Opinião

Merricks vs. Mastercard e a colossal class action que uniu autor e réu contra financiador

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27 de maio de 2025, 6h34

Não é novidade que o setor de pagamentos vem evoluindo de forma bastante acelerada. Desde a criação das carteiras digitais (e-wallets), até a possibilidade de pagamento por meio do chamado Pix [1], é incontroverso que as mudanças ocorridas no mercado vêm se consolidando como algumas das mais disruptivas na economia atual.

Ocorre que, como também se sabe, as maiores evoluções tecnológicas se operaram não no setor de pagamentos, mas sim no informacional. Junto ao aprimoramento e facilitação na concretização de uma transação financeira, veio também uma maior conscientização pelo consumidor quanto à forma de aperfeiçoamento de tais serviços, esse sim, o maior beneficiado (ou ao menos quem deveria ser) de tais evoluções.

E foi justamente nesse contexto que uma das maiores e mais emblemáticas ações coletivas da histórica do Reino Unido teve seu pontapé inicial. Em Walter Hugh Merricks CBE v Mastercard Incorporated and Others [2], Walter Hugh Merricks propôs, em setembro de 2016, uma class action pelo regime “opt-out” contra a Mastercard, na condição de representante de cerca de 46 milhões de consumidores.

A class action, proposta perante o Competition Appeal Tribunal (CAT) do Reino Unido, tinha como objeto as chamadas Multilateral Interchange Fees (MIFs) padrão da Mastercard, quais sejam taxas cobradas pelo banco emissor do cartão do adquirente do produto do banco do estabelecimento vendedor de tal produto quando bens e serviços eram pagos pelo consumidor.

Restrição de competição

Em 2007, a Comissão Europeia proferiu decisão no sentido de que as MIFs cobradas dentro da zona da União Europeia acabariam por consumar restrição de competição, configurando violação da legislação concorrencial europeia [3]. Referida decisão veio a ser confirmada pela European Court of Justice em 2014 [4].

O representante da classe alegou que as MIFs cobradas dentro da zona da União Europeia acabaram por inflar o nível das MIFs aplicadas para transações domésticas no Reino Unido, bem como que praticamente a totalidade das cobranças de ilegais de MIFs pagas pelos estabelecimentos vendedores acabavam por serem repassadas a consumidores, de forma que tais consumidores acabavam por pagar mais em compras por estabelecimentos que aceitassem os cartões da bandeira Mastercard.

A class action de cerca de 15 bilhões de libras proposta por Merricks teve seus custos financiados pelo investidor Innsworth Capital Limited, um litigation funder especializado em litígios comerciais e arbitragens cujo valor de face excede 100 milhões de dólares, detido pela Elliott Investment Management L.P., uma das maiores e mais sofisticadas gestoras de ativos distressed do mundo, com cerca de 72,7 bilhões de dólares em ativos.

Após anos de litígio, com direito a recusa de certificação da ação por parte do CAT, recusa essa posteriormente revertida em 2022, decisões a respeito de matérias preliminares como prescrição, nexo causal e especificidades quanto a certos tipos de cartões da bandeira Mastercard, as partes celebraram acordo em dezembro de 2024.

Acordo no Judiciário

No âmbito da composição, a Mastercard, inobstante não tenha consentido em admitir qualquer tipo de responsabilidade, concordou em pagar 200 milhões de libras ao representante da classe dos consumidores, em troca da desistência da ação por parte de Merricks.

As partes, então, apresentaram medida conjunta ao CAT, visando a obter do poder judiciário inglês uma decisão homologatória de aprovação acordo. Merricks e Mastercard propuseram uma estrutura de distribuição de recursos dividida em três “potes”:

  • 100 milhões de libras a serem distribuídas de forma igualitária para cada um dos representados que submetessem um pleito de recebimento, condicionados a um cap, sendo que Mastercard propôs 45 libras por pessoa e Merricks 70 libras por pessoa. Nesse ponto, Merricks ainda propôs que quaisquer valores do referido montante que não fossem demandados seriam destinados ao financiador, o fundo gerido pela companhia Innsworth;
  • Cerca de 50 milhões de libras seriam pagas ao financiador, representando o valor disponibilizado pela Innsworth para financiar os custos do procedimento, acrescidos de uma estimativa de distribuição de custos a ser determinada ao final do imbróglio; e
  • Cerca de 50 milhões de libras destinadas para tanto o retorno do financiador, quanto para incrementar o montante a ser recebido pelos consumidores (caso houvesse demanda para tanto), e ainda uma parcela para uma entidade de acesso à justiça, denominada Access to Justice Foundation.

