STF e a constitucionalidade de normas locais em licitações públicas
30 de maio de 2025, 18h30
A decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.963/DF sinaliza um avanço relevante na consolidação de uma interpretação equilibrada do pacto federativo no âmbito das licitações públicas. Ao afirmar a constitucionalidade da Lei Distrital nº 3.978/2007, a corte reconheceu a legitimidade da atuação normativa local quando voltada à proteção de interesses regionais e à salvaguarda de bens jurídicos fundamentais, como a saúde pública.
Em discussão, estava a validade de exigência imposta na fase de habilitação em licitações voltadas à contratação de serviços que envolvem riscos sanitários — como o controle de pragas urbanas, a limpeza de reservatórios de água e o uso de produtos químicos —, consistente na apresentação de licença de funcionamento por parte dos licitantes. Como fundamento para impugnação da norma, tal imposição configuraria, para o autor da ação, usurpação da competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação, nos termos do artigo 22, XXVII, da Constituição.
O Supremo, contudo, adotou interpretação mais consentânea com os princípios do federalismo cooperativo, reconhecendo que a norma distrital possui caráter específico e complementar, sem desrespeitar o núcleo das normas gerais estabelecidas pela legislação federal. Trata-se, pois, de decisão que reafirma a autonomia dos entes federativos para regulamentar aspectos peculiares de interesse local, especialmente quando em jogo a proteção da vida e da saúde da população.
Pois bem.
Normas gerais e competência suplementar: equilíbrio federativo na regulação das licitações públicas
No sistema constitucional brasileiro, a repartição de competências legislativas entre os entes federativos visa garantir tanto a unidade quanto o respeito às diversidades regionais.
Em matéria de licitações públicas, a Constituição atribui à União a competência privativa para legislar sobre normas gerais (artigo 22, XXVII), cabendo aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, no exercício da competência suplementar (artigos 25, §1º; 30, I e II; e 32, §1º), a edição de normas específicas que respeitem os princípios e diretrizes da legislação federal.
A competência complementar, longe de representar uma afronta à unidade normativa nacional, é expressão legítima do federalismo cooperativo, permitindo a adequação das regras às circunstâncias locais e específicas dos objetos contratados.
Assim, o modelo federativo brasileiro não exclui a atuação normativa dos entes subnacionais, desde que suas disposições estejam alinhadas ao núcleo normativo geral estabelecido pela União e não extrapolem os limites constitucionais. Na prática, isso significa que estados e municípios podem — e devem — adaptar as regras licitatórias às peculiaridades locais, desde que essa adaptação não comprometa a uniformidade dos princípios fundamentais do regime de contratações públicas.

Trata-se, portanto, de um equilíbrio delicado, mas necessário para que a realidade federativa brasileira — marcada por desigualdades regionais e necessidades distintas — seja contemplada por meio de soluções normativas ajustadas à realidade de cada ente.
O julgamento da ADI 3.963/DF pelo Supremo Tribunal Federal confirma essa diretriz ao reconhecer a validade de norma distrital que exige licença de funcionamento para empresas que atuam em áreas de risco sanitário.
O STF destacou que a norma local não confronta as leis federais de regência — como a antiga Lei nº 8.666/1993 e a nova Lei nº 14.133/2021 —, mas atua como complemento necessário ao interesse regional, reforçando o controle técnico e a proteção à saúde pública.
Dessa forma, o equilíbrio federativo se revela na capacidade dos entes locais de legislar de modo subsidiário e específico, respeitando os parâmetros federais e atendendo às realidades locais. Essa interpretação não apenas preserva a coerência do sistema jurídico nacional, mas também potencializa a efetividade das políticas públicas, permitindo respostas mais precisas e eficazes às demandas da sociedade.
Para a corte superior, a exigência prevista na Lei nº 3.978/2007 é exemplo disso. A norma impõe a apresentação de licença de funcionamento apenas para empresas que executam atividades com evidente risco sanitário e ambiental.
