A exigência do BL original em papel em tempos digitais
28 de maio de 2025, 11h27
Nesta mês, fui procurado por um cliente com uma situação que, embora recorrente na prática do direito marítimo e aduaneiro, não deixa de impressionar por envolver uma transportadora marítima internacional amplamente conhecida. Refiro-me à retenção de cargas, mesmo após o desembaraço aduaneiro, sob a justificativa de necessidade de apresentação da via original do Conhecimento de Embarque (BL — Bill of Lading), por meio de bloqueio do CE Mercante sob a fundamento (falso) de pendência de frete.

No caso que me foi apresentado, a via original do BL estava a caminho do Brasil por meio de remessa expressa, mas sua entrega foi impossibilitada pela retenção decorrente de uma greve da autoridade aduaneira, um fator completamente alheio à vontade do importador.
É verdade que o transportador pode condicionar a entrega da carga ao pagamento do frete, como estabelece o Decreto-Lei nº 116/67:
Art. 7º Ao armador é facultado o direito de determinar a retenção da mercadoria nos armazéns, até ver liquidado o frete devido ou o pagamento da contribuição por avaria grossa declarada.
Essa prerrogativa legal, entretanto, não autoriza a retenção da carga sob condição de apresentação da via original do BL. Além disso, o cerne da questão no caso específico, e o que motivou esta reflexão, reside no evidente comportamento contraditário do transportador:
- o agente marítimo representante do transportador no exterior emite o BL e o envia para o destinatário;
- a transportador informa seu agente no Brasil da emissão do BL; e
- o agente marítimo representante do transportador no Brasil cumpre o procedimento de fornecer à autoridade aduaneira, via Siscomex Carga, todas as informações detalhadas do BL [1].
Retenção de mercadoria
Diante desse cenário, como pode a mesma entidade ou grupo econômico que forneceu os dados para a autoridade aduaneira, e que está ciente da impossibilidade momentânea de apresentação do BL original por motivo de força maior, condicionar a entrega da mercadoria já nacionalizada a essa apresentação? A situação se agrava quando a justificativa para o bloqueio é uma suposta pendência de frete, frontalmente contrariada pelo próprio BL que indica o pagamento na origem (prepaid).

A exigência da via original do BL, especialmente em face de um conhecimento eletrônico já processado pela aduana com base nas informações fornecidas pelo próprio agente, e diante de um impedimento fático para sua apresentação imediata, levanta questionamentos sobre a proporcionalidade e a boa-fé na condução dessas operações.
O Poder Judiciário brasileiro tem sido chamado a se manifestar sobre tais práticas. A análise de alguns julgados recentes ilustra como os tribunais têm abordado a matéria, buscando coibir formalismos excessivos e proteger o fluxo do comércio internacional.
Exemplos de julgamentos
Um exemplo é a Apelação Cível nº 1015103-27.2022.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo. No mérito, o acórdão foi incisivo:
“MÉRITO. Retenção de mercadoria. Inserção indevida de restrição no Siscomex. Desnecessária apresentação da via original do ‘conhecimento de embarque’ (BL Bill Of Lading). Entrega da mercadoria condicionada à comprovação do adimplemento de todos os custos do transporte. Não cabimento. Incontroverso que a parte autora efetuou o pagamento do frete (…). Abusiva a retenção da mercadoria, porquanto as hipóteses não se encontram elencadas no Decreto-Lei nº 116/67.”
O julgado também ponderou sobre o formalismo da exigência:
“…exigir o ‘Conhecimento de embarque’ original, no caso, configura formalismo exagerado, que contraria o princípio da instrumentalidade das formas e a praxe comercial marítima que exige celeridade, notadamente, quando não se nega a relação contratual entre as partes, o pagamento do frete e não demonstrado qualquer indício de circulação do título.”
Adicionalmente, ressaltou a dispensa do BL físico frente ao Conhecimento Eletrônico:
“…o § 2º do art. 18 da mesma instrução normativa [IN/RFB 680/2006, com redação dada pela Instrução Normativa RFB 1759/2017] dispensa a exibição do conhecimento de embarque ‘c) nos despachos de mercadoria acobertada por Conhecimento Eletrônico (CE), informado à autoridade aduaneira na forma prevista na legislação específica;’1 hipótese dos autos.”
De forma similar, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na Apelação Nº 5003226-67.2020.8.24.0135/SC, manifestou-se. A ementa do acórdão é elucidativa:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DIREITO MARÍTIMO. (…) MÉRITO. ADUZIDA NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DA VIA ORIGINAL DO CONHECIMENTO DE EMBARQUE. NÃO ACOLHIMENTO. INFORMAÇÃO NO SISCOMEX DE QUE A CARGA FOI RETIDA PELO ARMADOR ANTE A PENDÊNCIA DE PAGAMENTO DO FRETE. QUITAÇÃO REALIZADA PELA AUTORA. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DA VIA ORIGINAL DESCABIDA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DOS DEMAIS TRIBUNAIS PÁTRIOS. RETENÇÃO INDEVIDA. SENTENÇA MANTIDA.”
No voto condutor, o relator salienta:
“Não obstante, há julgados nesta Corte e nos demais tribunais pátrios reconhecendo ser descabida a exigência de apresentação da via original do Bill of Lading para a entrega das mercadorias após o pagamento do frete…”
Legislação comercial
A legislação comercial histórica, inclusive, já previa mecanismos para lidar com a ausência de vias do conhecimento de embarque, ainda que por extravio. O artigo 580 do Código Comercial (Lei nº 556/1850), embora antigo, traz um princípio de razoabilidade: “Alegando-se extravio dos primeiros conhecimentos, o capitão não será obrigado a assinar segundos, sem que o carregador preste fiança à sua satisfação pelo valor da carga neles declarada.”
Embora o caso concreto que motivou esta reflexão não seja de extravio, mas de retenção por evento externo, chama a atenção que o transportador sequer cogitou alternativas como a prestação de uma garantia para a liberação da carga, optando pela via da retenção pura e simples.
A fundamentação das decisões judiciais que afastam a obrigatoriedade cega da apresentação do BL original geralmente se ancora no citado Decreto-Lei nº 116/67, que define as hipóteses de retenção legítima de mercadorias (como a falta de pagamento do frete ou contribuição por avaria grossa). A exigência da via física do BL, quando o frete está quitado e as informações já foram validadas perante a autoridade aduaneira pelo próprio agente, é interpretada como uma conduta que excede os limites legais e contraria a boa-fé, por se tratar de verdadeiro venire contra factum proprium.
A análise desses precedentes e da legislação aplicável revela a priorização a substância sobre a forma excessiva, especialmente quando a conduta do próprio transportador (ou de seu agente) contribuiu para o processamento eletrônico da importação. A questão, portanto, não é negar a importância do Conhecimento de Embarque, mas ponderar sobre a razoabilidade e legalidade de sua exigência física como condição absoluta para a entrega da carga em qualquer caso.
[1] Este ato é indispensável para a geração do Conhecimento Eletrônico (CE-Mercante) e permite ao importador o registro da Declaração de Importação (DI).
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