Restou ainda acordado que a Mastercard iria renunciar ao seu direito de recuperar a sucumbência (adverse costs) adicional a ela devida por Merricks, montante estimado entre 1,3 milhões de libras a 6,8 milhões de libras.

Spacca

A despeito de Merricks e Mastercard terem se acertado, o fundo gerido pela Innsworth publicamente se manifestou contrariamente à proposta de acordo, argumentando que o valor pactuado seria muito baixo vis-à-vis o valor original da ação.

Em virtude da discordância o veículo da gestora Elliott apresentou, ao final de 2024, requerimento de arbitragem contra Merricks, à alegação de violação dos termos do contrato de financiamento de litígio entre eles pactuado. Merricks, na arbitragem (ao que consta ainda em andamento), por mais incrível que possa ser, está sendo financiado pelo próprio réu da ação coletiva que ele mesmo havia proposto, ou seja, a Mastercard.

Acordo homologado com polêmica

Após poucos meses de deliberação, inclusive com audiência cuja intervenção por parte da Innsworth foi deferida, o CAT proferiu recente decisão aprovando a homologação do acordo [5].

A decisão é emblemática dado que um órgão jurisdicional (o CAT) tem a prerrogativa de avaliar (i) se um acordo pactuado entre requerente e réu é justa e razoável e (ii) a forma de distribuição dos recursos a serem desembolsados pela Mastercard para ressarcir a classe de requerentes.

Quanto ao primeiro ponto, o CAT destacou que estaria “entirely satisfied that the terms of the settlement are just and reasonable.”

Isso porque o valor de 200 milhões de libras se referia apenas a cerca de 5% do valor original da ação, uma vez que a Mastercard teve êxito em uma decisão de causalidade que afetou 95% do valor original da ação, já que Merricks não teria demonstrado que as MIFs do Reino Unido seriam mais baixas em um mundo hipotético no qual o valor das MIFs cobradas dentro da zona da União Europeia fosse zero.

A despeito de o financiador ter arguido que Merricks deveria ter prosseguido com o pleito da causalidade descrito acima (counterfactual causation), o CAT rejeitou a alegação da Innsworth, avaliando que a probabilidade de sucesso do referido pleito seria baixa, bem como que caso a disputa procedesse para a fase de julgamento, haveria risco de Merricks sequer receber as 200 milhões de libras pactuadas no acordo, uma vez que o CAT poderia julgar favoravelmente à Mastercard. Assim, entendeu o CAT que o acordo por menos de 2% do valor demandado originalmente estaria devidamente justificado.

Já no que diz respeito ao segundo ponto, o CAT manteve a estrutura dos três “potes” apresentada pelas partes, mas alterou a distribuição proposta. Quanto ao primeiro “pote”, o tribunal concorrencial referendou a proposta dos 50% das 200 milhões de libras a serem divididos entre os representados. Nesse ponto, o CAT fez constar que Merricks deveria ser enaltecido em sua busca de um valor razoável de distribuição para os consumidores. O CAT ainda rejeitou os argumentos trazidos pela Innsworth de que deveria fazer jus à maior parte do valor do acordo.

Com relação ao “pote” (ii), o tribunal concorrencial permitiu a distribuição de custos já desembolsados, mas deferiu a determinação dos custos a serem quitados a um costs judge (figura existente no ordenamento jurídico inglês), para que esse juiz informasse ao CAT se referidos valores seriam razoáveis e proporcionais.

Retorno do financiador

Já no que tange ao retorno do financiador, o CAT estabeleceu um múltiplo (returno n investment) de 1,5x, o que representaria o risco tomado pelo investidor, considerando o baixo valor do acordo versus o valor original da causa. O valor referente ao retorno da Innsworth sairia tanto do “pote” (ii), quanto do pote (iii).