Segundo o STF, trata-se de disposição: a) focada no interesse regional; b) relacionada a objeto e atividade específicos; c) compatível com os princípios das Leis nº 8.666/1993 e nº 14.133/2021; e d) voltada à proteção de direitos fundamentais, como a vida e a saúde.
Não se trata, portanto, de norma que reestruture ou interfira na lógica das normas gerais federais, mas de regulamentação acessória que visa resguardar o interesse público local.
Saúde pública como fundamento constitucional da exigência
Outro ponto de grande relevância analisado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.963/DF diz respeito à delimitação entre a competência para legislar sobre normas de habilitação em licitações e a competência privativa da União para dispor sobre condições para o exercício de profissões, prevista no artigo 22, inciso XVI, da Constituição.
De forma precisa, a corte reconheceu que a exigência contida na Lei distrital nº 3.978/2007 — que impõe a apresentação de licença de funcionamento por empresas que executam serviços como controle de pragas, limpeza de reservatórios de água e manuseio de produtos químicos — não se confunde com a criação de requisitos para o exercício profissional. Trata-se, antes, de um critério de habilitação técnica vinculado à natureza do objeto contratual e ao risco sanitário envolvido na prestação do serviço, o que a insere no âmbito da competência normativa suplementar dos entes federativos para regular aspectos específicos de licitações públicas, sobretudo quando vinculados ao interesse local e à proteção de bens jurídicos sensíveis, como a saúde pública.
É importante destacar que a norma impugnada não proíbe o exercício de nenhuma profissão, tampouco cria um regime de credenciamento ou autorização profissional à margem dos conselhos de classe ou da legislação federal. A exigência se limita ao âmbito das contratações públicas e decorre do poder-dever da administração pública de estabelecer critérios técnicos que assegurem a idoneidade dos prestadores de serviço — em especial quando a atividade envolve manipulação de substâncias potencialmente nocivas ou risco à saúde coletiva.
Essa interpretação está alinhada ao artigo 196 da Constituição, que consagra o direito à saúde como um direito fundamental, assegurado mediante políticas sociais e econômicas destinadas a reduzir o risco de doenças e outros agravos, além de garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. A imposição de licença de funcionamento, nesse contexto, não configura excesso regulatório, mas sim um instrumento legítimo de controle administrativo orientado à prevenção de danos e à proteção do interesse público.
Além disso, a medida não afronta o princípio da isonomia nem viola a impessoalidade administrativa. Ao contrário, ela estabelece condição objetiva e previamente conhecida para todos os interessados, não impedindo a participação de empresas regularmente estabelecidas e licenciadas, mas apenas exigindo que cumpram requisitos mínimos de segurança sanitária, exigência que guarda direta relação com a natureza do serviço a ser prestado.
Portanto, ao reconhecer a constitucionalidade da norma distrital, o STF reafirmou a possibilidade de que os entes subnacionais adotem medidas regulamentares específicas em matéria de licitação, desde que respeitada a moldura das normas gerais federais, atuando em sintonia com os deveres constitucionais de proteção à saúde e de prevenção de riscos à coletividade. Trata-se, em última análise, de uma manifestação concreta da autonomia local dentro de um federalismo cooperativo, que busca conciliar uniformidade normativa com responsividade às realidades regionais.
Razoabilidade e ausência de ofensa à competitividade
O Supremo no julgamento da ADI 3.963/DF analisou também a alegação de que a exigência de apresentação de licença de funcionamento violaria o princípio da competitividade, consagrado no regime jurídico das licitações públicas. Tal princípio, previsto expressamente na legislação federal (Lei nº 8.666/1993, artigo 3º, e reafirmado pela Lei nº 14.133/2021), busca assegurar a ampla participação de interessados nas contratações públicas, como forma de garantir propostas mais vantajosas à Administração e promover a eficiência e a moralidade administrativa.
