RIFs: “o COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito” —, ignora que essa norma foi editada num contexto normativo distinto, anterior à criação do juiz das garantias. Ignora também que, nos termos do artigo 2º, §1º, da Lindb, “a lei posterior revoga a anterior (…) quando seja com ela incompatível”.

Ora, se a introdução do juiz das garantias expressamente impôs o regime de controle judicial sobre medidas investigativas que envolvem restrição a direitos fundamentais, é evidente que a obtenção direta de RIFs sem autorização judicial tornou-se incompatível com a nova estrutura processual.

Isso significa que, mesmo que antes pudesse se argumentar que o Ministério Público e a polícia poderiam requerer diretamente os relatórios ao Coaf em razão do artigo 15 da Lei 9.613/98, essa possibilidade foi tacitamente revogada com a superveniência da Lei nº 13.964/2019.

Spacca

Da mesma forma, não se sustenta o argumento de que seria possível o requerimento direto de RIFs ao Coaf, pois o STF o teria permitido no julgamento do RE 1.055.941, que deu origem ao Tema 990. Ainda que deixemos de lado o fato de que o Pleno da Suprema Corte não analisou especificamente a constitucionalidade do requerimento direto de RIFs pelas autoridades persecutórias, o fato é que referido julgamento ocorreu antes da introdução do juiz das garantias no ordenamento jurídico brasileiro, o que significa que a interpretação conferida à Lei nº 9.613/98 naquele momento não levou em consideração a nova estrutura processual criada pelo Pacote Anticrime.

Aqui está a relevância do artigo 2º, § 1º, da Lindb, cuja redação, relembre-se, dispõe que “a lei posterior revoga a anterior (…) quando seja com ela incompatível”: neste caso, o dispositivo determina a prevalência do artigo 3º-B, XI, ‘d’, ‘e’, do CPP, (lei posterior) sobre o artigo 15 da Lei nº 9.613/98 (lei anterior), especificamente no que diz respeito ao requerimento de acesso aos dados sigilosos tidos pelo Coaf.

Em outras palavras: há revogação implícita parcial, no que diz respeito aos “requerimentos” ou solicitações, pois só nessa parte há incompatibilidade.

Nada impede que o Coaf, no normal exercício das suas funções, identifique um ilícito e comunique ao MP ou à polícia espontaneamente, mas estes órgãos não podem requerer àquele o acesso aos dados diretamente sem autorização judicial.

Diante disso, permitir o requerimento direto dos dados pelo MP ou pela polícia ao Coaf, ainda que se diga que o órgão de inteligência financeira tem a prerrogativa de decidir se atende ou não ao requerimento, é delegar para uma decisão administrativa o que a lei expressamente reservou à decisão judicial.

A instituição do juiz das garantias, nos termos positivados na lei, foi uma escolha político-criminal legítima, recente e já julgada constitucional pelo próprio STF. A técnica legal já deu a solução para a questão: mesmo que se admitisse que o artigo 15 da Lei nº 9.613/98 autorizava o requerimento direto, como dizem a 1ª Turma do STF e a 5ª Turma do STJ, a edição de lei nova alterou isso.

O ministro Antonio Saldanha Palheiro, de forma perspicaz, já havia o notado há muito tempo, pois na sessão da 6ª Turma do STJ de 7 de maio de 2024 disse que quando o STF julgou o Tema 990 “nós não tínhamos sequer o juiz das garantias, que é um juiz que está sendo implantado exatamente para fiscalizar todos os atos do inquérito”, adicionando que essa ponderação deveria ser feita “para que se busque uma coerência sistemática, né, da jurisprudência que deve ser observadas pelas instâncias que estão abaixo do Supremo” [1].

Além dele, mais recentemente, o ministro Dias Toffoli – Relator do Tema 990 – também afirmou a necessidade de compatibilizar com a nova lei o entendimento sobre o requerimento direto de RIFs: “esses dois casos dos quais eu fui Relator [Temas 990 e 225] (…), eles agora se somam e nós temos que fazer uma leitura sistemática – lembrando o Min. Eros Grau, o direito não se lê em tiras – com o julgamento do juiz das garantias [2].

Coerência legislativa e respeito ao devido processo legal

De fato, o reconhecimento da constitucionalidade do juiz das garantias pelo STF não apenas reafirma a importância da imparcialidade do magistrado no processo penal, mas também evidencia que sua instituição representa uma resposta normativa contra investigações indiscriminadas, direcionadas e potencialmente abusivas, colocando o escrutínio judicial no centro das questões que envolvem a relativização de garantias constitucionais.

No que diz com o requerimento de RIFs ao Coaf, a exigência de decisão judicial prévia garante que seja feito um juízo sobre a necessidade, a proporcionalidade e a adequação da medida, além de afastar do processo decisório sobre o acesso a dados sigilosos órgãos de persecução penal que, longe de imparciais, são interessados no resultado da investigação.

De outro lado e como já afirmamos anteriormente (“Elaboração de relatório de inteligência financeira pelo Coaf sob encomenda”, de 6 de dezembro de 2023), a exigência de autorização judicial para acesso a dados sigilosos não compromete a eficácia das investigações nem contraria padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

O Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), frequentemente citado como justificativa para o requerimento direto de RIFs, não exige que esse acesso ocorra sem controle judicial, mas apenas que haja mecanismos eficazes de combate a crimes financeiros. A legislação brasileira já atende a essas recomendações ao permitir que o Coaf compartilhe espontaneamente informações quando identificar movimentações suspeitas, sem necessidade de solicitação ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia. Esse modelo garante que as investigações se desenrolem de maneira eficaz, mas sem comprometer garantias constitucionais, preservando, assim, o equilíbrio entre segurança pública e proteção de direitos fundamentais.

Como se vê, a superveniência da Lei nº 13.964/2019 trouxe uma solução clara para a celeuma envolvendo o acesso aos dados do Coaf. A previsão expressa da necessidade de autorização judicial para obtenção de informações sigilosas, aliada à instituição do juiz das garantias como responsável pelo controle da legalidade da investigação, estabelece um novo marco normativo que não pode ser ignorado.

O reconhecimento da ilegalidade do requerimento direto de RIFs não é apenas uma questão de coerência legislativa, mas também de respeito aos princípios do devido processo legal, da imparcialidade judicial e da proteção à privacidade.

Assim, qualquer interpretação que tente sustentar a validade do requerimento direto de RIFs sem autorização judicial está em dissonância com o atual modelo processual brasileiro e com os fundamentos que orientaram a criação do juiz das garantias.

 


[1] A partir de 00:45:29 da gravação oficial da sessão de julgamento da col. 6ª Turma de 7 de maio de 2024. Disponível em: <https://youtu.be/IdpFWNOuUK0?t=2706>.

[2] De 34:42 a 33:58 na gravação da sessão, disponível em: https://youtu.be/mUMEPP7NY0s?t=871

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