AgRg no REsp 1.989.703/PR: relação entre multa compensatória e progressão de regime
30 de maio de 2025, 19h34
A decisão proferida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no AgRg no REsp 1.989.703/PR, de relatoria da ministra Daniela Teixeira, julgado no último dia 4 de fevereiro, que envolveu a colaboração premiada e o inadimplemento da multa compensatória devido à hipossuficiência financeira do colaborador, representa relevante marco no entendimento da relação entre os direitos do colaborador, os compromissos financeiros assumidos e a progressão do regime prisional.

Há necessidade, exposta a partir do julgamento do caso em questão, de reafirmar a necessidade de interpretação dos acordos de colaboração premiada de modo razoável, dispondo acerca da realidade socioeconômica do colaborador e a principiologia constitucional que norteia o direito penal e a Justiça Negocial, em si.
Em termos introdutórios, cabe destacar que, a princípio, o instituto da colaboração premiada (Lei nº 12.850/2013) é um negócio jurídico bilateral firmado entre as partes interessadas. Visualiza-se, portanto, a flexibilização da tradicional principiologia e processualística própria do processo penal, redistribuindo o focalizar ao consenso. Nesse sentido, a presunção de inocência, a legalidade e o devido processo legal interseccionam com o processo consensual, a confiança, a autonomia, além da boa-fé objetiva (Mendonça, 2017).
Cabe destacar que o acordo se diferencia do seu conteúdo. O primeiro é regido pelas regras procedimentais previstas na Lei nº 12.850/2013, alterada pela Lei nº 13.964/2019 (pacote anticrime), e, por analogia, pelas disposições do Código Civil, em razão de o acordo ser considerado um contrato (Rosa, 2024). Necessário destacar, ainda, que deve atender aos pressupostos objetivos estabelecidos nos artigos 6º e 7º da Lei nº 12.850/2013, assegurando que o investigado tenha sido assistido por defensor em todas as fases do procedimento (§§1º e 2º do artigo 3º-C da Lei nº 12.850/2013). A proposta deve ser acompanhada de anexos e elementos comprobatórios (§4º do artigo 3º-C da Lei nº 12.850/2013), e todos os atos devem ser devidamente registrados e gravados (§13 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013).
Quanto ao valor probatório, poderá haver a fundamentação da sentença condenatória mesmo sem o suporte de outras provas, uma vez que o Código de Processo Penal adota o princípio da verdade real, conferindo ao juiz liberdade na apreciação dos elementos probatórios, conforme o disposto no artigo 155. No entanto, de acordo com Capez (2024, p. 300), o Juízo de certeza necessário à prolação da decisão condenatória impossibilita que o conteúdo carente de detalhamento possa autorizar, unicamente, a imputação do delito.
Prós e contras da colaboração premiada
Dentre os aspectos positivos da colaboração premiada citados por Nucci (2024, p. 466) estão incluídas a compatibilidade com o princípio da proporcionalidade da pena, a possibilidade de instrumentalizar a traição em favor da persecução penal, a legitimidade dos meios empregados quando previstos no ordenamento jurídico, a ineficácia relativa da delação como reflexo da impunidade e da insuficiência estatal na proteção ao colaborador, a similaridade com outros institutos negociais já positivados, como a transação penal, o potencial efeito ressocializador do colaborador arrependido, a previsão de sanções para delações fraudulentas e a maleabilidade dos juízos éticos conforme o contexto normativo.
Destaca, ainda, o mesmo autor que, em relação aos pontos negativos da delação premiada, é possível dispor acerca do uso contraditório da traição para atenuação da punição, da inaplicabilidade do princípio de que os fins justificam os meios, da ineficácia na quebra da lei do silêncio no crime organizado, da indevida barganha do Estado com criminosos, além do risco de delações falsas motivadas por vingança (Nucci, 2024, p. 467).