Entretanto, o STF entendeu que a exigência de licença de funcionamento não configura obstáculo indevido ou restritivo à competição, desde que estabelecida com base em critérios técnicos, objetivos e proporcionais. Nesse caso específico, trata-se de exigência voltada à verificação da capacidade técnica-operacional mínima das empresas concorrentes em setores sensíveis, como o de controle de pragas, higienização de reservatórios de água e manuseio de produtos químicos — atividades que apresentam risco sanitário relevante à saúde pública e exigem cumprimento de normas sanitárias e ambientais específicas.
A corte considerou que não se trata de uma barreira artificial, mas de mecanismo legítimo de qualificação, voltado a impedir a participação de empresas clandestinas, inaptas ou sem controle técnico-sanitário, que possam comprometer não apenas a qualidade da prestação do serviço, mas também a segurança dos usuários e o interesse público envolvido.
Sob a ótica da razoabilidade e proporcionalidade, a exigência está adequada ao fim que se propõe, pois não impede ou restringe indevidamente a entrada de licitantes qualificados, mas apenas condiciona a participação à comprovação de que a empresa está regularmente autorizada a funcionar e a operar de acordo com os padrões mínimos de segurança sanitária. Tal medida é, portanto, compatível com os princípios da administração pública (CF, artigo 37, caput), especialmente os da eficiência, legalidade e moralidade, que exigem da administração diligência na seleção dos seus contratados.
Ademais, a exigência é uniforme e objetiva, aplicando-se indistintamente a todos os interessados, o que afasta qualquer alegação de violação à isonomia ou de favorecimento indevido. Ao condicionar a habilitação à demonstração da regularidade técnica e sanitária da empresa, o poder público atua preventivamente, reduzindo o risco de inexecução contratual e de danos à coletividade, sem criar restrição desproporcional à livre concorrência.
Assim, o entendimento do STF reitera que o princípio da competitividade não pode ser interpretado de forma absoluta, devendo coexistir com outros valores constitucionais igualmente relevantes, como a proteção à saúde (artigo 196 da CF) e a defesa do interesse público. Em suma, a exigência impugnada passa incólume ao teste da razoabilidade, por representar medida técnica justificada, legítima e proporcional aos riscos da atividade contratada, inserida dentro dos parâmetros constitucionais e legais do regime licitatório.
Conclusão
A decisão do STF na ADI 3.963/DF representa uma valiosa reafirmação do equilíbrio federativo, ao reconhecer que a uniformização normativa promovida pela União por meio das normas gerais de licitação não exclui, mas sim admite, o exercício legítimo da competência suplementar pelos entes subnacionais. Trata-se de uma leitura moderna e cooperativa do federalismo brasileiro, que valoriza a capacidade normativa dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para adaptar regras gerais às suas realidades específicas, desde que respeitados os princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade, isonomia, eficiência e interesse público.
Nesse contexto, a exigência de licença de funcionamento prevista na Lei distrital nº 3.978/2007 se insere como mecanismo legítimo e proporcional de proteção à saúde coletiva, alinhado tanto ao artigo 196 da Constituição Federal quanto às diretrizes das Leis nº 8.666/1993 e nº 14.133/2021. Longe de restringir indevidamente a competitividade, a medida assegura um padrão mínimo de qualificação técnica, contribuindo para contratações públicas mais seguras, responsáveis e compatíveis com os riscos da atividade contratada.
Portanto, mais do que constitucional, a exigência é uma expressão concreta de boa governança administrativa. Reforça o compromisso do Estado com a prestação de serviços de qualidade e com a defesa do interesse público, sem renunciar à segurança jurídica e da integridade das contratações públicas. Trata-se, assim, de medida prudente, necessária e plenamente harmonizada com o pacto federativo e os princípios estruturantes do direito administrativo contemporâneo.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível aqui.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3963/DF. Relator: Min. Nunes Marques. Julgado em: 09 set. 2024. Disponível aqui.
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