Inadimplência prolongada afasta a interpretação da Súmula 616 do STJ
27 de maio de 2025, 19h18
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente acórdão, reafirmou importante entendimento acerca da resolução dos contratos de seguro em casos de inadimplência prolongada do segurado. Em que pese a regra geral estabelecida na Súmula 616 do STJ, que exige a notificação prévia do segurado antes da rescisão contratual, a Turma excepcionou sua aplicação ao considerar que o inadimplemento substancial pode dispensar a comunicação pela seguradora.
Esse posicionamento está lastreado no princípio da boa-fé objetiva, pilar dos contratos contemporâneos, que veda o abuso de direito e comportamentos contraditórios.
O entendimento tradicional do STJ sobre contratos de seguro sempre priorizou a necessidade de comunicação prévia ao segurado inadimplente, antes que a seguradora suspendesse ou rescindisse o contrato. A Súmula 616 assim dispõe:
“A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do seguro.”
Essa determinação, que complementa a exegese do artigo 763, do Código Civil [1], busca evitar cancelamentos unilaterais e surpreendentes, garantindo ao segurado plena ciência de sua situação contratual antes da perda da cobertura.
Não obstante, as seguradoras têm sustentado, em juízo, que a exigência de notificação deve ser interpretada com razoabilidade, especialmente em casos de inadimplemento prolongado. A tese se baseia na ideia de que, diante da reiteração da mora e do longo desinteresse no pagamento dos prêmios, o próprio comportamento do segurado demonstra falta de intenção em manter o contrato ativo, tornando desnecessária uma nova comunicação específica.
De fato, ainda que, na prática, os segurados sejam frequentemente alertados da inadimplência por meio de boletos, e-mails ou outros canais, o STJ, até então, exigia uma notificação específica, geralmente formal (como uma carta), para legitimar a resolução contratual. A recente decisão da terceira turma, entretanto, reconheceu que esse entendimento não pode ser aplicado de forma absoluta, sobretudo quando o inadimplemento é significativo e prolongado, como ocorreu no caso julgado (REsp 2.160.515/SC).
Entendimento da 3ª Turma

No julgamento do Recurso Especial nº 2.160.515/SC, o STJ enfrentou a seguinte questão: seria devida a indenização securitária a um segurado que permaneceu inadimplente por período prolongado, sem que a seguradora o tivesse notificado da rescisão contratual?
Os fatos do caso revelam que o segurado pagou apenas oito das 58 parcelas contratadas e permaneceu inadimplente por aproximadamente dois anos antes do sinistro.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) havia determinado o pagamento da indenização, aplicando estritamente a Súmula 616. Entretanto, a 3ª Turma do STJ reformou a decisão, afastando a aplicabilidade da Súmula 616 diante do inadimplemento substancial. Segundo o voto [2] da ministra Nancy Andrighi, não basta analisar apenas a duração da inadimplência; é necessário considerar o percentual da obrigação cumprida, o comportamento do segurado e o impacto da rescisão no equilíbrio contratual.
O Direito Privado, imerso em um ambiente neoconstitucionalista [3], recebe diretamente os feixes constitucionais, inclusive nas relações privadas, ajustando a autonomia da vontade à boa-fé objetiva, standard do direito contratual contemporâneo, conforme se extrai do Código Civil:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
O princípio em debate impõe dever de lealdade e cooperação entre os contratantes. Nos contratos de seguro, esse dever se manifesta de forma ainda mais rigorosa, dado o caráter de mútua confiança que os permeia.
Segundo Leonardo Cocentino, com fundamento em lição de Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel, “a boa-fé é inerente aos contratos de seguro e, como a ‘relação é consensual, formada com base em informação das partes, e de trato sucessivo, tendendo à longa duração, com sucessivas reconduções, prorrogações ou renovações’, assume um duplo eixo que deve ser observado: o subjetivo e o objetivo”. O primeiro refere-se ao estado psicológico do contratante, isto é, à sua intenção de não lesar direitos ou interesses alheios; o segundo, ao comportamento externo e ético adotado na relação contratual. Ambos são elementos indispensáveis à conformação e à execução do contrato de seguro.
O tema encontra guarida no Código Civil:
“Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.
Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.
Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.”
Lei nº 15.040/2024
Esse imperativo de boa-fé foi corretamente observado na recém promulgada Lei nº 15.040/2024, que dispõe sobre normas de seguro privado; e revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Vide: “Art. 56. O contrato de seguro deve ser interpretado e executado segundo a boa-fé”.
Não há como deixar de reconhecer que o comportamento do segurado que permanece inadimplente por longo período — sem pagar os prêmios — revela uma manifesta descontinuidade da relação contratual, sinalizando desinteresse na manutenção da cobertura. Assim, é incompatível e contraditório que, após esse abandono prolongado, ele venha a exigir o pagamento da indenização securitária quando ocorre um sinistro. Tal atitude fere a boa-fé objetiva e configura venire contra factum proprium [4], pois atenta contra a previsibilidade, a confiança e a estabilidade das relações contratuais.
O inadimplemento relevante e reiterado, afinal, não é apenas uma quebra técnica da obrigação de pagar, mas um indício claro da vontade de romper o contrato, legitimando a reação da seguradora sem que isso configure surpresa ou abuso.