Sopesando os pontos acima explicitados, cabe destacar que, enquanto tratativa processual, a presença dos institutos da colaboração premiada reflete a busca para otimização da atuação do Estado. À ocasião em que oferece ao colaborador uma redução de pena ou outros benefícios, há imprescindibilidade do oferecimento de contribuição significativa para a investigação ou, ainda, a obtenção de provas no processo criminal.

Cabe destacar, nesse sentido, que a Justiça Negocial, por sua vez, é um conceito que se insere dentro de um sistema penal mais flexível — ou, pelo menos, na tentativa de disposição deste – permitindo a negociação dos termos da pena entre o réu e o Ministério Público.
De acordo com o ministro Og Fernandes, no julgamento do AgRg na APn 940/ DF, em 15 de maio de 2024, “o acordo de colaboração premiada constitui importante ferramenta de um modelo consensual de justiça, possuindo natureza de negócio jurídico bilateral e personalíssimo”. Dessa forma, as declarações do colaborador constituem parte integrante da fase de negociação, devendo ser prestadas perante a autoridade policial ou o órgão ministerial, na presença do advogado do investigado, sendo vedada até mesmo a participação do juiz (artigo 4º, § 6º, da Lei nº 12.850/2013).
Ao contrário da rígida imposição de sanções automáticas, há evidente aposta na individualização da pena, permitindo devolutiva ajustada às circunstâncias do infrator. Há que se dispor, ainda, acerca da necessidade de garantir a justiça e a reparação do dano causado à sociedade enquanto elemento precípuo.
O acordo de colaboração premiada, nesse contexto, surge enquanto instrumento jurídico que deve, em teoria, refletir a negociação entre as partes, equilibrando, nesta ocasião, a efetividade da punição aplicada ao colaborador e a possibilidade de ampliação do lastro probatório e investigado, a partir do conteúdo trazido.
Contudo, para que seja efetiva, precisa ser sensível aos aspectos próprios à realidade do colaborador, pois, caso contrário, se transformaria em mera formalidade punitiva, desconsiderando a capacidade efetiva do colaborador de cumprir as condições impostas.
O inadimplemento da multa e a hipossuficiência financeira
No caso aqui tratado, a 5ª Turma do STJ, a partir da relatoria da ministra Daniela Teixeira, tratou acerca da impossibilidade de cumprimento da multa compensatória prevista no acordo de colaboração premiada devido à hipossuficiência financeira do colaborador.
Nesse sentido, estabeleceu-se, no julgamento do agravo regimental em recurso especial, por unanimidade, que a falta de pagamento da multa, quando acompanhada de prova inequívoca da impossibilidade financeira do réu, não deve ser impeditivo para a progressão de regime. O entendimento em questão é alinhado à interpretação de que a Justiça Negocial, em seus termos, deve observar a pormenorização do caso e, precipuamente, os direitos fundamentais próprio à individualidade daquele que restou condenado.
Mediante análise do conteúdo decisório, é possível dispor que a progressão de regime tem como fundamento não, exclusivamente, o cumprimento de uma obrigação financeira, mas, também, o mérito do condenado em relação aos quesitos objetivos e subjetivos próprios ao cumprimento da pena. Assim, a imposição de um obstáculo financeiro não pode prevalecer quando há comprovação evidente, por parte do colaborador, que a sua situação econômica é insuficiente para cumprir as condições do acordo, em sua totalidade.
Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, em situação análoga, consolidou o entendimento de que, quando a condenação envolve pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da multa impede a extinção da punibilidade. Portanto, para que a punibilidade seja extinta, não basta o cumprimento da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, havendo necessidade de pagamento da multa.
No entanto, há uma exceção a essa regra: caso o condenado alegue e comprove sua incapacidade financeira para quitar a multa, a punibilidade poderá ser extinta, salvo se o Estado demonstrar que ele possui condições econômicas para o pagamento, nos temos do julgamento dos Recursos Especiais 2.090.454-SP e 2.024.901-SP, sob relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, no Tema 931 dos Recursos Repetitivos.
Seguindo esse entendimento, a 5ª Turma do STJ consolidou que a exigência do pagamento da multa como requisito para a progressão de regime não contraria as normas constitucionais.