Por fim, o “pote” (iii) compreenderia ainda quaisquer recebimentos para os membros da classe representada por Merricks que excedessem o cap, caso haja demanda de consumidores para tanto, bem como recursos a serem desembolsados à Access to Justice Foundation.

A disputa envolvendo Merricks v Mastercard é paradigmática por uma série de aspectos.

Primeiro, porque se trata de um caso em que a polêmica envolvendo o não menos emblemático caso Paccar [6] é colocada à prova, dado que as partes tiveram de alterar o contrato de financiamento de originalmente um percentual sobre o valor recebido pela parte financiada, para um múltiplo do capital investido. Referida alteração embasou a decisão do CAT de determinar o retorno de 1,5 capital investido ao fundo gerido pela Innsworth.

Segundo, porque o CAT, ao rejeitar os argumentos do investidor, tratou de fazer detida análise dos termos do litigation funding agreement, pontuando que a Cláusula 12.1(ii), a qual o fundo alegou que se trataria de um retorno mínimo de 179 milhões de libras, mas que o tribunal concorrencial inglês entendeu se tratar, em realidade, de cláusula de rescisão, por meio da qual a Innsworth poderia rescindir o contrato de financiamento caso entendesse que seu retorno não chegaria às 179 milhões de libras destacadas acima.

Decisão mostra diferenciação entre as partes

Mas ainda mais interessante do que os dois pontos mencionados acima é a diferenciação feita pela decisão quanto ao representante da classe (Merricks) e o financiador.

Destacou a decisão que:

A commercial litigation funder has a portfolio of cases and seeks to make a high return on that portfolio. To continue an individual case which has, for example, a 30% chance of achieving £500 million as opposed to settling it for £200 million may therefore be a commercially sensible approach for the funder, since a much higher settlement is likely to bring it a much higher return. However, for the class representative, even a 15% chance that the case will fail altogether may be an unacceptable risk: that would be a disaster for the CMs, for whom this is their only case.

É dizer: um investidor profissional, detentor de um portfólio de casos, pode se dar ao luxo de “esticar mais a corda” para buscar retornos mais elásticos, ainda que a corda acabe rompendo (o caso não dê certo), uma vez que ele detém o hedging das outras demandas. A parte financiada, por sua vez, não detém a mesma prerrogativa, já que o caso financiado pode ser seu “Only Shot”.

Tal como Paccar, Merricks v Mastercard parece ser um divisor de águas nas discussões quanto à necessidade de regulamentação do instituto do financiamento de disputas. Malgrado sejam evidentes os benefícios que a modalidade de investimento traz para a concretização do direito fundamental de acesso à Justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Carta Magna Brasileira [7], a decisão traz boas reflexões quanto à forma de operacionalização do instituto e eventuais limites a serem impostos a tomadores e investidores.

Financiamento de litígios

No Brasil, o financiamento de litígios vem se sedimentando como modalidade de investimento, comumente compondo parcela do portfólio de investimentos de gestoras de ativos alternativos.

A compreensão da prática é de suma importância para que, caso se entenda pela necessidade de regulamentação e imposição de limites, que tais limitações prestigiem o equilíbrio entre os igualmente relevantes princípios de acesso à Justiça, razoabilidade e pacta sunt servanda, a fim de se evitar decisões como o recente precedente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que entendeu pela configuração de fraude à execução por cessão de crédito que sequer existia [8].

Feitas as considerações e à luz do que se tem visto em jurisdição cujo instituto já beira 5 bilhões de libras[9], a questão que permanece é: seria salutar regular o financiamento de disputas no Brasil? A reflexão é relevante, sob pena de termos um Merricks v Innsworthà brasileira”.

 


[1] aqui

[2] aqui

[3] aqui

[4] aqui

[5] aqui

[6] R (PACCAR Inc) v Competition Appeal Tribunal [2023] UKSC 28, [2023] 1 WLR 2594

[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

[8] TJ-MG. Apelação Cível 5097018-55.2022.8.13.0024 (n. 1.0000.23.268860-6/001), Rel. Des. Marcelo de Oliveira Milagres, 18ª Câmara Cível, j. em 13.08.2024, DJe14.08.2024

[9] aqui

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