O STJ, lastreando-se na doutrina [5], estabeleceu que a dispensa da comunicação prévia deve ser analisada casuisticamente, observando não apenas a duração da inadimplência, mas também: (1) percentual da obrigação cumprida (quanto do contrato já foi adimplido?); (2) histórico de pagamentos (houve esforço do segurado em manter o contrato?); (3) tempo de inadimplência (o atraso caracteriza desinteresse na continuidade do vínculo?); (4) circunstâncias do inadimplemento (há justificativas plausíveis para a falta de pagamento?).
A exigência desses critérios visa impedir decisões automáticas, fruto de uma interpretação meramente literal da Súmula 616, que beneficiem segurados de má-fé, mas, por outro lado, introduz uma zona de incerteza, pois a interpretação dessas variáveis pode variar entre diferentes instâncias judiciais, e, inclusive, obstaculizar o conhecimento de recursos especiais com base na Súmula 7, do STJ.
O recém-introduzido artigo 20 do novo marco legal dos seguros distingue com clareza as consequências jurídicas da inadimplência da primeira parcela em relação às demais, estabelecendo critérios objetivos e procedimentais para a suspensão da cobertura securitária.
Segundo o caput, a mora relativa à parcela única ou à primeira parcela do prêmio resolve de pleno direito o contrato, salvo convenção em contrário, prescindindo de notificação prévia.
Já os §§ 1º a 3º tratam da inadimplência das parcelas subsequentes. Nesses casos, a norma exige que a seguradora notifique o segurado, concedendo-lhe um prazo não inferior a 15 dias para purgar a mora. A notificação deve conter, obrigatoriamente, advertência de que o não pagamento resultará na suspensão da cobertura e de que não haverá indenização para sinistros ocorridos após o vencimento da parcela inadimplida. O § 3º, por fim, reforça a eficácia da tentativa de notificação, ao considerar iniciada a contagem do prazo mesmo em caso de frustração do envio.
Essa previsão legal confere maior previsibilidade e segurança jurídica à extinção do contrato de seguro por inadimplemento da parcela única ou da primeira parcela, e, quanto às subsequentes, estabelece diretrizes claras para a suspensão da cobertura, com base em procedimento prévio e formal.
Não houve, contudo, disciplina específica sobre o inadimplemento substancial e reiterado por parte do segurado. A decisão do STJ representa um avanço na interpretação dos contratos de seguro, reforçando a necessidade de equilibrar a proteção do segurado com a segurança jurídica da seguradora.
Embora a Súmula 616 continue sendo a regra geral, o tribunal deixou claro que sua aplicação não é absoluta, sobretudo diante do inadimplemento substancial, reiterado e prolongado. O princípio da boa-fé objetiva foi o fio condutor do julgamento, impedindo que segurados em mora duradoura exijam indenizações sem demonstrar interesse legítimo na continuidade do contrato. Afinal, quem deixa de pagar o prêmio por um longo período, sem apresentar razões legítimas, não pode presumir a manutenção da cobertura securitária.
O recente artigo 20 da Lei nº 15.040/2024 contribui para essa discussão ao estabelecer critérios objetivos e procedimentais para a resolução do contrato por inadimplência. Ao diferenciar o inadimplemento da primeira parcela e das subsequentes, e ao exigir notificação formal com prazo de purgação da mora, a nova legislação traz maior previsibilidade às relações contratuais. A ausência de menção expressa à inadimplência substancial, contudo, não exclui, por si só, a incidência da ratio decidendi adotada pelo STJ. Assim, os efeitos jurídicos da inadimplência relevante seguirão demandando apreciação casuística, orientada pelos princípios contratuais, especialmente o da boa-fé objetiva.
Nesse contexto, a decisão do STJ sinaliza uma tendência de maior rigor na análise da mora securitária, conferindo às seguradoras maior previsibilidade na gestão dos riscos e promovendo um ambiente contratual mais equilibrado e aderente à boa-fé objetiva. A interpretação sistemática da Súmula 616 à luz da nova legislação e da jurisprudência mais recente se impõe como medida necessária para evitar decisões formalistas que premiem condutas contraditórias e atentem contra a função social do contrato.
[1] Art. 763. Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação.
[2] “Em respeito ao princípio da boa-fé, não se pode admitir que a Súmula 616 do STJ, que busca proteger o consumidor de uma onerosidade excessiva quando houver um mero atraso de pagamento, seja utilizada para fins espúrios, desviando-se de sua real finalidade de proteção ao consumidor, além de comprometer o equilíbrio contratual e a confiança entre as partes. Por essa razão, esta Corte Superior tem afastado a aplicação da Súmula 616 do STJ em algumas situações excepcionais (…) para concluir pelo inadimplemento substancial em contrato de seguro, imperioso verificar não apenas há quanto tempo a parte está inadimplente, mas o percentual da obrigação que foi adimplido, quando o contrato teve início, a condição pessoal do segurado, se existiram razões que justifiquem o inadimplemento e outras peculiaridades eventualmente existentes na situação sob julgamento”.
[3] Barroso, L. R. (2005). Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista De Direito Administrativo, 240, 1–42. https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618
[4] Ocorre quando alguém adota um comportamento incompatível com sua postura anterior, prejudicando a confiança legítima da outra parte.
[5] PRADO, Augusto Cesar Lukascheck. Adimplemento substancial: fundamento e critérios de aplicação. Revista de Direito Civil Contemporâneo. V. 09, Ano 03, 2016.
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