Escritos de Mulher

A crença do julgador e a seletividade penal racial

28 de maio de 2025, 8h00

A forma como juízes avaliam provas no processo penal brasileiro é marcada por um modelo que, embora consagrado na doutrina tradicional, carece de parâmetros objetivos e de compromisso com a racionalidade pública: trata-se do modelo da livre convicção motivada. Por esse paradigma, basta que o julgador declare estar convencido, apresentando alguma justificativa formal, para que se considere legítima a decisão. Contudo, essa liberdade decisória, quando não submetida a critérios epistêmicos rigorosos, abre margem a subjetivismos, arbitrariedades e à reprodução de práticas seletivas — especialmente contra a população negra.

Esse modelo, ao ser aplicado de forma abstrata e descomprometida com a estrutura racional da decisão penal, tem funcionado como um canal por onde flui a seletividade penal racial. A ausência de standards probatórios definidos permite que estereótipos raciais e vieses implícitos influenciem silenciosamente a valoração da prova, atingindo desproporcionalmente réus negros, pobres e periféricos. A crença subjetiva do juiz — não explicitada, não justificada, não reconstruível — torna-se critério oculto e incontrolável para a imposição da pena, abrindo margem a condenações injustas sob a aparência de legalidade.

Embora o artigo 155 do Código de Processo Penal busque evitar decisões baseadas exclusivamente em elementos colhidos no inquérito policial, a prática revela outra realidade: condenações são proferidas com base em provas frágeis, reconhecimentos sem amparo técnico, depoimentos isolados e sem verificação de confiabilidade. Muitas vezes, esses elementos seriam insuficientes para condenar um réu branco em circunstâncias similares. No entanto, a livre convicção judicial, exercida sem filtros racionais, permite que tais provas sustentem condenações quando o acusado se encaixa no estereótipo do “infrator típico”.

O risco dessa estrutura é ainda mais evidente no contexto racial brasileiro. A seletividade penal não nasce apenas na atuação da polícia ou do Ministério Público — ela também se reproduz na sentença penal, especialmente quando não há exigência de justificação rigorosa. A cor da pele, o endereço e o histórico social do acusado funcionam como gatilhos inconscientes para julgamentos intuitivos, que se disfarçam de racionalidade jurídica. O racismo, assim, se converte em raciocínio judicial sem que o julgador tenha sequer consciência do viés que orienta sua convicção.

Esse modelo é particularmente relevante em sistemas marcados por desigualdade estrutural, como o sistema penal brasileiro, onde determinadas crenças — como a associação entre raça e criminalidade — podem interferir de forma implícita no convencimento do julgador. A aceitação racional, ao exigir justificação intersubjetiva e controle argumentativo, atua como barreira contra inferências sustentadas em estigmas sociais internalizados.

Crença e conhecimento

A compreensão do que significa aceitar racionalmente que um fato está provado exige, antes de tudo, distinguir entre três conceitos centrais: crença, conhecimento e aceitação. Muitas vezes usados de forma intercambiável, esses termos têm implicações normativas e epistêmicas distintas no contexto jurídico.

A crença é um estado psicológico subjetivo: alguém crê que algo é verdadeiro quando sente convicção íntima de que aquilo corresponde à realidade. No entanto, como argumenta Ferrer Beltrán, a crença é involuntária, não pode ser exigida institucionalmente e tampouco é suscetível de justificação racional perante terceiros [1]. A crença pode existir psicologicamente — nenhum juiz decide sem crer no que decide —, mas, ela deve ser o ponto final de um argumento racional, e não o ponto de partida. Uma decisão judicial baseada exclusivamente na crença do julgador está fora do alcance de controle, e por isso é incompatível com a racionalidade processual. Informações baseadas em crenças equivocadas, preconceitos ou vieses não devem ser consideradas relevantes em um processo judicial [2].

Reprodução

O conhecimento, por sua vez, envolve uma crença verdadeira e justificada, conforme o modelo clássico da epistemologia. No entanto, exigir conhecimento como condição para aceitar que um fato está provado seria incompatível com a natureza contingente e limitada da prova judicial. A incerteza, a parcialidade das fontes e os limites temporais do processo impedem o acesso pleno à verdade objetiva, tornando o conhecimento, nesse sentido estrito, um ideal inalcançável no processo penal.

A alternativa proposta por Ferrer é o conceito de aceitação racional [3]. Aceitar uma proposição como verdadeira no processo penal é uma decisão voluntária, tomada com base nas razões disponíveis, e justificada em termos contextualmente adequados. Essa aceitação não requer certeza absoluta, mas sim suficiência argumentativa diante do padrão de prova aplicável ao caso. Trata-se de uma decisão que pode ser controlada intersubjetivamente, revisada em grau recursal e avaliada por seus méritos racionais.

Nesse sentido, a aceitação racional funciona como uma ponte entre a função cognitiva e a função institucional do processo penal. Ao mesmo tempo em que reconhece a insuficiência epistêmica da crença e a inalcançabilidade do conhecimento, ela oferece um critério objetivo e transparente para fundamentar a valoração da prova, permitindo decisões fundadas em razões e não em intuições. Essa concepção exige, portanto, que o julgador explicite os motivos pelos quais considera uma hipótese fática como aceitável, viável e juridicamente relevante à luz das provas disponíveis. O juiz não deve persuadir ninguém, mas sim expor fundamentos que possam ser reconhecidos como válidos e confiáveis sob um controle intersubjetivo de racionalidade [4].