Sintetiza-se: em regra geral, o inadimplemento da multa penal impede a progressão de regime, salvo se houver comprovação inequívoca da hipossuficiência do condenado, não podendo, esta, ser presumida, conforme decidido no AgRg no REsp 2.058.155/SP, sob relatoria do ministro Messod Azulay Neto.
Denota-se, portanto, que as condições financeiras do colaborador/réu não podem se configurar barreiras intransponíveis à obtenção dos benefícios legais próprios à situação processual apresentada, a exemplo da progressão de regime. O entendimento é, dessa forma, apoiado na principiologia constitucional, a exemplo da dignidade humana e da proporcionalidade, em si.
O acórdão do STJ estabelece precedente relevante para a interpretação e aplicação dos acordos de colaboração premiada, principalmente no que diz respeito à obrigação financeira do colaborador, seguindo entendimento análogo preceituado, anteriormente.
Conclusão
A decisão proferida no AgRg no REsp 1.989.703/PR pela 5ª Turma do STJ representa marco relevante na evolução da jurisprudência sobre colaboração premiada e execução penal. O entendimento consolidado reforça que a Justiça Penal deve estar pautada na equidade e na proporcionalidade, evitando que sanções financeiras se tornem obstáculos intransponíveis ao exercício de direitos fundamentais.
Ao reconhecer que a hipossuficiência financeira do colaborador não pode impedir a progressão de regime, o STJ reafirma a necessidade de uma interpretação mais humanizada dos acordos de colaboração premiada.
Há contribuição, portanto, para o fortalecimento da justiça negocial ao impedir que o acordo seja utilizado como ferramenta de pressão econômica desproporcional sobre o colaborador. A imposição de obrigações incompatíveis com a realidade financeira poderia transformar o instituto em um mecanismo de punição excessiva, em contradição a proposição inicial para otimizar a produção de prova e responsabilizar os infratores. Dessa forma, o acórdão reforça que a colaboração premiada deve equilibrar a efetividade da persecução penal com o respeito aos direitos do colaborador, garantindo que as condições impostas sejam exequíveis e proporcionais à sua capacidade real de cumprimento.
Além disso, há ampliação sobre o papel da colaboração premiada dentro do sistema de justiça criminal, especialmente no que tange à sua aplicação prática e aos impactos sobre o colaborador. Ao afastar a vedação à progressão de regime quando há comprovação de hipossuficiência financeira, o STJ estabelece um precedente que contribui para uma execução penal mais justa, evitando que fatores externos, alheios à conduta do condenado, comprometam o cumprimento da pena.
Outro aspecto relevante desse julgamento é sua influência sobre futuras interpretações dos acordos de colaboração premiada, especialmente no que diz respeito à necessidade de análise concreta das condições do colaborador antes da imposição de obrigações financeiras. Dessa forma, o reconhecimento de que a inadimplência da multa, quando justificada, não deve gerar restrições indevidas reforça a necessidade de uma abordagem individualizada e contextualizada.
Portanto, o acórdão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria da ministra Daniela Teixeira, representa avanço na aplicação da colaboração premiada e na uniformização jurisprudencial, mas, também, passo importante para o fortalecimento da Justiça Negocial e das condições advindas desta.
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Referências
BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Dispõe sobre organizações criminosas e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 ago. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.989.703/PR, Relator: Ministra Daniela Teixeira, 5ª Turma, julgado em 04/02/2025 (Info 839).
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg na APn 940/DF. Relator: Ministro Og Fernandes. Corte Especial. Julgado em 17 de maio de 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.090.454-SP. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Terceira Seção. Julgado em 28 de fevereiro de 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.024.901-SP. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Terceira Seção. Julgado em 28 de fevereiro de 2024.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 31. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020
NUCCI, Guilherme de S. Código de Processo Penal Comentado – 23ª Edição 2024. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
ROSA, Luísa Walter da. Anulação, resolução e rescisão do acordo de colaboração premiada: diferenças entre as formas de extinção do contrato. Consultor Jurídico, 1 abr. 2024.
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