Diante disso, é imprescindível adotar uma nova epistemologia da prova penal, baseada em dois pilares fundamentais: racionalidade epistêmica e justificação intersubjetiva. A racionalidade exige que o juiz fundamente suas decisões com base em inferências válidas, consistentes e verificáveis. Não se trata apenas de dizer que determinada prova convenceu, mas de explicar por que ela convenceu, como se conecta aos demais elementos do processo e por que foi preferida a outras possíveis interpretações [5].

A justificação intersubjetiva, por sua vez, impõe que a decisão possa ser compreendida, debatida e criticada por terceiros — especialmente pelas partes e pelos tribunais. Essa exigência decorre do princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF) e do dever de fundamentação (artigo 93, IX, CF), ambos pilares do Estado Democrático de Direito. Uma decisão que não explicita seus critérios e inferências não pode ser controlada, não pode ser reformada e, portanto, não pode ser considerada legítima nem constitucionalmente adequada.

A racionalidade epistêmica consiste na obrigação de que a decisão judicial — especialmente aquela que declara a existência de fatos penalmente relevantes — seja resultado de um processo inferencial estruturado e comprometido com a busca pela verdade processual [6].

Para concretizar essa transformação, é necessário adotar standards probatórios claros. A condenação penal, por exemplo, deve ser proferida apenas quando a hipótese acusatória for comprovada com alto grau de segurança, afastando racionalmente qualquer dúvida plausível sobre a inocência do réu. Isso exige que o julgador explicite o caminho inferencial que o levou à conclusão, indique as provas utilizadas e analise criticamente as versões conflitantes. A mera invocação de convencimento pessoal deve ser substituída por um discurso epistêmico rigoroso, que possa ser reconstruído publicamente e revisado criticamente.

Outro passo indispensável é o enfrentamento dos vieses implícitos. A correlação ilusória que associa negritude à criminalidade, tão presente na cultura institucional do sistema penal, precisa ser desmontada. Para isso, é fundamental investir na formação crítica de magistrados, promotores e defensores, incorporando conteúdos de epistemologia jurídica, teoria da prova e letramento racial. O reconhecimento de que o racismo contamina as percepções de credibilidade, periculosidade e culpabilidade é essencial para uma justiça verdadeiramente equitativa.

Além disso, a adoção de ferramentas como modelos lógicos de inferência, análise de hipóteses alternativas e reconstruções narrativas racionais pode favorecer uma cultura decisória mais técnica, mais transparente e menos sujeita a estigmas. A sentença penal não deve ser uma colagem de impressões subjetivas, mas sim uma narrativa crítica dos fatos, sustentada em provas, submetida ao contraditório e organizada de forma lógica e pública. Essa estrutura reforça a possibilidade de controle institucional e fortalece a confiança social na justiça.

Superar o modelo da livre convicção judicial não é um desafio técnico apenas. É uma tarefa política e institucional. Um processo penal democrático e não racista exige decisões transparentes, fundadas em critérios objetivos, livres de estigmas e comprometidas com a proteção dos direitos fundamentais. A razão, e não a crença pessoal; a prova, e não o estereótipo; a justiça, e não a reprodução da violência institucional, devem ser os verdadeiros guias da decisão judicial. Somente com um compromisso profundo com a racionalidade e a igualdade será possível transformar o processo penal em instrumento de justiça substantiva e não de perpetuação de desigualdades históricas.

Portanto, reformar a epistemologia da prova penal brasileira é, também, reconfigurar as relações de poder que estruturam o sistema de justiça. Trata-se de deslocar o centro da decisão — da figura subjetiva do juiz — para os critérios de controle argumentativo, revisibilidade e correção racional. Isso não significa enfraquecer a independência judicial, mas sim fortalecê-la ao submetê-la aos marcos constitucionais da transparência, da igualdade e do não racismo.

 


[1] FERRER-BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito. 2ª ed, São Paulo: JusPODVM, 2024, pp. 127 e s.

[2] VÁSQUEZ, Carmen; FERNANDEZ LÓPEZ, Mercedes. La conformación del conjunto de elementos de juicio: admisión de pruebas. FERRER BELTRÁN, Jordi. Manual de razonamiento probatorio. Ciudad de México, México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 137-222, p. 156.

[3] Op. Cit., p. 157.

[4] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 273.

[5] Tanto STF (Vide ARE 1482966 AgR; RE 1.434.909 AgR) como STJ (AgRg no REsp nº 2.143.670/SP; AgRg no AREsp nº 2.149.815/MG) têm entendimento que o juiz não está obrigado a enfrentar todas as hipóteses alternativas, ou seja, não se exige do julgador que analise todas as teses apresentadas pela defesa, o que já revela o baixo grau de exigência probatória.

[6] Apesar da essencialidade do tema, este artigo não debaterá as noções de verdade e suas teorias e sua correlação com a racionalidade da prova. Contudo, entendemos que “a concepção racionalista da prova assume que a averiguação da verdade é o objetivo fundamental da atividade probatória”. ACCATINO, Daniela. Teoria da prova: somos todos “racionalistas” agora? MATIDA, Janaina; MOSCATELLI, Lívia. Os fatos no processo penal. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, pp. 19-41, p. 32.

Autores

  • é doutora em Direito Constitucional com linha de pesquisa em Penal pelo IDP-Brasília, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-graduada em Direito Processual, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal), especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade de Göttingen (Alemanha), procuradora do Distrito Federal, advogada criminalista e em administrativo sancionador, professora universitária, palestrante, autora de artigos e livro ex-defensora pública do Distrito Federal.

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